Introdução
Quando mobilizamos autores cujas produções se localizam em debate direto com um conjunto de textos marcados pela incorporação da noção de raça como componente central nas interpretações intelectuais em relação ao Brasil da segunda metade do século XIX e início do século XX, como é o caso de Manoel Bomfim e Lima Barreto, acaba tornando a ideia de interpretar o Brasil pelo prisma desses intelectuais um passo investigativo que compreende dois processos simultâneos: pois, se por um lado, ao interpretar os autores com os seus respectivos contextos nos propicia entender como os mesmos produziram sentidos sobre os seus tempos históricos; já por outro lado, nos dão condições para indagarmos sobre as questões e temas, que ainda podem ser mobilizados como fatores de entendimento e interpretação em relação ao Brasil.
Manoel José do Bomfim nasceu no ano de 1868, na cidade de Aracaju, na província de Sergipe. Filho de Maria Joaquina do Bomfim e de Paulino José do Bomfim, um respeitado comerciante e dono de engenho em Aracaju, Manoel Bomfim foi um importante intelectual em sua época, médico de formação, que pouco exerceu a profissão por conta de um desapontamento pessoal, ligado ao falecimento de sua filha. Fez seus estudos em Medicina, em duas importantes instituições de ensino brasileiras: em 1886 ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia e dois anos depois, transferiu-se para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde se formou no ano de 1890. No ano de 1902, quando foi montada uma comissão pedagógica nomeada pela prefeitura, Manoel Bomfim foi para Paris, onde se doutorou em Psicologia na Sorbonne sob a orientação de Alfred Binet.
Afonso Henriques de Lima Barreto, treze anos mais jovem do que Manoel Bomfim, nasceu no dia 13 de maio de 1881, no bairro de Laranjeiras (zona sul, da cidade do Rio de Janeiro), em exatos sete anos antes da abolição da escravidão no Brasil. Seus pais eram negros pobres que possuíam um nível educacional formal invejável para a época. Amália Augusta, sua mãe, foi professora e proprietária de uma escola para moças; enquanto o seu pai, João Henriques de Lima Barreto foi tipógrafo da Imprensa Nacional. Da mesma forma que seus pais, Lima Barreto teve uma ótima educação formal, tendo, inclusive, ingressado na Escola Politécnica, tradicional instituição de ensino superior brasileira para cursar Engenharia Civil, embora não tenha concluído o curso, devido às sucessivas reprovações, somado ao adoecimento de seu pai. Neste cenário, Lima Barreto se viu forçado a ingressar no serviço público, tendo se tornado amanuense da Secretaria de Guerra e o mantenedor de sua família.
Todavia, se a engenharia acabou tornando-se algo distante devido às peripécias da vida, por outro lado, a literatura seria a sua “redenção” e o que passaria a dar sentido à sua vida. Ao longo de sua trajetória, Afonso Henriques de Lima Barreto produziu centenas de textos, enquadrados em variados gêneros literários. Ainda que Lima Barreto fosse treze anos mais jovem em relação a Manoel Bomfim, ele veio a falecer dez anos antes de Bomfim, em sua casa no bairro de Todos os Santos, no Rio de Janeiro, no dia 01 de novembro de 1922, enquanto lia um exemplar da Revue des Deux Mondes. Quase uma década após o falecimento de Lima Barreto, veio a falecer no dia 19 de abril de 1932, no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, o médico e professor Manoel José do Bomfim.
Como um dos intelectuais abordados neste estudo produziu textos ficcionais, tornou-se indispensável a utilização da Crítica Integradora como passo metodológico importante, pois, permite-nos compreender como o texto literário recria e mostra a realidade social na ficção de forma transformada e reduzida no texto. Isto é, em outras palavras, a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas, uma vez que só podemos compreendê-la fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente integrada, onde: o externo (no caso, o social) importa não como causa, tampouco como significado, mas sim como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se interno. Dito isto, trata-se então de entender como o externo e o interno, o geral e o particular se articulam, se entrelaçam e ganham narrativas nos textos analisados (Candido, 2010).
Assumimos que tanto Manoel Bomfim, quanto Lima Barreto avaliaram a persistência de aspectos dos tempos da escravidão no Brasil na sociabilidade republicana, privilegiando diferentes aspectos. Mesmo assim, tal comparabilidade se justifica quando privilegiamos como ponto de análise a forma pela qual a noção de raça influenciou os caminhos escolhidos por ambos os intelectuais. Neste sentido, ainda que previamente reconheçamos que estamos operando uma comparação de distintos elementos, aqui, tomamos o componente racial como o elemento que produz sentido à comparação proposta. Embora metodologicamente a comparação possibilite reconhecer as diferenças e semelhanças, as aproximações e os distanciamentos dos postulados comparados, tal raciocínio comparativo permite também a descoberta de regularidades, deslocamentos e transformações, na mesma medida que auxilia na construção de modelos e tipologias, na identificação de continuidades e descontinuidades, permitindo, por assim dizer, explicitar as determinações mais gerais que regem determinados fenômenos sociais (Weber, 1999; (2016).
Uma investigação pautada pelo método comparado, requer o cuidado de assumir conscientemente algumas etapas cruciais, como por exemplo: estabelecer os elementos corretos no enquadramento destas etapas, sendo a primeira etapa correspondente à seleção dos fenômenos comparáveis - previamente estabelecendo os recortes delineados no tempo e no espaço, vem deste movimento a nossa escolha em abordar aqui apenas os ensaios de Manoel Bomfim e os romances de Lima Barreto produzidos entre os anos de 1905 até 1920. Tal passo é fundamental para a construção de instâncias empíricas capazes de reproduzir os aspectos essenciais dos factos ou fenómenos investigados, selecionados e coligidos em totalidades coerentes. Já a segunda etapa, correspondente à definição dos elementos a serem comparados - diz respeito a tentativa prévia de identificar qual a capacidade explicativa dos elementos a serem comparados nos limites de uma dada realidade, permitindo-nos fazer uma escolha consciente dos caminhos a serem seguidos, portanto, uma vez que Lima Barreto e Manoel Bomfim, ainda que tenham convivido em uma mesma cidade, em um mesmo contexto político e social, foram atores sociais que usufruíram da realidade republicana de forma diferente, um mais estabelecido (Manoel Bomfim), o outro (Lima Barreto) nem tanto, uma vez que pesava sobre ele o estigma ideologicamente construído em relação à população negra no pós-abolição. Então, o peso que a componente racial teve sob a sociabilidade da Primeira República brasileira assumiu nesse cenário sentidos diversos para cada um dos intelectuais.
E, por fim, a terceira etapa condizente ao estabelecimento da generalização - cumprindo, assim, o papel de uma espécie de “bússola”, que auxiliaria tanto na compreensão dos inúmeros fatores que incidem sobre um determinado fenômeno, quanto no reconhecimento dos elementos comuns aos diferentes casos, típicas para as diferentes classes de casos ou singulares. Tal componente é fundamental, sobretudo, por nos possibilitar estabelecer comparabilidade, mesmo que os autores tenham observado aspectos sociais distintos em seus textos, pois o que nos interessa é destacar quais foram os sentidos privilegiados por ambos intelectuais, no que concerne à persistência da ordem escravagista do período imperial na sociabilidade republicana.
Ademais, isso não configura, em si mesmo, um entrave, uma vez que os estudos comparados devem ser tratados como instrumentos analíticos que permitem analogicamente o reconhecimento do outro e, ao mesmo tempo, de si pelo outro. Portanto, a comparação é um processo de perceber as diferenças e semelhanças e de assumir valores nessa relação de mútuo reconhecimento. O médico Manoel Bomfim e o escritor Lima Barreto foram dois intelectuais, cada um à sua maneira, que se apropriaram do debate “biológico-social” e construíram suas respostas para múltiplos problemas em um mesmo contexto. Em outras palavras, cada um dos autores à sua maneira, mobilizou narrativas que os permitiram dar certa tangibilidade à sociabilidade republicana que se produziu e reproduziu de forma integrada aos elementos escravagistas marcantes da história colonial e, posteriormente, imperial brasileira.
