Introdução
O presente artigo tem como objetivo analisar, a partir de um viés sociológico, os fatores e contornos, ou razões que ditaram o surgimento dos narawas1, ao nível dos transportes privados semicoletivos interdistritais, na cidade de Nacala-Porto. Os transportes públicos rodoviários desempenham um papel crucial na sobrevivência humana, bem como no desenvolvimento da região, dada a mobilização de pessoas e bens. Mas com a dinâmica dos processos, sobremaneira a globalização e o aumento da densidade populacional a nível das cidades, o setor público não tem capacidades de satisfazer as necessidades dos citadinos, no que diz respeito a transporte cómodo, eficiente e seguro. Foi nesse contexto que surgiram os transportes privados semicoletivos designados por chapa 100, com objetivo de suprir e reforçar o défice de transporte rodoviário de pessoas e bens.
A nível dos transportes rodoviários semicoletivos que circulam da cidade de Nacala- Porto para diversos distritos emergiu uma nova categoria social de indivíduos, aumentando a tríade: motoristas, utentes e cobradores, designados narawas. Mas, quem são os narawas? "Narawas" provêm da palavra macua "rawa” que, segundo os motoristas que circulam no troço Nacala-Nampula, tem dois significados: i) vendedor ambulante que circula nas ruas gritando e exibindo o que vende; ii) aquele que grita, mobiliza passageiros para subirem no chapa 1002. Portanto, narawas são uma nova “insurgência socioeconómica” que acrescenta valor mobilizador à tríade acima descrita.
É nesses moldes que surgiu a seguinte inquietação: quais são os fatores e/ou contornos do surgimento da atividade de narawas em Nacala-Porto? Partindo deste questionamento, o artigo tem como objetivo descrever os fatores e contornos que ditaram o surgimento dos narawas na cidade de Nacala-Porto. Especificamente, pretende-se: (i) compreender os fatores que propiciam, ou propiciaram, os novos modus operandi ou faciendi de recrutamento de passageiros nos terminais de transportes semicoletivos rodoviários, isto é, as dinâmicas envolventes; (ii) descrever as (in)justiças no processo de mobilização, angariação ou recrutamento dos passageiros pelos narawas; (iii) e por fim, analisar as redes de solidariedade envolvidas entre os motoristas e narawas no processo de recrutamento de passageiros.
Em termos metodológicos a pesquisa é qualitativa na variante descritiva; é de campo, apoiada em literatura que versa sobre transportes públicos urbanos, dinâmicas dos transportes públicos semicoletivos, bem como a qualidade dos serviços de transportes públicos urbanos. No final, fez-se a triangulação entre os dados colhidos a partir das entrevistas semi-estruturadas, o referencial teórico e os dados da observação naturalística. Para tal, foram administradas entrevistas semi-estruturadas a 25 sujeitos de pesquisa, dentre os quais dez narawas, cinco motoristas de chapa 100, dez utentes. Tendo em conta que o grupo-alvo, principalmente os narawas, é de difícil acesso e trabalha em grupos, optou-se por entrevistá-los com base na acessibilidade (nas paragens e terminais, os narawas e motoristas que estavam disponíveis e que foram entrevistados). A pesquisa bibliográfica foi de grande importância para o enriquecimento do quadro teórico.
A preferência pela abordagem qualitativa prende-se com o facto do interesse ser de compreender e descrever as nuances do processo de mobilização ou recrutamento de passageiros pelos narawas. Pois, como diz Minayo (2001), a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.
Os esforços para a regulamentação de princípios éticos na prática de pesquisa têm suscitado questões polêmicas, mas há sempre que ter atenção para que não se atropele os princípios que ditam a ética nas pesquisas em ciências sociais. É através dessa ordem de ideias que, após ter a autorização do Posto Administrativo de Muanona em Nacala-Porto, elaborou-se um formulário sobre o consentimento informado, que permitiu que o grupo-alvo, mesmo com reservas, participasse no estudo voluntariamente. Todavia, receou-se que pedissem valores monetários em troca da informação e fotos.
Na análise e interpretação de dados, optou-se em codificar os informantes, para preservar a identidade do grupo-alvo. No caso dos narawas codificou-se como N1, N2, N3; motoristas, M1, M2, M3, e passageiros, P1, P2, P3, assim sucessivamente, até o número definido como limite.
1. Contextualização sobre a situação dos transportes em Moçambique
Segundo Ibraimo e Feijó (2018), em finais da década de 1980, a ausência de transportes públicos e os problemas de mobilidade levaram ao surgimento de um setor privado. Diversos investidores ou empreendedores económicos, bem como alguns funcionários públicos investiram em transportadores semicoletivos de passageiros urbanos. Marcado pela informalidade, ao longo dos anos seguintes, o sistema de transportes foi sempre caracterizado por desorganização, insuficiência de veículos, sobrelotação das viaturas, encurtamento de rotas, deficientes condições de mecânicas das viaturas, condução desregrada e perigosa e, por conta disso, frequentes acidentes rodoviários. E, por sua vez, a USAID (2018) também complementa que, em Moçambique, os serviços públicos de transporte de passageiros, nas principais cidades, são prestados essencialmente por pequenos operadores do setor privado que utilizam viaturas conhecidas por chapas 100 (que mais tarde passaram a ser chamadas apenas por chapas), na sua maioria mini autocarros de 15 lugares, e um menor número de veículos de 25 lugares.