Contudo, é importante salientar a existência de uma produção relevante quando se trata de Manoel Bomfim e Lima Barreto, produzidas a partir de diversas perspectivas e, também, focada nos mais variados problemas. Não é um exagero dizer que há uma extensa produção sobre Manoel Bomfim que vai desde o final do decênio de 1930, com Nelson Werneck Sodré1 que à época afirmava ter sido Bomfim o responsável por introduzir novos métodos de análise da realidade social para se pensar a formação da nacionalidade brasileira; perpassando por outras produções presentes em todas as décadas do século XX e XXI, com destaque para: Chacon (1965), Leite (1976), Skidmore (1976), Martins (1978), Alves Filho (1979), Sussekind & Ventura (1984), Ribeiro (1993), Kropf (1996), Aguiar (2000), Botelho (2002), Ianni (2004), Bechelli (2009), Cruz & Bittencourt Junior (2010), Gontijo (2010), Oliveira (2015), Gil (2016) e Santos (2023).
Já em relação a Lima Barreto, o primeiro grande trabalho foi a biografia do autor, feita por Francisco de Assis Barbosa e publicada em 1952. Mais de meio século depois Lilia Schwarcz, publicaria em 2017 uma nova biografia sobre o escritor fluminense, bem mais completa e atualizada, abordando múltiplas dimensões de Lima Barreto, a saber, biografia, obra e o contexto social do escritor. Assim como no caso de Manoel Bomfim, há uma extensa produção em relação a Lima Barreto, com destaque para: Maul (1967), Beiguelman (1981), Silva (1981), Morais (1983), Aiex (1990), Figueiredo (1995a), Figueiredo (1995b), Fantinati (1995), Germano (2000), Machado (2002), Engel (2003), Oakley (2011) Dias (2012) Prado (2012), Dias (2013), Barbosa (2012), Carvalho (2017), Schwarcz (2017) e, Souza (2021) .No entanto, advertimos que os/as comentadores/as mencionados/as não correspondem a totalidade dos trabalhos em relação tanto a Manoel Bomfim, quanto a Lima Barreto.
Acreditamos que a nossa pesquisa vem para contribuir com o alargamento do campo de estudos em relação aos dois autores analisados, sobretudo, por dois aspectos centrais. O primeiro pela própria proposta da comparação, pois dentre os trabalhos destacados há comparações, mas sendo elas: Manoel Bomfim e Euclides da Cunha; Bomfim e Manuel de Oliveira Lima - ou Lima Barreto e Dostoiévski. Ou seja, até a realização de nosso trabalho não havia trabalhos que tenham proposto uma comparação entre Manoel Bomfim e Lima Barreto. Em segundo lugar, exploramos no artigo um elemento caro aos autores, todavia incluindo o texto AObra do Germanismo (1915), à primeira vista, controverso, de autoria de Manoel Bomfim, até hoje (passados mais de um século de sua publicação) pouco abordado. Após todo o exposto, reforçamos que buscaremos ao longo deste artigo produzir uma comparação entre os postulados de ambos os autores, perseguindo em ambas as narrativas-textuais, como a noção de raça explícita ou implicitamente influenciou ou não o entendimento dos autores em relação ao prolongamento de elementos da sociabilidade escravocrata e os efeitos pregressos da abolição conservadora na sociabilidade experimentada no início do período republicano no Brasil.
1. Escravidão e abolição conservadora: construindo sentidos na experiência republicana
Em grande parte da história brasileira, a sua marca comum em relação ao restante do “novo mundo” foi a sociabilidade desenvolvida em meio à instituição escravocrata, sua instauração aqui se deu ainda no início do século XVI e o seu término formal ocorreu apenas no fim do século XIX, tal processo foi à forma dileta de relação de produção nos territórios americanos dominados pelas metrópoles europeias. No Brasil, conviveram no centro da instituição escravagista tanto os nativos da terra, quanto as populações negras trazidas à força do continente africano. Contudo, ao longo do século XVIII, os nativos da terra foram perdendo a posição de agentes escravizáveis, ainda que não em todo o país (Ramos, 2004), tendo restado à instituição da escravidão em grande parte do Brasil apenas o negro para ser explorado legalmente.
Alfredo Bosi (1992), ao tratar da integrada e complexa relação entre colônia, culto e cultura, nos explicava que os componentes centrais para a compreensão da vida e do desenvolvimento colonial brasileiro passava pelos valores e significados tecidos entre a complexa aliança entre: (I) um sistema agromercantil; (II) voltado para economia metropolitana e (III) com uma condição doméstica tradicional. Por isso, sustentou o autor, na
“(...) formação do sistema exigiram-se reciprocamente tráfico e senzala, monopólio e monocultura. No plano internacional determinou-se o ciclo de fluxo e refluxo da mercancia colonizada na linha das flutuações do mercado e sob o império da concorrência entre os Estados metropolitanos. Em suma, a reprodução do sistema no Brasil e o seu nexo com as economias centrais cunharam a frente e o verso da mesma moeda.” (Bosi, 1992: 26)
Deste modo, o escravismo moderno (forma histórica assumida pelo escravismo na colonização americana e brasileira, em particular) surge em meio às demandas das colônias ultramarinas, tratadas como uma espécie de imensa unidade produtora voltada para o mercado metropolitano, tendo na monocultura aqui privilegiada pelas metrópoles europeias, onde se exigia à época grande contingente de mão-de-obra compulsória, alienada em diversos âmbitos, isto é: de sua origem, liberdade e produção (Schwarcz & Starling, 2015). Todavia, tais processos geraram em longo prazo variados efeitos sociais e de sociabilidade que se converteram em mind set compartilhados que permearam as relações sociais brasileiras, uma vez que “não é apenas no nível das relações pessoais que devemos analisar a escravidão (pois como) todos os processos sociais duradouros, a relação acabava por institucionalizar-se” (Patterson, 2008: 34. Grifos nossos).
No último quartel do século XIX somente o Império do Brasil e Cuba ainda conservavam uma ordem baseada na organização social escravocrata (Marquese & Salles, 2016). No caso brasileiro, as leis aprovadas em relação à escravidão desde 1831 até a lei de 1885 tiveram por objetivos mitigar os efeitos da dissolução da ordem escravagista para os fazendeiros, garantir a sobrevivência da monarquia já muito questionada após a campanha no Paraguai2 e, por fim, conter os setores mais radicais do movimento abolicionista. Todavia, é importante salientar que pensar no movimento abolicionista brasileiro requer o cuidado analítico em buscar os meandros pelos quais se desenvolviam as diferentes posições, pois não se tratava de um movimento homogêneo. Por exemplo, se muitos de seus membros entendiam que ser abolicionista pressupunha a filiação direta ao republicanismo como sustentava José do Patrocínio, mesmo assim, após a desintegração da monarquia, o abolicionista André Rebouças foi viver exilado e assim permaneceu até sua morte, sem ter abandonado o monarquismo (Needell, 1993; Alonso, 2015).
Com a derrubada do regime monárquico, o governo provisório ficou sob o comando do marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), sendo o primeiro presidente do Brasil, cujo mandato foi até 1891. Dentre os mais variados pontos de tensões entre as elites oligárquicas e os militares, o mais significativo foi o modelo de organização do Estado brasileiro. Os militares defendiam um modelo republicano centralizado, onde o poder executivo tivesse um elevado poder para, se preciso fosse, ter meios para subjugar o poder legislativo e judiciário. Neste sentido, na visão dos golpistas de 15 de novembro de 18893, o executivo deveria ser forte e centralizador para garantir a autonomia da união, em detrimento da autonomia dos Estados (Queiroz, 1986). Já para as elites oligárquicas, sobretudo os cafeicultores paulistas, o modelo republicano defendido era o federalista, cujo intuito era garantir a autonomia administrativa e econômica dos Estados na execução de seus interesses próprios.