No entanto, os pequenos operadores do setor privado estão na dianteira do processo de transporte rodoviário semicoletivo, garantindo assim a mobilidade das populações, produtos, transporte de mercadorias e outras atividades. Mas, mesmo assim, a problemática dos transportes urbanos em Moçambique vem-se agravando ano após ano e é caracterizada por: (i) notória incapacidade do Governo de autorizar o aumento do preço da tarifa; (ii) receita insuficiente para cobrir os custos de manutenção; (iii) falta de vias de acesso e infraestruturas adequadas para transporte urbano; (iv) práticas informais de compensação de custos, como o encurtamento de rotas e falta de meios de transporte suficientes para cobrir a demanda (CIP, 2017). Isso tudo dificulta a mobilidade de pessoas e transporte de produtos, ciente de que as pessoas se sentem obrigadas a deslocar-se com objetivo de satisfazer as suas necessidades quotidianas, e nesse processo, tendo em conta que os serviços públicos de transporte de passageiros não são suficientes, entram em ação os transportes privados, com frotas de transportes em locais considerados estratégicos, prestando serviços de transporte interdistritais, provinciais.
Nos grandes centros urbanos assiste-se a uma maior participação do Estado neste sector, através da existência de empresas públicas de transporte, da concessão de subsídios aos transportadores privados, da definição de tarifas e da negociação com associações de transportadores. No meio rural, onde reside a maioria da população, o Estado delega toda a responsabilidade de transporte no sector privado. Por sua vez, as associações de transportadores existentes atuam, sobretudo, nas sedes distritais, não estendendo os seus regulamentos para as zonas mais recônditas (Ibraimo & Feijó, 2018).
2. Localização geográfica e as dinâmicas dos transportes rodoviários semicoletivos em Nacala-Porto
De acordo com o Centro de Estudos de Desenvolvimento do Habitat (2006),
“A cidade da Nacala-Porto é o segundo maior centro urbano da Província e Nampula, depois da Cidade capital Nampula, tendo como limites geográficos a Baía de Nacala a Norte; o Oceano Índico a Este, o Distrito de Mossuril a Sul e o Distrito de Nacala Velha a Oeste. Com uma população estimada em 350.000 habitantes, distribuída por uma superfície de 400 Kms², a cidade possui um tecido urbano rico e diversificado, abrangendo 23 Bairros” (p.4).
A cidade de Nacala-Porto é um local com potencialidades socioeconómicas, ferro-portuárias, turísticas que a distinguem de outros distritos da Província de Nampula. Não é em vão que, em 2009, o Governo moçambicano a classificou como a Zona Económica Especial do país. O aumento nos investimentos e o desenvolvimento na área de Nacala têm sido impulsionados pelo Porto de Nacala e pela zona económica especial, condicionando sobremaneira a intensificação nos transportes ferroviários, rodoviários, por conta do fluxo de pessoas, bens e serviços, sendo ponto terminal do eixo de transporte constituído pela estrada que a liga à capital Provincial (Nampula) e aos países do Interland (Malawi e Zâmbia). Em Nacala, assim como acontece noutros quadrantes do país, o sector privado é atualmente o maior provedor de serviços de transportes rodoviários, inter-urbano, interdistrital. De acordo com Viera et al. (2012), com a dinâmica crescente no processo de transportes rodoviários semicoletivos que surgiu, na cidade de Nampula e alguns distritos circunvizinhos, uma nova categoria social de indivíduos, reforçando o trabalho dos motoristas e cobradores do chamado chapa 100, chamados narawas. Estes não cobram clientes, apenas recrutam-nos para que, na praça (terminal), subam no chapa 100, por forma a lotar os lugares e assim o transporte poder sair/partir.
Em Nacala-Porto, existem quatro locais de concentração de narawas e transportadores, nomeadamente: Cruzamento de Nacala-à-Velha, Terminal dos transportes interdistritais (nosso local de estudo), Cruzamento Fernão Veloso e Estação das bombas do Belmonte (atualmente usado como terminal de transportes interdistritais). No primeiro e terceiro locais não tem havido muita afluência de passageiros. São passageiros transitórios, daí que os narawas aí se posicionem no período da manhã, diferentemente do segundo e quarto locais, que sempre têm tido narawas em prontidão e são terminais reconhecidos. Os chapa 100 (carrinhas mini-bus de quinze lugares) recolhem passageiros que se deslocam à cidade de Nampula, Nacala-à-Velha, Memba, Monapo, Ilha de Moçambique, Namialo, entre outros destinos. Os preços variam de 50.3 a 350 meticais, de acordo com os quilómetros. Neste processo, surgem os narawas, por conta da proliferação dos chapas que percorrem as rotas interdistritais, que são fundamentais na persuasão dos passageiros, garantindo assim que os transportes fiquem lotados o mais rápido possível, o que garante mais viagens e, obviamente, lucros. Eles fazem escalas em grupos de trabalhos, assim como os transportadores o fazem para recolher os passageiros, havendo a necessidade de perceber com precisão as causas, contornos e injustiças no processo de recrutamento de passageiros nos terminais por forma a ter um melhor entendimento das dinâmicas do setor de transportes rodoviários semicoletivos em Nacala, e não só, visto que as praças (terminais) são o ponto de partida do processo de interação da tríade: motoristas, utentes e narawas. Neste diapasão, Rodrigues (2006: 20) defende que a relação entre cliente e fornecedor se inicia nos pontos de paragem ou terminais, que devem estar adequados para prover as necessidades básicas de proteção, conforto e informação. Por sua vez, Ferraz e Torres (2004) e Rodrigues (2006) vão mais longe ao advogar que são 12 os fatores que influenciam na qualidade de transporte público urbano: acessibilidade, frequência de atendimento, tempo de viagem, lotação, confiabilidade, segurança, características dos veículos, características dos locais de paragem, sistema de informações, conectividade, comportamento dos operadores e estado das vias.
Numa outra abordagem, Bell et al. (1984) e Federhen (2018) defendem que a associação da intenção das pessoas irem para o serviço ou de volta para casa faz com que existam problemas de pico de demanda. No contexto do transporte de pessoas, estes autores estipulam como fatores de demanda: i) a razão por que as pessoas viajam (ir ao trabalho, a escola/faculdade, tratar assuntos particulares, lazer); ii) os padrões do planeamento urbano (por exemplo: distâncias entre paragens, espaços para estacionamento); iii) a qualidade do serviço (facilidades do transporte em termos de frequência, regularidade, conforto, agrado e velocidade); iv) e por fim, o preço.
Portanto, o sistema de transportes semicoletivos é complexo e compreendê-lo é uma mais-valia para o processo de gestão, planificação de políticas multissectoriais, sectoriais a nível dos transportes, tendo em conta que estes constituem uma das condições do desenvolvimento durável dos polos urbanos, e um elemento para a sua competitividade económica e coesão social.
3. Os Narawas como categoria informal de indivíduos no sector de transportes interdistritais
As reformas económicas que caracterizaram as décadas de 80 e 90, em Moçambique, sobremaneira o Programa de Restruturação Económica imposto pelas Instituições da Bretton Woods (Fundo Monetário de Investimento e o Banco Mundial) levaram a uma revitalização da economia, embora tal não significasse uma redução dos índices de pobreza. O processo de transição de uma economia centralizada para a descentralizada (economia livre) trouxe custos sociais que se refletem na qualidade de vida das populações. A necessidade de contrair os níveis de consumo para os adaptar à realidade económica do país e a incapacidade e impossibilidade do Estado para prover o bem-estar social impedem que o mesmo crie um sistema para a minimização dos efeitos sociais negativos das reformas económicas, elevando os níveis de pobreza, crescimento da exclusão da reivindicação, desemprego, subemprego e da violência (Da Silva, 2016).
Com a situação social, económica e política que o país enfrenta, nos dias que correm, fazendo com que seja um glaciar prestes a descongelar, na visão do filósofo moçambicano Severino Ngoenha, porque muita coisa vai mal, desde os sectores da educação, da saúde, infraestruturas e vias de acesso (estradas esburacadas, pontes degradadas...), corrupção ao rubro que atinge índices jamais vistos, o que leva o país a ser um dos mais corruptos a nível mundial, funcionários púbicos desmotivados devido a falta de condições de trabalho e baixo salário, entre outras situações difíceis. É dentro deste cenário que se produzem e reproduzem determinadas categorias sociais informais, como os narawas que olham para a sua atividade como uma estratégia de sobrevivência, nesta senda da informalidade entendida por Mosca (2010) como o conjunto das relações de natureza económica, jurídica, social ou burocrática que, não estando reguladas parcial ou totalmente, existem e fazem parte das regras de funcionamento da sociedade e contribuem para que os padrões de reprodução da sociedade e economia persistam.
Em Nacala-Porto, a atividade de "rawa" (caçar ou angariar clientes) começou a intensificar-se há sete anos, mas na cidade de Maputo já era exercida, desde 2002, embora sem muita consistência. A dissertação de Nhamuave Júnior (2003), com o tema “Actividade informal como estratégia de sobrevivência e base para criação de espaços sociais”, prova essa realidade, quando diz: “estávamos na companhia do nosso familiar que ia viajar ao distrito de Zavala, quando nos deparamos no parque com um grupo de jovens. Um deles, com voz autoritária disse, senhores eu tenho um autocarro prestes a partir para a cidade de Xai-Xai. À primeira vista hesitamos correspondê-los, momentos depois levaram a nossa bagagem ao autocarro e ordenaram.” O cenário acima descreve a atuação dos narawas (Nampula, Nacala), e dos Magayigayi, como são chamados em Maputo.
Nesse contexto, as atividades informais visam responder aos problemas estruturais e de falta de oportunidades económicas que geram situações de pobreza, privação, exclusão e vulnerabilidade, o que obriga os membros da comunidade a recorrer às suas redes sociais (formais ou informais), que jogam não só um papel importante na resolução de problemas imediatos, mas também um papel vital ao estabelecer outro tipo de apoios que ultrapassam o campo financeiro e moral e que entram em outros aspetos da exclusão social, quando ajudam a reconstruir a autoestima, a dignidade e o respeito por si próprios e pelos outros (Da Silva, 2016).
Portanto, é necessário regulamentar algumas atividades como as de narawas, para responder aos interesses de uma categoria que, se sentindo excluída, procura desenvolver atividades lícitas para a sua sobrevivência, até porque eles defendem a criação de associações para responder aos seus interesses. Nesta linha, Júnior (2003) defende que combater os magayigayi ou narawas, sem disponibilizar alternativas é contribuir para o incremento de atos criminosos, roubos e outras formas de insegurança, num país mergulhado no terrorismo, onde os jovens são acusados de aliar-se a tal fenómeno. Porém, Mosca (2010) alerta que, não há políticas de transformação do “informal” em “formal”, quando muito, medidas avulso, descontínuas, com resultados duvidosos e muito custosas. O que deve haver, continua Mosca, são estratégias de desenvolvimento global das sociedades espacialmente integradoras, socialmente inclusivas que pretendam menores níveis de dependência e maior soberania, transformadoras das bases produtivas e das relações sociais que dificultam a modernização e a competitividade da economia, a construção de burocracias eficientes e transparentes.
4. Conceptualização: Passageiros, Terminal de Passageiros e Sistema de Transporte
No presente artigo há termos constantes a que se faz referência. Nesta senda, apresentam-se os conceitos-chave como transportes, passageiros e sistema de transporte.