A existência do escravismo em solo brasileiro por mais de três séculos deixou grandes marcas nas instituições nacionais e na sociabilidade experimentada no cotidiano pelos contingentes populacionais negros. A abolição conservadora eximiu o Estado brasileiro de quaisquer obrigações com as populações egressas do regime de exploração compulsória. Na prática isso representou a exclusão sistemática das populações negras ao acesso à cidadania formal celebrada pela Constituição do período e também, dada a aceitação e a adaptação local dos postulados deterministas raciais4, negros e negras foram duplamente lançados às margens da sociedade e virtualmente enquadrados numa sub-cidadania ou cidadania de segunda classe com o advento da república. A nosso ver, tais processos se configuram como efeitos observáveis do prolongamento de um tipo de sociabilidade do passado escravagista e também de uma abolição conservadora feita pelos brancos e para os brancos, como alertou o sociólogo Florestan Fernandes (2007).
Portanto, a forma pela qual a ideia de raça foi mobilizada ao longo da história colonial gerou sérias implicações para as populações não-europeias presentes nessas sociedades periféricas, estendidas, mais à frente, para todos os indivíduos que não fossem caucasianos, gerando assim, a usurpação das identidades históricas dos povos de fora da Europa, sendo este um dos efeitos diretos deste processo. Neste sentido, rejeitou-se a singularidade que cada uma dessas identidades possuía, unificando-as por meio do enquadramento simplório em identidades raciais referenciadas negativamente de maneira uniforme pelo seu espaço nas relações coloniais. Portanto, após esse movimento operou-se a exclusão de toda a produção cultural dessas populações e as unificaram como raças inferiores e incapazes de produzirem expressões culturais elevadas, singulares, cabendo-as produzir culturas inferiores (Quijano, 2005).
Ademais, mesmo nas primeiras décadas do século XX, no caso brasileiro, ainda estavam em vigor os modelos de análise social fortemente informados por modelos deterministas e a noção de raça continuava sendo concebida como fenômenos ontológicos e finais. Assim, no Brasil, como em outras partes do mundo, a antropologia física ou “antropologia biológica”5 foi privilegiada por bacharéis em direito, engenheiros que a difundiam, além de sua aplicação operada por médicos, que possuíam um suposto conhecimento técnico elevado em relação a frenologia e a craniometria, sendo amplamente divulgado entre nós os modelos extraídos da medicina legal do médico italiano Césare Lombroso, bem como das perspectivas antropológicas francesas de Quatrefages, Topinard, Broca e Bertillon (Schwarcz, 2011).
Foi neste cenário anteriormente apresentado que o médico Manoel José do Bomfim e o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto produziram suas reflexões, de modo a tentar entender, e ao mesmo tempo, influir nos rumos da sociedade brasileira. Como assinala Bernardo Ricupero (2011), os intérpretes do Brasil são formados por um conjunto de intelectuais que buscaram influenciar a cultura política e ao mesmo tempo compreender as articulações de forças sociais que operavam na sociedade, movendo a mesma em certas direções. Tais agentes, neste caso mais específico os intelectuais, tentaram por diferentes meios dar vida a projetos societários, condutas e práticas sociais, assumidos por determinados segmentos no conjunto da sociedade e, em alguns casos, influindo sob as dinâmicas das instituições estatais. Não temos dúvidas que tanto Manoel Bomfim, quanto Lima Barreto compuseram este segmento de intelectuais que não apenas pensaram o Brasil, mas que também teve um projeto voltado para o desenvolvimento desta jovem república. Observemos agora como tais aspectos, em termos de persistências6, foram percebidas em algumas das formulações dos autores.
2. O entrelaçamento entre escravidão, abolição conservadora e república na perspectiva de Manoel Bomfim
Manoel Bomfim foi um intelectual adepto da organização política republicana (pelo menos de modo pragmático), no entanto, isso não significou que a maneira como a república se desenvolveu no Brasil esteve isenta de questionamentos. Bomfim sinalizou, em seu ensaio inaugural, que os esforços dos “homens de política” em seguir os pressupostos da opinião pública europeia para civilizar as nações do continente sul americano, no intuito de inserirem-se na galeria das nações modernas e civilizadas, de facto acabou por piorar as condições econômicas e políticas destas nações, haja vista que os problemas correntes eram de outra ordem (Bomfim, 1905).
Para Mónica Albizúres Gil (2016), ainda que Manoel Bomfim tenha privilegiado as categorias biológicas na construção de sua teoria do parasitismo social, ele conseguiu produzir uma explicação consistente em torno das relações de dominação em que os sujeitos se encontravam englobados, relações denominadas por Bomfim como parasitárias; estariam imunes a essas relações parasitárias apenas uma elite branca que compartilhava a condição de inação e estagnação típica da infecção causada por um parasita. Ademais, com a imposição contínua de fronteiras imaginárias ao corpo social, como a normalidade e a anormalidade; o saudável e o doente; o civilizado e o bárbaro, tendo como referência um quadro hierárquico, subsidiou o fortalecimento na teorização de Manoel Bomfim desde os fins do século XIX.
Pois, essas fronteiras sociais dissolveram-se na imagem construída pelo médico Manoel Bomfim em relação ao parasita: múltiplas interações relacionadas à intimidade desse corpo e, a partir destas múltiplas interações, foi possível descrever e, ao mesmo tempo, compreender a complexidade das estruturas coloniais e nacionais, tanto no cenário brasileiro, quanto no contexto sociopolítico mais geral da América Latina, bem como a sua durabilidade. Essa intimidade se aprofunda e rebaixa, para o caso brasileiro, e comparável em dimensão latino-americana, nas relações sexuais inter-raciais no microcosmo das finanças regidas pelo poder branco patriarcal (Gil, 2016). Podemos observar tais assertivas no argumento de Manoel Bomfim, inclusive, na reflexão do médico em relação a abolição conservadora da escravidão no Brasil:
“Decretou-se a libertação, e foram-se todos, considerando a reforma como acabada; e si alguém ainda se ocupou do caso - foi para pedir ou propor que se importassem braços baratos, que pudessem substituir os antigos escravos, nada se alterando nos costumes e nos processos: chineses ou italianos, que viessem ocupar as antigas senzalas - um salário baixo, equivalente à alimentação e ao juro do preço do negro... tudo mais como antes. Quanto a essa população das classes inferiores, antigos escravos, nacionais proletários - quanto a estes: que sejam obrigados por lei a trabalhar; pedem-se leis sobre a vagabundagem, lei de locação de serviços, na convicção de que, no momento em que alguns decretos, substanciosos de artigos e parágrafos, vierem publicados, todos esses homens se tornarão logo ativos, adorando o trabalho, e dispostos a dar o seu labor ao fazendeiro ocioso e bruto, por um salário miserável. O essencial, era garantir o fazendeiro tal qual ele é, criando embora dificuldades no futuro. E o fazendeiro, que viveu sempre parasita, já não quer somente braços baratos; reclama também quotas diretas, em espécie - auxílios à lavoura, compensação aos lucros cessantes... Ontem parasita do escravo, hoje parasita do Estado.” (Bomfim, 1905: 180-181)
Mesmo com a mudança regimental no que concerne à organização política e social do Estado brasileiro, muitos elementos conseguiram sobreviver e coexistir junto à modernidade capitalista competitiva. Tais processos de tão enraizados, poderiam ser formalmente findados, mas não virtualmente. Como nos informa Reinhard Bendix (2019), as sociedades industriais retêm certos aspectos de sua estrutura social tradicional que se combinam com o desenvolvimento social e econômico moderno em diversos níveis. Tais elementos podem ser notados através de como se estratifica os grupos sociais dentro da estrutura ocupacional, como se concentram e se relacionam os agentes sociais nas áreas urbanas. Neste sentido, nas sociedades industriais institucionalmente mais jovens e em certos aspectos descritas por atrasadas, as noções de tradição e modernidade são complementares entre si, ou seja, a percepção de que ambas as dimensões são mutuamente excludentes corresponde a uma falsa noção. Portanto as estruturas e as atitudes sociais tendem a persistir por um longo espaço de tempo, mesmo após o desaparecimento das condições sociais que as originaram. Tais amálgamas gestadas desta simbiose tradição e modernidade são reproduzidas nas diversas relações divergentes no seio da sociedade mais ampla, impondo um desenvolvimento parcial dadas as condições relacionais em curso (Bendix, 2019).