"Transporte é o trabalho realizado na mudança de posição relativa de bens e/ou pessoas, dum lugar para outro, sendo ele entendido como uma unidade de trabalho. Mecanicamente a função do transporte é o de anular o espaço pela redução do tempo necessário para o transporte, e economicamente é o de aproximar o homem ao local de trabalho/residência e os centros de produção aos lugares de consumo no processo de comunicação" (Carmo, 1965 cit. In Barros, 2016: 26).
Por sua vez, Fiedman (2016) defende que, em senso comum, utiliza-se o termo transporte para referir-se, por um lado, à deslocação para o trabalho, escola, atividades de lazer, compras, negócios e, por outro lado, para o deslocamento de encomendas, cargas, recursos naturais, cada um num meio próprio. O desenvolvimento de meios para possibilitar essa deslocação é uma preocupação que existe desde o surgimento da humanidade.
No que diz respeito a passageiros ou mercadoria, Nascimento (2009:10) afirma ser aquele que necessita ser transportado de um lugar a outro, com todo cuidado e segurança que o próprio contrato lhe assegura. O contratante pode ser o próprio passageiro, ou pode ser um terceiro que adquiriu a passagem para entregar ao viajante.
Por terminal, mais precisamente Terminal de Passageiros, entende-se como sendo uma parte integrante do complexo sistema de transporte e da própria malha urbana, podendo ser caracterizado como um local ao qual afluem pessoas e/ou mercadorias e no qual são reunidos em função da sua viagem e destino. A utilização deste tipo de estrutura, quer por parte de passageiros ou mercadorias, não é marcada pela individualização, mas sim pelo conjunto (Alpuim, 2009).
Para Knèib (2014:7), quando se fala de sistema de transporte, tem-se em conta as diferentes partes que interagem de modo a atingir o objetivo dessa deslocação, de acordo com um plano ou princípio, relacionando-se com o meio em que se encontra e de acordo com os recursos ou solicitações procedentes deste. É como o conjunto de infraestruturas e modos de transporte proporcionam, conjuntamente, a realização das deslocações, viabilizando a realização das atividades urbanas. Tais elementos revelam a estreita relação entre mobilidade, sistema de transportes, estrutura espacial urbana e a necessidade do seu planejamento e gestão de forma conjunta e integrada.
5. Resultados da pesquisa
Neste item, apresentam-se os resultados obtidos a partir das entrevistas semiestruturadas direcionadas a 25 sujeitos de pesquisa, dentre os quais dez narawas, cinco motoristas de chapa 100, e dez utentes dos transportes interdistritais. As questões foram agrupadas em categorias e as entrevistas transcritas constituíram o corpus na qual se desenrolou a análise de conteúdo. Assim, há três categorias, nomeadamente: i) fatores que propiciam os novos modus operandi de recrutamento de passageiros nos terminais de transportes semicoletivos rodoviários; ii) modus faciendi dos narawas no processo de mobilização, angariação ou recrutamento dos passageiros; e (iii) as redes de solidariedade envolvidas entre os motoristas e narawas no processo de recrutamento de passageiros.
5.1. Fatores que propiciam os novos modi operandi de recrutamento de passageiros nos terminais de transportes semicoletivos rodoviários interdistritais
Nesta categoria, pretendia-se ouvir dos participantes (narawas) quais são os fatores ou motivações que propiciaram a nova forma de recrutamento de passageiros nos terminais dos transportes interdistritais. Foram obtidas as seguintes respostas:
“Aqui na paragem as pessoas vinham e ficavam paradas sem saber que carro subir, porque havia muitos carros que iam a caminho de Nampula e todos tinham pouco, pouco passageiros e as pessoas subiam quando o cobrador pedia favor, era sempre assim, então vimos o que passageiro queria lhe "pedirmos favor".” (Motoristas 2 e 3)
Paralelamente ao comentário acima, o Narawa 7 disse: “nós narawas viemos para facilitar os cobradores e motoristas porque eles precisam sempre de clientes, e não é fácil encher um carro sozinho, daí chamamos nossos amigos, como não trabalhávamos formamos um grupo quando começamos outros vieram nos imitar” (rematou).
É nesse contexto que Maia (2002, cit. in Escritório, 2012:8) defende que as redes de relações sociais nos remetem ao conjunto de configurações sociais que os indivíduos são capazes de representar, ora a forma como um indivíduo se relaciona com os outros, o “aspeto relacional das redes chamando atenção para as ligações estabelecidas que possibilitam a reconstrução de processos interativos dos indivíduos e suas afiliações a grupos”.
Um outro argumento surge entre os narawas, defendendo que praticam a atividade por conta do desemprego que assola os jovens a nível do país e em Nacala, em particular, com o encerramento e redução de funcionários em algumas instâncias turísticas em Nacala-à-Velha, e pequenas empresas por conta do conflito em Cabo Delgado. Assim defende o N1:
“Nós não somos narawas porque queremos, não temos maneira, emprego não há, e se não virmos para cá trabalhar não vamos comer, como fica a nossa família? Há narawas que eram serventes nas pensões, trabalhavam nas fábricas de sacos, mas esses sítios reduziram trabalhadores porque os donos estão a viajar para sua terra por causa de guerra em Cabo Delgado.” (Narawa 1)
Mas, num outro extrato, os narawas realçam que a atividade de narawa não é recente como se pensava, apenas ganhou novos contornos, um novo modus operandi e intensificou-se nos últimos seis a sete anos em Nacala-Porto, mas já era praticada. A prova disso está nos dados sociodemográficos dos narawas. Há quem exerce a atividade há 13 anos:
“Eu sou narawa há 13 anos, todos meus filhos alimento, estuda(ra)m a partir daqui, e faço isso porque não tenho emprego e não só, existem muitos carros que fazem chapa de Nacala a Nampula, os passageiros, gostam de ser mimados, mentidos para subir no carro. E, não querem subir carro vazio, apenas cheio. E aí onde nós entramos para lhes convencer a subir no carro do motorista que nos contratou como narawas em vez de outro.” (Narawa 2)
Na mesma senda, um outro informante questiona:
“Se nós não formos narawas seremos o que? Nós estamos mal, aqui até mesmo os que estudaram estão aí, não tem emprego, e nós, que nem temos 12ª classe? Alguns nunca partiram lápis. .4 Eu sou narawa há 9 anos, meus 11 filhos alimento a partir daqui, apesar de não ter terminado 12.ª classe. Mas há narawas que tem 12ª classe, mas estão aqui comigo a lutarmos por clientes.” (Narawa 9)
Essa visão já consta no artigo do Colaço, intitulado Mentalidade ‘chapa 100’, escrito em 1998, que dava ênfase ao papel dos “chamadores” (narawas) que tinham a missão de organizar fileiras de passageiros, atrair passageiros para os carros onde prestam serviços. Júnior (2003) também corrobora Colaço, descrevendo os Magayigayi como indivíduos que convencem e mobilizam passageiros a viajar pelos transportes semicoletivos, pelos quais estão contratados, em troca de pagamentos correspondentes ao preço de uma passagem, podendo variar conforme o trajeto.
Portanto, dá-se a indicação de que, na cidade e província de Maputo, em 1998, os “chamadores” já exerciam a atividade e que em Nacala-Porto registou-se o aumento desenfreado de narawas há sensivelmente sete anos, segundo os motoristas e narawas que operam no terminal de transportes interdistritais.
Colaço (1998: 59) defende que o mundo dos cobradores é um mundo dos excluídos, marginalizados, muitos deles estão em idade escolar, porém abandonaram o ensino antes de o concluírem, outros não tiveram, não têm e estão longe de ter acesso à educação. O trabalho nos chapa 100 surge para essas pessoas como solução para os problemas pessoais e até familiares.
Os dados sociodemográficos colhidos no campo comprovam essa realidade, num total de 10 narawas entrevistados, somente dois terminaram a 12.ª classe, três nunca foram à Escola, dois desistiram na 6ª classe, dois na 5.ª classe e, por fim, um na 8.ª classe. A maior parte deles eram vendedores informais de tomate, vendedores ambulantes e prestavam serviços de táxi-mota. A esse respeito, Cavinni (2006) realça que as atividades informais, prestadas em quase todas as cidades, são um gerador de empregos, ao mesmo tempo em que são um fator de preocupações, tanto por questões de segurança, como com os aspetos legais da atividade, já que um número cada vez maior de pessoas que se encontram sem oportunidade de ingressar no mercado de trabalho formal acaba ingressando em trabalhos que oficialmente não existem, contribuindo para o crescimento do mercado informal.
A mesma perceção já foi tida por Maposse (2011), ao defender que o comércio informal, ao criar emprego ou ocupação, está a contribuir diretamente para a geração de rendimento e riqueza que permite à força de trabalho envolvida nesta atividade sustentar o seu agregado familiar e melhorar as condições de vida dos mesmos. A atividade de narawa é informal e os praticantes clamam pela legalização, tendo em conta que o fazem como seu ganha-pão e ressentem-se dos problemas da falta de legalização. A nível da província de Nampula, da qual Nacala faz parte, os transportadores privados estão sob gestão da ASTRA (Associação dos transportadores Rodoviários), e os proprietários são um misto de pequenos e médios empresários, e por haver maior procura dos transportes, há, consequentemente, maior numero de transportadores fazendo rotas interdistritais, daí a emergência dos narawas para persuadir de diversas formas (honestas ou não) os clientes a subirem aos transportes sob a qual estão contratados pelos motoristas, sendo que os proprietários apenas dão anuência por conta dos valores a serem pagos.
Portanto, a transcrição das entrevistas faz perceber que um dos fatores que propiciou para o surgimento e a intensificação da atividade de narawas nos últimos anos, e o novo modus operandi, é o desemprego, a proliferação de transportadores fazendo as rotas interdistritais e a intensificação na procura dos serviços de transportes por parte da população. Portanto, as pessoas desempenham essa atividade como o seu ganha-pão.
5.2. Modus operandi/faciendi dos narawas no processo de mobilização, angariação ou recrutamento de passageiros
Nesta categoria pretendia-se ouvir dos narawas as formas de recrutamento dos passageiros, as dinâmicas laborais sendo em seguida apresentado os extratos:
“Num universo de 48 narawas, criou-se quatro grupos de 12 pessoas, na 2ª feira o primeiro entra às 3h até às 13h, segundo às 13 até às 17h, o terceiro trabalha na 3ª feira das 3h até às 13 e o quarto das 13h às 17h, funciona assim, um dia sim, um dia não, o motorista paga o chefe do grupo e ele distribui.” (Narawa 8)
Esse é um dos mecanismos de gestão de equipas de trabalho e de conflitos encontrados pelos narawas, a distribuição de dias de trabalho e horas, a fim de satisfazer a todos, porque são muitos, com exceção dos chamados anachimas.5, que, se porventura desaparece mercadoria ou pasta de passageiros, são culpabilizados.