Ademais, devido a tal especificidade, Don H. Doyle e Marco A. Pamplona (2008), sustentam que as nações pertencentes ao continente americano não se enquadrariam em um paradigma tradicional, caracterizado pelo modelo europeu que supunha uma certa “pureza étnica”, uma vez que seriam caracterizadas, de facto, por uma formação multiétnica. Neste sentido, a ideia de um etnonacionalismo seria incompatível em sua essência com as nacionalidades americanas. Ainda que na América, tenha ocorrido a acomodação dos diversos grupos étnicos, tal acomodação não se deu de modo pacífico e sem tensões, muito pelo contrário, aqui se assumiu a mobilização destes elementos em seu interior, como uma forma de legitimar o domínio do branco europeu e seus descendentes, além da subjugação das populações negras e indígenas, tornando-as uma espécie de súbditos forçados no interior destas nações, sendo assim, os grupos não-brancos enquadrados enquanto etnias subjugadas.
Então, quando Manoel Bomfim dizia “essa população das classes inferiores, antigos escravos, nacionais proletários”, ele estava tentando trazer à luz que as condições não tinham sido alteradas por força de lei e, por outro lado, a mesma sentença já sinalizada indicaria também uma genealogia, representando a mesma face do agente social que efetivamente trabalhava, seja no passado, seja no presente do autor. Com isso ele estava apontando para um dado caro à sociabilidade brasileira nos fins do século XIX e início do XX, o facto de a instituição da escravidão ter maculado o universo do trabalho e não seria com a assinatura de alguns decretos que de maneira satisfeita o trabalhador venderia por um salário miserável a sua força ao empregador ocioso, pelo único atrativo de um status de “trabalhador-livre”.
Já a noção de melhoramento dessas nacionalidades por meio da imigração europeia, para Manoel Bomfim tal premissa se ancorava num falseamento das condições existentes de produção e a não criação de condições efetivas para a reprodução do trabalho-livre em bases racionais. Bomfim reconheceu que isso se ancorava na falta de observação, pois não teria entrado no debate a alteração das bases e/ou dos modelos arcaicos em que se dava o regime de trabalho. Assim, o que se queria era substituir o liberto e seus descendentes e, em alguma medida, importar braços “brancos” para cumprir o papel análogo ao agente produtor de outrora e mudar a configuração racial da nação. Nesse sentido, a crítica de Manoel Bomfim à imigração se sustentaria num processo amplo de manutenção das condições arcaicas de produção e a tentativa de regenerar as populações locais das classes tidas como inferiores, ideologicamente tomadas por preguiçosas e incapazes de trabalhar.
A obra A América Latina: males de origem (1905) foi uma espécie de resposta a esta questão, cuja finalidade de Manoel Bomfim era contrapor as concepções científicas dominantes da época, apresentando outra possibilidade de entendimento da origem dos problemas sociais e estruturais latino-americanos, pois para ele tais problemas não se concentravam nas características físicas, raciais ou hereditárias de certos grupos, mas sim nas relações e processos sociais do passado, evidenciadas pelo médico a partir dos efeitos deletérios que a colonização exerceu sobre o colonizado. Neste sentido, os males que acometiam o Brasil não decorriam das configurações endógenas, mas sim dos efeitos exógenos surgidos por meio das assimetrias entre colonizador e colonizado. O livro foi uma dupla resposta: (I) aos pressupostos e às formulações contidas nas obras de autores como Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Sylvio Romero, etc.; e (II), na mesma medida, A América Latina também responde às provocações europeias do porquê as nações latino-americanas supostamente não teriam dado certo, tomando como critérios fundamentais a constituição racial das populações locais, tese esta que Manoel Bomfim rechaçou integralmente em seu ensaio inaugural de 1905 (Oliveira, 2015).
Alguns anos mais tarde, em 1914, os ideais e as ilusões pacifistas em relação à civilização ocidental findam-se, levando consigo a belle époque devido ao advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). As causas do conflito são bastante complexas, pois as tensões que tiveram como último resultado o confronto entre várias nações, teve sua gênese no último quartel do século XIX. Dentre as múltiplas causas para o evento podemos destacar: a insatisfação francesa com a derrota para os prussianos na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871); o crescimento de um sentimento nacionalista; o fortalecimento do Pan-Eslavismo e a disputa da Sérvia (apoiada pela Rússia) contra a Áustria-Hungria pelo controle da Bósnia; além das disputas inter-imperialistas materializadas na corrida por novas colônias no continente africano e asiático, entre outros motivos (Hobsbawm, 2014; Stevenson, 2020).
No Brasil, até por conta da forte influência francófila desde os últimos anos da monarquia até pelo menos a segunda década do século XX (Needell, 1993), o sentimento quase geral nos anos em que estava em curso a guerra foi majoritariamente de ojeriza a Alemanha e seus aliados, ainda que a intelectualidade se tenha dividido em três facções distintas: os aliadófilos (defensores de franceses e ingleses no conflito), que compunham, do ponto de vista quantitativo, por motivos óbvios, o maior grupo; os neutrais, e, por fim, os germanófilos - onde os dois últimos correspondiam aos grupos de menor adesão (Abranches, 1917; Bueno, 2003). Segundo Clodoaldo Bueno (2003), Lima Barreto e Manoel Bomfim seguiram posições divergentes frente aos posicionamentos em relação à filiação a um lado ou outro ou a um não lado na guerra: enquanto Manoel Bomfim foi um aliadófilo, Lima Barreto esteve intelectualmente filiado aos neutrais7.
Em 1915, Manoel Bomfim teve seu artigo, que havia sido publicado um ano antes no Jornal do Comércio, transformado em livro. A Obra do Germanismo (1915) era um texto panfletário, onde ele se colocava em defesa explícita da França, Inglaterra e da Bélgica. Inclusive, a sua venda teve o valor revertido para a Cruz Vermelha belga. Contudo, o que nos chama a atenção foi que, na pressa de avaliar a postura alemã e a “inocência” dos aliados frente às crueldades impetradas pelos “bárbaros” alemães, Bomfim pareceu desconsiderar seus postulados anteriores e estabeleceu uma narrativa cheia de sofismas, que ele tanto criticou dez anos antes.
A omissão de Manoel Bomfim em sua propaganda, aferiu a Bélgica uma posição de “nação mais pacifista”, desconsiderando que foi a Bélgica, representada na figura de seu monarca, o rei Leopoldo II (1835-1909), que de 1895 até 1908 promoveu um conjunto de atrocidades caracterizadas desde a amputação de narizes, mãos, braços e pernas de crianças, idosos, homens e mulheres, até mesmo à morte de milhões de congoleses (Wesseling, 2008). À vista disso, a nomeação de “mais pacífica”, “civilizada”, “honesta” só se realizou no plano retórico e por meio da omissão da atuação colonial dos países que compuseram a Entente na primeira grande guerra. Não obstante, tal posicionamento o levou a aceitação quase que integral dos pressupostos antropológicos evolucionistas (Castro, 2005), que foi objeto de crítica estabelecida de forma pública uma década antes (Bomfim, 1905). Como podemos observar em suas palavras:
“Si, abominando a guerra, perdem os povos a aptidão ao imperialismo - tanto melhor: a propaganda humana, o proselitismo livre, virão incorporar na grande conciliação civilizadora os que ainda precisam de uma assistência educativa. A condição de escravo não há de ser, eternamente, um estágio indispensável na civilização. (...) Confiemos na civilização; o brutalismo não vingará, por anacrônico. Desse imperialismo voraz, irracional, a mais certa consequência é a generalizada guerra de defesa, por toda a Europa.” (Bomfim, 1915: 31-32)
Notem que a citação acima indica algumas viradas de pensamento bem contraditórias quando feita a ponte com seu trabalho de dez anos antes. Todavia, ao fazermos a mediação direta ao contexto de enunciação de suas narrativas-textuais, percebemos que a defesa da Entente se fragilizaria caso fosse mobilizada somente a omissão de processos históricos e sociais, então Manoel Bomfim buscou suavizar as práticas imperialistas e neocoloniais dos Estados inimigos da Alemanha na Grande Guerra. Foi por meio deste “malabarismo semântico” que Manoel Bomfim (1915) converteu o imperialismo executado pelos aliados em “assistência educativa” para a civilização e progresso, da mesma forma que a noção de escravidão foi convertida em processo educativo transitório. Em ambos os casos, somente poderiam realizar-se caso fossem uma obra do “espírito jurídico e administrativo latino” ou da “capacidade moral” anglo-saxã, diametralmente oposta ao fim civilizatório e processual, caso fossem conduzidas pela Alemanha (Bomfim, 1915).
Neste sentido, a defesa do imperialismo se colocou como elemento indispensável para a tomada de posição favorável a algum dos lados do conflito. Ainda que essa defesa não desconsidere a violência e a dominação no processo, para fins de propaganda, Manoel Bomfim positivamente reconheceu a dominação imperial como um “doloroso processo de civilização extensiva”. Importante notar, que a referência à escravidão de forma similar ao que supostamente foi o imperialismo se constituiu enquanto uma analogia, pois, formalmente, naquele contexto não existia nenhuma nação com uma instituição escravocrata moderna em operação, isto é - todas as ordens escravocratas já haviam sido abolidas. Então, a analogia se vinculou, em alguma medida, à condição observada como análoga dos nativos das áreas de interesses neocoloniais, além do reconhecimento da premissa de superioridade dos europeus frente aos demais povos, concepção que era generalizada entre os europeus (Elias, 1997).
3. O entrelaçamento entre escravidão, abolição conservadora e república na perspectiva de Lima Barreto
Dentre os romances de Afonso Henriques de Lima Barreto, nenhum teve um impacto tão grande em sua vida quanto Recordações do escrivão Isaías Caminha (1961a), publicado no formato de livro em 1909. Esse romance foi escolhido a dedo por Lima. Ele já tinha concluído o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1961c) anos antes. Lima Barreto optou por se estrear com as Recordações dado o seu potencial polemista e escandalizador, que ao seu ver eram os ingredientes necessários para impulsionar sua carreira literária (Schwarcz, 2017).
Isaías Caminha vislumbrava a educação, materializada no doutorado como um caminho para redimir a sua vida que se desenvolvia em um espaço de certa fragilidade social. Aluno brilhante nos primeiros anos escolares na escola de sua cidade, ele via em si mesmo um jovem com capacidades intelectuais invejáveis, alçar voos maiores era o desejável e o diploma acadêmico era o meio para realizar esse voo. Todavia, em muitos casos, a cor da pele e o nascimento pobre diminuíam as potencialidades que a formação poderia exercer socialmente.
O drama de Isaías Caminha, de forma mais geral, foi o drama do negro no pós-abolição. Psicologicamente, isso começa a fazer sentido para o rapaz nos olhares atravessados a caminho da cidade grande e na superproteção de sua mãe. O autoquestionamento sobre o semblante da sua própria mãe, no momento de sua partida para a cidade grande, era um indicativo dos percalços que Isaías encontraria, pois nem todo o brilhantismo escolar poderia o livrar dessas marcas, por isso sua mãe orientava-o: “- Vai, meu filho, disse-me ela afinal. Adeus!... E não te mostres muito, porque nós...” (Barreto, 1961a: 57). A lógica em usar o: não “te mostres muito, porque nós... negros”, no fundo a mãe de Isaías preparava o filho para uma relação social em muito ilegível em seu círculo familiar e na sua vizinhança, mas que na cidade grande seria mobilizada para demarcar os espaços dos agentes sociais, como também para distingui-los no plano cultural, psicológico e cognitivo (Elias & Scotson, 2000).
Tal construção deste cenário em seu romance, não se deu por acaso. Em seu próprio contexto social, Lima Barreto teve uma educação formal invejável para a época, se tratando de um agente social negro nascido em fins do século XIX. Barreto muito cedo tornou-se descrente em relação a um suposto aspecto transformador por parte da educação, em um cenário altamente hierarquizado racialmente como o brasileiro. Como sustenta Maria Alice Rezende de Carvalho (2017), o escritor Lima Barreto nasceu num contexto conturbado da ordem imperial brasileira, apesar de, ainda assim, no Brasil monárquico os caminhos da ascensão social de negros por meio da educação terem sido possíveis, mesmo que de maneira precária e subalternizada. Todavia, com o advento da Primeira República, Lima Barreto percebeu que sua inserção social, assim como a dos demais negros e mulatos daquela sociedade, passou a ser fortemente marcada pelo estigma racial, devido a adaptação local e difusão mais contundente dos determinismos raciais formulados na Europa nos séculos XVIII ao século XIX (Schwarcz, 1993). Tais processos acabaram refletindo-se no sentimento de inadequação racial e social de Lima Barreto, e, por conseguinte, permeou sua produção literária condenatória aos desajustes sociais do Brasil (Miceli, 2001; Carvalho, 2017; Schwarcz, 2017).
Tal distorção societária era notada desde as relações sociais mais simples entre os indivíduos, como nas relações entre agente social e instituições. Uma das passagens mais dramáticas do livro de Lima Barreto, que expõe essa relação, se deu a partir da cena em que Isaías Caminha fora acusado de roubo e o protagonista recorda essa experiência em uma delegacia de polícia. Eis a forma que o protagonista narrou o ocorrido:
“- Nada, Capitão Viveiros. - E o caso do Jenikalé? Já apareceu o tal “mulatinho”? Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado assim, as lágrimas me vieram aos olhos. Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consideração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se juntava ao meu orgulho de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada. (...) sentia na baixeza do tratamento, todo o desconhecimento das minhas qualidades, o julgamento anterior da minha personalidade que não queriam ouvir, sentir e examinar. O que mais me feriu, foi que ele partisse de um funcionário, de um representante do governo, da administração que devia ter tão perfeitamente, como eu a consciência jurídica dos meus direitos ao Brasil e como tal merecia dele um tratamento respeitoso.” (Barreto, 1961a: 110-111)
Neste caso, o que mais causava revolta em Isaías era o facto de tal atitude preconceituosa ter partido de um agente público. Dessa forma, a passagem suscita o debate em relação à institucionalidade da discriminação racial por parte do Estado brasileiro. Mesmo com o término formal da ordem escravagista e a conversão dos antigos cativos e seus descendentes em uma condição de cidadão, ao menos formalmente, pois de facto isso não ocorreu na prática, pelo menos, não de forma equânime. Não obstante, na república a visão negativa em relação a essas populações se agravou.
Na administração municipal do prefeito Pereira Passos (1902-1906) foi o período de maior volume das reformas urbanas no Rio de Janeiro (à época o Distrito Federal), reformas estas marcadas pelo seu caráter desigual, pois teve como mote o afastamento das populações pobres das áreas centrais da cidade. Neste contexto, nascera “a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do Conselho Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos os transeuntes da cidade, todos que saíssem à rua seriam obrigados a vir calçados” (Barreto, 1961a: 203), tal medida foi refletida nas recordações de Isaías Caminha como uma dessas crises de elegância, referenciada pela inveja que as elites políticas tinham da “Argentina (que) não nos devia vencer; o Rio de Janeiro não podia continuar a ser uma estação de carvão, enquanto Buenos Aires era uma verdadeira capital europeia” (Barreto, 1961a: 204. Grifos nossos). Então:
“Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante e branca; cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso projeto dos sapatos.” (Barreto, 1961a: 205)
A referência a Buenos Aires era antes por entendê-la como um esboço do que se acreditava ser, do que fruto de simples rivalidade. A crença de ser uma cidade de perfil europeu estava claro no projeto (Gaultier, 2006), por isso Isaías Caminha os concebe por Haussmanns, referência a Georges-Eugène Haussmann, prefeito de Paris entre 1853-1870, responsável pela Reforma Urbana terminada na década de 1870 naquela cidade. No fim, a reforma cumpriria o papel de num primeiro momento dar a cidade uma estética europeia, para posteriormente inferir sobre “os termos” da sociabilidade que se realizaria na cidade, ao menos em suas áreas observadas (Benchimol, 1992).