Outro modus faciendi é a persuasão, receção do cliente e a suposta redução do preço do local de saída (Nacala) ao local de chegada (Monapo, Namialo e cidade de Nampula), facto que cria confusão entre cobradores e passageiros, assim como mostram os extratos:
“Eu quando vejo narawa a vir, logo enxoto e não aceito levar minhas sacolas, aqueles até nos carregam para subir no carro, fingem que diminuem preços, mas quando chegamos o cobrador não quer saber se narawa diminuiu, dizem narawa não é cobrador, você não sabe quanto custa de Nacala à Nampula? (rematou).” (Passageiro 1) (vide a Figura 2 (pag.23))
Na visão dos utentes (passageiros), esta estratégia de persuadir clientes pelos narawas é a causa de muitas frustrações entre os passageiros, tanto que há casos em que os clientes são abandonados pelos cobradores antes do destino final, porque os passageiros dizem que não têm o valor completo de pagamento e foram fazendo gastos durante a viagem porque o narawa disse, por exemplo, que por uma viagem de Nacala à Nampula pagariam 300 Meticais e não 350 Meticais, como é estipulado, como mostra o extrato:
“No ano passado, em maio, viajei de Nacala a Nampula com meus dois filhos. O narawa recebeu-me, convenceu a subir no carro, disse que eu ia pagar 300 e meus filhos 200 porque eram menores. Subi. Quando cheguei em Nacavala, queria pagar, o cobrador levou o dinheiro e pediu mais 200, eu disse que não tinha, então disse "senhora mucuruwe naxaninho".6. Disse-me para descer em Nacavala. .7 Eu lhe pedi favor e disse que narawa me diminuiu, mas ele não aceitou, eu como não tinha os 200 para aumentar desci em Nacavala com meus filhos.” (Passageiro 2)
Um dos autores do artigo também presenciou vários cenários críticos, num dado dia por volta das 18:00, em Monapo.8, onde, a uma senhora que viajava para a Ilha de Moçambique na companhia de suas duas filhas menores, não foi entregue o troco pelo cobrador, embora tenha antes negociado com narawas para redução. Não tendo mais recursos para continuar a viagem, e sendo já noite, entrou em crise e desmaiou.
A afirmação é acrescida pelo CIP (2020) ao defender que a escassez de transporte motiva desespero nos passageiros e arrogância e insolência de alguns chapeiros que se dão o direito de discriminar idosos e mulheres com crianças pequenas, encurtar rotas, cobrar o dobro do valor normal/justo.
As incursões dos narawas não param por aí, existem outras formas de operar. Este passa por criar uma rede falsa de utentes (passageiros) de chapa 100, que ficam acomodados dentro do carro, fingindo ser passageiros. Paulatinamente, enquanto os passageiros reais entram no carro, os ditos passageiros falsos vão abandonando o carro discretamente. O extrato abaixo comprova o facto:
“Esses narawas hiii sempre arranjam formas de enganar clientes. É normal a pessoa subir um chapa que acha que está cheio de passageiros, mas pouco a pouco os passageiros irem saindo do chapa 100 sem você ver. O pior até, é normal cliente dizer que quer ir a Monapo, dizem: sobe lá, mas quando aparece clientes que vão direto te tirarem do chapa… Aqui assistimos muitos filmes, desabafou.” (Passageiro 7)
A informação é rebatida e aceite pelos narawas, que defendem:
“Nós narawas não temos alternativas, são muitos carros que fazem chapa à Nampula. São muitos grupos, e este trabalho nos ensinou a mentir para clientes, porque eles não sobem chapa vazio, querem cheio, subir e logo sair, e nós vamos apanhar passageiros aonde? Se quem enche o carro são eles que não querem subir carro vazio???” (Narawa 10)
Para Liesegang (1998) e Chichango (2012) os “chapas” não são somente um lugar de trabalho, mas também um espaço identitário. Os autores se debruçam sobre a existência de um “território social”, sendo, portanto, neste território onde os cobradores e motoristas buscam afirmar a sua identidade individual e de grupo. É no “chapa” onde eles aprendem tudo o que a realidade lhes queira ensinar. Inventam e reinventam códigos e regras comportamentais como forma de protesto e de autodefesa do “território”. Por isso, para ser narawa é importante ter um amigo, conhecido ou parente, que faz a atividade para apresentar os outros no local de trabalho, com base numa rede, não possibilitando entrada de membros não conhecidos. Mas esse cenário passa despercebido para os utentes e proprietários dos transportes, interessando mais aos cobradores, motoristas com exceção dos casos em que os próprios são ao mesmo tempo proprietários dos seus chapas 100.
Na visão dos narawas e motoristas, os passageiros querem subir ao carro e logo sair, facto que não é possível; assim, eles ficam incomodados, quando permanecem muito tempo nos terminais de transportes interdistritais, aguardando que o carro fique lotado. Na visão do Motorista 5, os chapeiros não podem sair dos terminais com carro vazio, porque precisam de abastecer o carro de Nacala à Nampula por 5.000.00 meticais9, aos narawas pagam 1300 meticais10; de Nampula a Nacala tem quase cinco controles de Polícia de Trânsito e em todos sítios devem deixar “refresco”11, corromper os polícias de trânsito; eles (motoristas) devem ficar com algum e o remanescente entregar aos donos; praticamente não ganham nada, desabafou também o Motorista 10. Isso faz com que os motoristas com apoio dos narawas criem e recriem novas estratégias de recrutamento de clientes (passageiros).