No romance O triste fim de Policarpo Quaresma (1959), Lima Barreto fez da figura de Felizardo o modelo para evidenciar o sentimento de abandono impetrado pelo Estado brasileiro. Este problema social que muito interessava ao autor na sua construção romanesca, era advindo da simbiose entre a precariedade da situação de classe ancorada a identidade racial. A precariedade da condição de classe era uma barreira difícil de ser rompida, contudo se ancorada à “cor preta” aí a coisa ficava mais dramática. Como podemos notar no diálogo de Olga, afilhada do Major Quaresma, e Felizardo, um ajudante de Policarpo no Sítio Sorriso:
“Olga encontrou o camarada cá em baixo, cortando a machado as madeiras mais grossas; Anastácio estava no alto, na orla do mato, juntando, a ancinho, as folhas caídas. Ela lhe falou. - Bons dias, “sá dona”. - Então trabalha-se muito, Felizardo? - O que se pode. - Estive ontem no Carico, bonito lugar... Onde é que você mora, Felizardo? - É doutra banda, na estrada da vila. - É grande o sítio de você? - Tem alguma terra, sim senhora, “sá dona”. - Você porque não planta para você? - “Quá sá dona!” O que é que a gente come? - O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro. - “Sá dona tá” pensando uma cousa e a cousa é outra. Enquanto planta cresce, e então? “Quá, sá dona”, não é assim: - Terra não é passa... E “frumiga”?... Nós não “tem” ferramenta... Isso é bom para italiano ou “alamão”, que governo dá tudo... Governo não gosta de nós...” (Barreto, 1959: 163)
No fragmento destacado acima, Lima Barreto expõem os dois processos que se mostraram mais caros à vida pregressa da população negra no Brasil, a saber: a não integração e/ou a criação de políticas públicas que garantissem a mínima igualdade de condições para o trabalho e a imigração europeia como projeto oficial de substituição populacional do Estado Brasileiro. Ambos os processos não foram criações da administração republicana, ainda que tenha sido nela que a situação dessas populações se tenha agravado. Desde a promulgação da primeira lei que “gradualmente” ensaiava o fim formal da escravidão no Brasil, a imigração aparecia como um projeto, por vezes descrito em leis (Chalhoub, 2012; Alonso, 2015). Assim sendo, mesmo com terra “própria”, Felizardo não possuía os meios necessários para trabalhar sua terra, como era garantido aos colonos europeus.
Outrossim, uma das discussões interessantes do romance Numa e Ninfa (1961b) foi inserida por Lima Barreto por meio de uma das figuras icônicas da estória: Lucrécio Barba-de-Bode. Sua trajetória se desenvolve de tal forma que apreende as nuances de como foi demarcada na Primeira República os espaços de interação e sociabilidade política para os agentes negros. Foi por meio da alegoria do capanga que esses agentes sociais exerceram o seu “direito constitucional” de participar da política (Brazil, 1891), e Barreto explorou estes elementos na apresentação do personagem, além de demonstrar que a noção de política como um “direito constitucional de todos” foi apenas mais um eufemismo daquele contexto social. Notem a inserção deste personagem na trama:
“(...) Lucrécio, ou melhor: Lucrécio Barba-de-Bode, por sua alcunha, que tão intempestivamente interrompia o almoço do Deputado Numa Pompílio, não era propriamente um político, mas fazia parte da política e tinha o papel de ligá-la às classes populares. Era um mulato moço, nascido por aí, carpinteiro de profissão, mas de há muito que não exercia o ofício. Um conhecido, certo dia, disse-lhe que ele era bem tolo em estar trabalhando que nem um mouro; que isso de ofício não dá nada; que se metesse em política. Lucrécio julgava que esse negócio de política era para os graúdos, mas o amigo lhe afirmou que todos tinham direito a ela, estava na Constituição. (...) Já o seu amigo fora manobreiro da Central, mas não quis ficar naquela “joça” e estava arranjando cousa melhor. Dinheiro não lhe faltava e mostrou-lhe vinte mil-réis: - sabes como arranjei? fez o outro. Arranjei com o Totonho do Catete, que trabalha para o Campelo. Lucrécio tomou nota da cousa e continuou a aplainar as tábuas, de mau humor. Que diabo? Para que esse esforço, para que tanto trabalho? (...) Fez-se eleitor e alistou-se no bando do Totonho, que trabalhava para o Campelo. Deu em faltar à oficina, começou a usar armas, a habituar-se a rolos eleitorais, auxiliar a soltura dos conhecidos, pedindo e levando cartas deste ou daquele político para as autoridades. Perdeu o medo das leis, sentiu a injustiça do trabalho, a niilidade do bom comportamento.” (Barreto, 1961b: 58-59)
Neste romance, Lucrécio Barba-de-Bode foi uma figura central para o autor impor suas reflexões acerca do preconceito racial e das posições que cabiam às populações negras “no mundo da política”. O personagem ocupa o espaço do executor da “politicagem suja”, para o fortalecimento das bases dos que ocupavam posições de destaque no parlamento, todavia, isso não significava que fosse permitido a ele vislumbrar melhores colocações, ainda que Barba-de-Bode acreditasse que sua hora iria chegar, como ele bem evidenciava a sua esposa Ângela na cena em que buscava uma “posição” para o Doutor Bogóloff. Ângela ficou feliz com a “influência do marido”, mas lembrava-o que ele conseguia posições para os outros e para ele mesmo nada, aí Lucrécio advertiu-a “- Deixa estar, mulher, que a minha vez há de chegar... Quem não tem habilitações tem que esperar” (Barreto, 1961b: 248). Entretanto, será que o problema era mesmo de habilitações? Pois em toda a trama foi realçada a mediocridade de muitos ocupantes de postos valorativos na estrutura política e em outras ramificações da máquina estatal brasileira.
Esse quadro se completou no recorte cronológico que aqui estabelecemos, com a publicação de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, no ano de 1919. Trazendo à luz mais arquétipos da representação da sociabilidade do negro naquela sociedade, Lima Barreto encerra no universo romanesco a sua reflexão educacional iniciada em Recordações somente em Vida e Morte. Aqui, fica claro, que apostar na educação como meio de superação dos problemas sociais e como meio de inserção social, constituiu-se enquanto um falseamento, não pela educação em si, mas pelo modo como a república se tornou uma realidade no Brasil.
Portanto, em um ambiente institucional vigorosamente dominado por elites conservadoras e preconceituosas, a educação não tinha meios de garantir possibilidades mínimas de mobilidade, como foi observado na ordem passada (Carvalho, 2017). Desta maneira, muito do que Lima Barreto levantava em seus mosaicos relacionais na ficção, o antropólogo Didier Fassin (2007; 2019) analisou por meio do conceito de memória incorporada, que permite entender não só as continuidades, mas como isso é encucado nos indivíduos de modo a aceitarem esses lugares depreciativos que são imputados para consigo. Em outras palavras, a memória incorporada é a lembrança que os próprios corpos trazem de toda uma carga relacional anteriormente vivida por seus antepassados, que remete à lembrança das ações experimentadas no presente.
De certo, os quadros pintados por Lima Barreto evidenciavam um cotidiano difícil para as populações negras, mestiças e pobres no pós-abolição. A recriação ficcional desses dilemas carregava muito das aspirações e em igual medida as interdições sofridas pelo escritor. Barreto ao refletir sobre sua infante recordação no dia do seu aniversário em que completou sete anos de idade, no prenunciado 13 de maio de 1888, recordava o sorriso do pai, a alegria dos citadinos no Paço Imperial com a assinatura da Lei Áurea - um festejo a céu aberto. Anos mais tarde, Lima descreveu as mesmas lembranças com relativa tristeza, pois aquele sonho de liberdade “se concretizou” sem a conjugação da igualdade (Schwarcz, 2017). Desta forma, é inequívoco que o lugar e a posição de fala do romancista exerceram forte influência na maneira com que o tema da escravidão e seus efeitos pregressos em uma ordem republicana ganhavam narrativas e corpo nos seus textos, evidenciados desde o cotidiano aos dilemas experenciados por seus personagens ficcionais, que carregavam em si muito das experiências do seu criador.