Os proprietários dos chapas querem lucro, para além do valor para compra de peças sobressalentes para a viatura, combustível, entre outros itens (existindo um valor definido para os motoristas, por viagem, que normalmente são 28.000.00 meticais, ida e volta). Por sua vez, os motoristas também querem lucro para entregar ao patronato (porque é deste que sai o seu salário, o do cobrador e valor monetário para pagar os narawas). Outro fenómeno não menos importante, o motorista ou cobrador precisa de ter um valor extra para subornar os Polícias de Trânsito, ou fiscalização rodoviária, devido a diversas irregularidades (lotação, documentação incompleta, falta de pagamento de algum imposto...). Neste contexto, Cumudchandra (2010) enfatiza que os “chapeiros” (motoristas e cobradores) reclamam constantemente de extorsões/corrupções por parte dos policiais fiscalizadores que atuam nas ruas, os quais, segundo os motoristas, sempre fazem cobranças ilícitas. É nessa senda, que os narawas reiventam técnicas, estratégias para conseguir mais clientes e suprir essas necessidades e alimentar esse ciclo. A título de exemplo, no segundo modus operandi (receção dos clientes e a suposta redução do preço do local de saída ao destino), eles aplicam uma taxa baixa a um determinado grupo de pessoas que eles constatam que é de baixa renda, mas uma taxa alta a passageiros com muita carga. Eles entendem que os 50 meticais12 descontados farão diferença nas contas dos passageiros.
O terceiro modus operandi (criação de uma rede falsa de utentes "passageiros" de chapa 100, que ficam acomodados no chapa, fingindo ser passageiros) é aplicado a todos passageiros. Mas, as maiores vítimas são aqueles que dizem estar com muita pressa e querem subir a um carro cheio. Entram no chapa, supostamente cheio, e quando entram clientes que vão ao destino final, os falsos passageiros descem do chapa discretamente.
Portanto, o negócio é uma cadeia que deve ser articulada: de um lado, temos os proprietários (que não têm muito papel, quando o transporte sai de casa para rua), o motorista (o maior responsável na gestão do transporte, pagamento de narawas, combustível, em alguns casos o cobrador), o cobrador (responsável nas cobranças aos passageiros, gestão dos narawas, bagagens, entre outros), e por fim, o narawa (responsável por persuadir de diversas formas os clientes e por gerir as bagagens apenas nas terminais), cujo trabalho inicia e encerra nos terminais, exceto nos casos em que há acordos extras. Cada um dos atores sabe as suas responsabilidades, embora no terreno tenhamos constatado, por vezes, falta de entendimento entre os narawas e cobradores, por conta das manobras que os primeiros fazem na persuasão dos clientes, que provoca choques entre os utentes e os cobradores na hora dos pagamentos. Resumindo, os proprietários dos transportes pagam aos motoristas; estes, por sua vez, dependendo da confiança e da lealdade com o patronato, pagam aos cobradores (mas, por vezes, quem o faz é o proprietário), que, por sua vez, pagam ao grupo de narawas.
5.3 Redes de solidariedade entre os motoristas, narawas e cobradores
Neste ponto quisemos ouvir principalmente os narawas, motoristas e utentes sobre como é o relacionamento entre eles no terminal dos transportes e como se procede a ordem de recolha dos passageiros.
Na visão de Loforte (1996) e Escritório (2012), os estudos sobre redes de solidariedade no espaço urbano são uma das diversas manifestações das redes sociais e procuram explicar as formas de relacionamentos entre indivíduos em diferentes contextos. As redes sociais constituem um capital social, que pode ser definido em funções das relações de reciprocidade existentes na sociedade, baseadas em laços sociais, onde pontuam fatores como sexo, idade, religião e posição social dos membros, e definem as hierarquias e as relações de poder, onde as normas vigentes e a confiança facilitadora da cooperação para benefícios mútuos.
No entanto, no contexto do relacionamento entre motoristas e narawas é importante perceber como se manifestam as redes de solidariedade, como é feita a ordem de carregamento de passageiros no terminal, e que implicações isso tem para os narawas e passageiros. Quando questionados os motoristas, como é o relacionamento entre eles e narawas, a resposta não tardou de um motorista:
“Não posso dizer que nosso relacionamento é bom ou mau, depende do motorista para motorista, ou narawa para narawa. Se você como motorista se comportar bem, os outros vão te respeitar, e se você se comportar mal, aí haverá problemas. Por exemplo, tem um motorista que não carrega aqui no terminal, era muito confuso, tinha problemas com muitos de nós, ele via como lhe tratávamos e sozinho mudou de lugar. O mesmo acontece com narawas, este espaço é de nacavocos13, todos somos napareias.14, se pensares que és mais kan niwanana.15” (Motorista 1)
Na mesma senda, um nawara defendeu o seguinte:
“Nós somos amigos, porque todos nós estamos à procura de pão, só não nos entendemos com os anachimas16, porque eles vem aqui bêbados e só fazem confusão, não respeitam a bicha, as vezes roubam nossos clientes, perdem coisas e dizem que são narawas, enquanto são eles. Por isso, mesmo precisamos de ter coletes e criarmos uma associação, assim íamos trabalhar bem, e eles como são confusos não iam entrar. Nós queremos associação aqui, como aquela que foi criada de táxi-motas aqui em Nacala, ou vamos criar sozinhos porque nos prometeram e nunca mais.” (Narawa 5)
Para Júnior (2003), quando as pessoas não estão integradas em sistemas de solidariedade nacional, buscam a solidariedade local e sobrevivem nesse sistema, mobilizam características sociais e identidades que podem ser étnicas, profissionais, religiosas, entre outras. É nesse contexto que os narawas pensam em criar uma associação para poder desenvolver melhor as suas atividades, serem reconhecidos e terem um sistema de poupança que lhes possa ajudar.