4. A comparação entre Manoel Bomfim e Lima Barreto
Segundo Oswaldo Truzzi (2005), em alguma medida, todas as ciências humanas e sociais, ainda que de maneira implícita, embutem em seus projetos investigativos uma perspectiva comparativa, uma vez que buscam explicar um determinado fenômeno em termos de sua tipicidade, representatividade ou unicidade. Qualquer uma destas dimensões implicam algum grau de comparação. Neste sentido, trabalhando neste nível de generalização, “Durkheim, ao escrever As Regras do Método Sociológico (1895), já insistia que ‘a sociologia comparativa não é um ramo particular da sociologia; mas a própria sociologia, na medida em que se afasta de ser puramente descritiva e aspira a dar conta dos fatos’(sociais)” (Truzzi, 2005: 131. Grifos nossos). Dito isto, Truzzi (2005) então salienta, que partindo desta perspectiva, poderia se pressupor a inexistência de um método propriamente comparativo, uma vez que todos os desenhos e técnicas de pesquisa se encerrariam em si mesmo em algum nível de comparação.
A produção de sentidos que a linguagem escravocrata engendrou na sociabilidade republicana pode ser analisada por múltiplas esferas e relações. Tanto Manoel Bomfim, quanto Lima Barreto, cada um a seu modo, evidenciaram prolongamentos da sociabilidade escravagista em seu tempo. Todavia, os sentidos destacados por eles estiveram vinculados ao que cada um quis realçar. Assim, ligavam-se diretamente aos elementos que eram mais caros a esses autores no debate social mais amplo.
Manoel José do Bomfim mobilizou, em 1905, a escravidão para discutir a persistência da manutenção de meios arcaicos de produção e a atualização das péssimas condições de trabalho como sendo o prolongamento do regime anterior. Então, o foco de Manoel Bomfim, que naquele momento tinha uma concepção aderente aos ideais civilizatórios ocidentais, teve sua apreensão da essência escravocrata na república voltada com maior vigor para a crítica à irracionalidade em que o trabalho continuou sendo processado. Tal continuísmo com meios arcaicos de produção ou de relações com o mundo do trabalho eram reflexos de uma longa trajetória de ganhos vultosos obtidos de forma parasitária pelo fazendeiro e seus correlatos.
Para Manoel Bomfim, a escravidão praticada por mais de três séculos teria sido responsável por moldar a forma que aquela sociedade observava o trabalho por parte dos nacionais, como correlata à mácula, degradação física e moral; além de corresponder ao espaço socialmente legado ao negro em situação de cativeiro. Daí a resistência por parte do brasileiro em reconhecer algum valor ao trabalho manual, como bem observou Gilberto Freyre, em seu Sobrados e Mucambos (2013). Segundo Bomfim, o trabalho-livre teve de conviver na república com a referência imediata do trabalho exercido no contexto do antigo regime.
Em relação à condição que a população liberta e seus descendentes foram inseridos às margens daquela sociedade competitiva, juntamente com os demais segmentos pauperizados, Manoel Bomfim defendia radicalmente a necessidade de um amplo projeto educacional de instrução popular para converter estes segmentos populacionais em cidadãos de facto. Em outras palavras, a correção desses desajustes sociais e a garantia de formação de um povo, elemento fundamental em uma república, passariam por colocar em prática a instrução popular. Tal acepção em torno da educação estabelecida pelo médico sergipano se constituiu em um importante ponto de distanciamento e diferença entre ele e Lima Barreto.
Segundo Antonio Candido (1989), o papel da educação no argumento de Manoel Bomfim foi uma espécie de incoerência, devido ao suposto descompasso em relação ao seu diagnóstico original, substancial e profundo da realidade social brasileira de seu tempo, representando assim a educação como uma terapêutica supostamente reformista frente aos profundos problemas nacionais. Contudo, longe de ser uma incoerência, André Botelho (2002), afirma que Manoel Bomfim possuiu uma postura comum, ao menos neste aspecto aos intelectuais de seu tempo, referenciados pelos ideais de um reformismo ilustrado. Se tratarmos tal aspecto em termos de ambiguidade, a educação foi uma espécie de ambiguidade comum aos seus congêneres da Geração de 1870. Ademais, o que fica claro, é que o abandono da tese educacional por Manoel Bomfim, ocorreria apenas já no fim da vida deste médico, sendo superada em seu último livro da trilogia iniciada no final dos anos 1920 e concluída no início dos anos 30, quando Manoel Bomfim abandonou o projeto educacional como um método viável para a redenção do Brasil, passando a reconhecer como única estratégia viável uma revolução popular aos moldes da Revolução Mexicana8 (Candido, 1990).
Com a penetração sistêmica da noção de raça nas relações sociais da modernidade, acabou-se criando o que o W.E.B. Du Bois (2021) chamou de color lines, processo decisivo na criação e consolidação do modelo de estratificação social da sociedade norte-americana, que ele classificou como castas americanas. Dentro do sistema de castas americano a população de cor estaria sujeita a toda a sorte de relações assimétricas, violências e preconceitos, isto é, processos experimentados pela população negra por conta das intransponíveis diferenças raciais. Assim como W.E.B. Du Bois, Afonso Henriques de Lima Barreto, por meio de sua arte literária, denunciou como a categoria raça foi instrumentalizada de modo a impor diversas restrições informais à cidadania de indivíduos “de cor”. Neste cenário, em que a arbitrariedade da modernidade, mediada pela noção de raça penetrada nas dinâmicas sociais, a educação não poderia cumprir este papel “regenerador” equânime, portanto, seria incapaz pensar na integração da população negra por meios educacionais, nem mesmo em sua mobilidade social, pois outros critérios invariavelmente seriam operados para negar o acesso à cidadania plena para este segmento populacional.
De forma destoante ao seu argumento de 1905, Manoel Bomfim, em sua argumentação de 1915 em A Obra do Germanismo, atribuiu à escravidão uma conotação positiva: a de educação civilizatória e transitória ou uma educação extensiva para a civilização. Dez anos após a publicação de A América Latina: males de origem, Manoel Bomfim abriu mão de suas narrativas iniciais e, em nome da defesa da Entente na Primeira Guerra Mundial, omitiu dados históricos, suavizou relações violentas e discriminatórias de modo a convencer os germanófilos e os neutrais do país que a tomada de lado em prol da França, Inglaterra e Bélgica era o único resultado viável em direção a uma suposta defesa natural à civilização e ao progresso, ao passo que aceitar o lado germânico corresponderia adesão à barbárie e ao caos. Então, foi neste cenário globalmente conturbado, que a suavização da escravidão operada por Manoel Bomfim se configurou como uma maneira de remodelar no plano das ideias as atrocidades neocoloniais impetradas especificamente por franceses, belgas e ingleses.
Conquanto, a radicalidade do argumento de Manoel Bomfim em 1915, surge diametralmente oposta à sua inserção no debate intelectual operada anteriormente; ao invés de preliminarmente pressupor uma virada reacionária, talvez tenhamos antes que analisar tais pressupostos vis-à-vis ao seu contexto de enunciação. Em 1905, por mais radical se analisado em referência a outros documentos ensaísticos do período, a noção de civilização e progresso estão lá, implicitamente sendo defendidas, ainda que por meio de “outra chegada” que não a experimentada pelo autor na Primeira República. Em vista disso, este dado é importante, pois nos garante reconhecer não um abandono aos seus pressupostos iniciais, pelo menos não nesse momento, mas sim, a sua intencionalidade ao defender elementos antes reconhecidos como indefensáveis por ele mesmo.
Deste modo, a noção de escravidão como educação civilizadora, extensiva e transitória, ganha sentido como instrumento retórico de defesa à posição franco-britânica na Grande Guerra. Mesmo porque, em 1915, estamos falando de um contexto em que formalmente a instituição escravagista já estava abolida em todas as sociedades contemporâneas. Então, falar em escravidão em referência à educação civilizadora, no fim, apenas cumpriu o papel de defender países que foram atuantes na comercialização de agentes escravizados, na exploração do trabalho compulsório em suas possessões coloniais e até mesmo dos seus empreendimentos neocoloniais. Assim, perfez, sobretudo, o papel de minimizar as violências impetradas por essas nações ao longo de sua história, consequentemente legitimando a defesa das mesmas como “guardiãs” da civilização e progresso contra a barbárie; garantindo assim, certa força discursiva e condenatória à postura alemã e de seus defensores em solo brasileiro, ao invés de corresponder a uma reformulação reacionária de suas teses anteriores.