Questionados os motoristas sobre como decorre o processo de carregamento de passageiros no terminal, e quanto é pago aos narawas, a resposta veio de um motorista:
“A primeira pessoa que carrega é a primeira que vem no terminal, até esse ponto nos entendemos, e não só, há chapeiros que têm clientes fixos, lhes ligam cedo, e logo às 5:00h, já têm clientes. Esses no terminal são primeiros, enchem e viajam. E nós pagamos os narawas o preço dos passageiros que colocaram no carro, 22 pessoas, pagamos 1300 por grupos de narawas.” (Motorista 2)
Portanto, no espaço social do terminal dos transportes, os narawas, cobradores e motoristas é que têm a palavra final, direcionam os clientes e, por vezes, até coagem os passageiros a subir chapa 100 que não querem, e proíbem proprietários de carros particulares de carregar passageiros no local, uma situação que frustra alguns passageiros. Vejamos os extratos a seguir:
“Eu não gosto de vir para cá, sabe esses narawas irritam. Não gosto dessa mania deles acharem que devem mandar em nós, nos chutam de chapa em chapa, parecemos bola.” (Passageiro 7)
Um outro informante remata:
“O que não gosto é de eles proibirem donos de carros particulares levarem passageiros, dizem este espaço é nosso. Onde está escrito isso? Que o espaço é deles? Ainda dizem, se você quer subir carro particular não vai subir aqui… Já assistimos casos de luta aqui, entre passageiros, narawas, e donos de carros particulares. Narawas são muito confusos, o que eles querem é nós lhes obedecermos, subirmos carro que esta recolher, caso não, esperar outro carro de um motorista que está na bicha recolher. É tipo nós não podemos ter escolhas.” (Passageiro 9)
Na visão de Chichango (2012), os usuários dos chapas conotam o cobrador dos chapas e os integrantes no grupo como indivíduos de “má conduta”, sem “nenhuma educação”, desrespeitadores e violadores dos direitos dos utentes. No entanto, essa caracterização é atribuída pelos “outros”, levando em consideração o comportamento dessa categoria social de indivíduos durante a sua atividade laboral, sem que, no entanto, se procure perceber as razões que os levam a agir do modo como os usuários do chapa percecionam.
Portanto, os dados e a observação mostram que a relação entre motoristas e narawas é boa, há um espírito de solidariedade entre eles, que, por vezes, chega a frustrar os passageiros, principalmente no processo de cedência de passageiros, em que estes são vistos como "mercadorias" que podem ser trocadas, coagidas, entre outras formas de repressão. No caso dos narawas, o relacionamento é bom, apesar de necessitarem da criação de uma associação para consolidar as relações e gerirem melhor as receitas diárias, bem como para travarem a proliferação daqueles que são chamados anachimas, cujas atuações mancham a classe dos narawas.
Considerações finais
Procuramos no artigo descrever os fatores e contornos que ditaram o surgimento da atividade de narawas, uma nova “insurgência socioeconómica” que acrescenta valor mobilizador à tríade motorista, cobrador e utentes. Um dos fatores que propiciou o surgimento e a intensificação da atividade de narawas nos últimos anos, e os seus novos modi operandi e faciendi, é o desemprego, a proliferação de transportadores fazendo as rotas interdistritais e a intensificação na procura dos serviços de transportes por parte da população em geral.
Relativamente ao modus operandi, os narawas distribuem-se em equipes de trabalho e fazem escalas, a ser assim, as estratégias são reinventadas e recriadas no seu espaço social. Para cada problema, os narawas criam uma solução, e estudam constantemente o comportamento dos clientes, por exemplo, receção dos clientes e suposta redução do preço do local de saída ao destino, criação de uma rede falsa de utentes "passageiros" de chapa 100, que ficam acomodados no carro fingindo ser passageiros. Por outro lado, nas redes de solidariedade, a relação entre motoristas, cobradores e narawas é boa, há um espírito de solidariedade. Para ser narawa é importante ter um amigo, conhecido ou parente que faz atividade para apresentar os outros no local de trabalho, pois é uma rede que não facilita a entrada de membros não conhecidos. Mas esse cenário passa despercebido para os utentes e proprietários dos transportes, interessando mais os cobradores, motoristas, com exceção dos casos em que os próprios motoristas são ao mesmo tempo proprietários dos veículos.
A ser assim, sugere-se a criação de uma associação dos narawas em Nacala-Porto, à semelhança da recém-criada associação dos táxi-motas, pois permitirá que tenham cartões de identificação e coletes para diferenciá-los daqueles que não fazem parte da classe e agem ilegalmente. Não só a ação permitirá que os narawas paguem cotas e façam poupanças ao nível da associação, como, outrossim, permitirá que entreguem um comprovativo aos passageiros que sofreram a redução do valor de transporte, porque estes mostram-se bastante indignados com os narawas pelo facto de simularem redução do preço e hora de pagamento, e, ao entregar o valor aos cobradores, por estes reagirem de forma agressiva e até expulsarem utentes do chapa.
Sugere-se igualmente que o Governo do distrito e Conselho Autárquico capacitem/formem os narawas, cobradores e motoristas em matéria de atendimento aos passageiros, de ética, e que sejam instruídos sobre como saber ser, estar e agir durante o exercício das suas atividades, pois, algumas vezes, comportam-se mal, conforme as narrativas de autores como Colaço (1998), Júnior (2003), Maposse (2011), Chichango (2012), CIP (2020), bem como de acordo com a crítica feita aos motoristas e cobradores pelos nossos entrevistados.
Sugere-se que o Conselho Autárquico fiscalize as atividades nos terminais de transportes interdistritais e não se limite apenas a distribuir senhas e a cobrar aos motoristas, pois tem havido vários conflitos, terminando em pancadaria, entre narawas, narawas vs. passageiros, e narawas vs. cidadãos com carros particulares que, estando de viagem, se fazem àquele local para levar passageiros.