Afonso Henriques de Lima Barreto chegou a se filiar à Liga dos Aliados em razão da Primeira Guerra Mundial, mas, em pouco tempo, voltou atrás, posicionando-se de forma neutra ao conflito. Ainda que Lima Barreto em algumas crônicas tenha se colocado como contrário à postura alemã no desenrolar deste episódio catastrófico para a humanidade, ele não desabonou os integrantes do outro lado do conflito, por isso, sua posição de neutralidade à guerra. Mesmo sendo fortemente influenciado pela cultura francesa, como muitos dos intelectuais brasileiros de seu contexto, o escritor não cometeu equívocos indefensáveis para salvaguardar a França e seus aliados como fez Manoel Bomfim, muito pelo contrário.
No plano externo, Lima Barreto se posicionou de forma contrária às imposições abusivas dos vencedores aos derrotados alemães, sugerindo que com tais medidas seria impossível alcançar a paz duradoura; no plano interno, ele se colocou frontalmente em oposição aos sujeitos que cometiam diversos abusos contra os descendentes de alemães que viviam no Brasil e a vandalização de seus estabelecimentos comerciais. Tal posição foi evidenciada pelo escritor em sua crônica A minha Alemanha, publicada em 20 de setembro de 1919, na Revista A.B.C., onde Lima Barreto descreveu: “gritadores por aqui levam a berrar contra os alemães de Santa Catarina. Pois olhem eles: eu sou mulato, tenho três gerações de homens nascidos no Brasil; eu amo semelhantes alemães” (Barreto, 2004: p.19). Saindo em defesa deste segmento que vinha sendo perseguido, Lima Barreto tentou lembrar aos brasileiros da inserção de estrangeiros ao tecido social brasileiro e a sua participação em diversas áreas da produção nacional, apontando: a “verdade é que a farinha de mandioca que comemos, herança ainda dos índios, é fabricada por esses alemães” (Barreto, 2004: p.19).
A postura assumida por Afonso Henriques de Lima Barreto se afasta em muito da postura belicosa de Manoel Bomfim, em relação a este tema. Curioso notar, que tanto Manoel Bomfim, quanto Lima Barreto tenham sido intelectuais simpáticos ao anarquismo, porém se tratando de um posicionamento contrário à guerra, um posicionamento solidário em relação ao indivíduo humano entre outros aspectos, claramente guiou o escritor de Todos os Santos, mas não o médico sergipano. A recepção desta crônica não foi positiva, pois em um contexto social fortemente marcado pelo ideal nacionalista, que não contaminava apenas o Brasil, mas também diversas outras nações pelo mundo, o escritor anarco-comunista Lima Barreto, concluiu sua crônica dizendo: que o “Brasil é de todo o mundo. O que é preciso é que nós nos entendamos, com boa vontade de homens. Alemães, negros, caboclos, italianos, portugueses, gregos e vagabundos, nós todos somos homens e nos devemos entender na vasta e ampla terra do Brasil. Não sou nacionalista” (Barreto, 2004: p.19).
Ademais, pudemos notar que Afonso Henriques de Lima Barreto em seus romances publicados de 1909 a 1919 construiu uma narrativa consistente, onde delatou os desajustes sociais que golpeava a frágil cidadania de homens e de mulheres negras no pós-abolição. Em seus romances o prolongamento da escravidão apareceu em forma de hierarquias raciais que se impunham frente aos indivíduos. A sociabilidade republicana era para Lima Barreto um emaranhado de falseamentos reproduzidos, advindos da não ruptura com determinados elementos do passado que mantinha um segmento populacional estigmatizado na república brasileira.
Como sabemos a produção ficcional do romancista fluminense estava inundada por suas experiências acumuladas de décadas de convivência em diferentes mundos. Foi nesses cenários de toda uma vida que Lima Barreto pôde construir uma visão mais completa da sua sociedade, desde as suas vogas até a multiplicidade de manifestações das desigualdades sociais no contexto da Primeira República. Talvez, aqui esteja concentrada a força de sua proposta ficcional que carrega em si muito de criador e criatura, onde às vezes o grau de cruzamento das histórias ganhava tanta densidade que inviabilizava a realização da distinção mais ou menos simples entre o real e o ficcional (Barbosa, 2012; Schwarcz, 2017).
Lima Barreto deu inteligibilidade por meio de sua obra ficcional: a mendicância de idosos - livres na república, mas que se encontravam em estado de degradação física e moral devido ao abandono social; também apareceu na concepção aceite por parte significativa da população branca de que o lugar da mulher negra era por excelência no prostíbulo, na cozinha ou na cama do marido da esposa branca, ou na percepção de que mais vale a “pele branca” do que ser um negro ou mulato estudado. Os seus personagens operaram na obra ficcional como arquétipos dessas relações que Barreto buscou realçar: desde um Lucrécio Barba-de-Bode até os Anastácio e Inácio que foram alegorias que descreveram o espaço do “não-familiar”, o negro “agregado” vivendo com a família que tinha o seu controle legal no sistema de exploração passada; desde um Felizardo até as suas personagens femininas, negras vivendo na berlinda entre a condição de prostituição ou a outra, como aquela sociedade enxergava sendo espaço natural da negra e da mulata.
No entanto, uma figura interessantíssima analisada nesta investigação foi o protagonista do seu romance de entrada: Isaías Caminha. Foi por meio da experiência de Isaías ao longo da trama que aparece uma ideia-força em Lima Barreto que o colocou em tensão com a tese educacional de Manoel Bomfim. Pois, a partir das sucessivas humilhações experimentadas por Isaías na cidade grande, um rapaz estudado, acima da média, numa sociedade que valorizava o diploma ao invés do conhecimento, neste cenário em que as ilusões de mobilidade social por conta de sua inteligência e seus estudos chegaram ao fim.
Com esta alegoria, Lima Barreto advertiu que por mais que valorizasse os seus estudos, tenha sido filho de uma professora, ainda assim ele demonstrava a impossibilidade de pensar na via educacional como meio garantidor de mobilidade social numa sociedade altamente hierarquizada por critérios raciais (Becker, 1977). O que acabou se revelando uma grande decepção para o autor, que observou um bloqueio quase impenetrável nesta relação. Ainda que fosse precária no Império, o antigo regime conseguiu garantir alguma mobilidade para mulatos e negros livres, por isso, tal assimetria acabou minando as expectativas de Lima Barreto (Carvalho, 2017). Ao fim e ao cabo, os quadros pintados por Lima Barreto foram muitos e do seu “quintal” - isto é, da cidade do Rio de Janeiro, ele buscou indicar o que tanto sonhava fazer em vida por meio de sua obra literária, publicitada a nós, brasileiros muitas décadas após a sua morte por meio do seu diário: dar a devida inteligibilidade entre a relação que a “Escravidão Negra no Brasil (teve em relação à) sua influência na nossa nacionalidade” (Barreto, 1961d: 33. Grifos nossos).
Considerações finais
Tendo sido a persistência das “marcas” do escravismo brasileiro na sociabilidade republicana assumida aqui como objeto para a comparação, a partir da leitura social produzida pelo médico Manoel José do Bomfim e pelo escritor Afonso Henriques de Lima Barreto no período que vai de 1905 a 1920. Previamente, observamos diferenças fundamentais no modo de notar tal processo, pois, em 1905, Manoel Bomfim mobilizou a escravidão, por um lado, para discutir a persistência da manutenção de meios arcaicos de produção e, por outro lado, como uma espécie de justificativa para à atualização das péssimas condições de trabalho, estabelecendo assim uma importante crítica à irracionalidade em que o trabalho continuou sendo processado na ordem republicana, diretamente referenciado por um longo processo de elevados ganhos alcançados de forma parasitária pelas classes dominantes nacionais. Em outras palavras, foi na perspectiva bomfimniana, a escravidão praticada por mais de três séculos responsável por modelar a maneira que o trabalho foi visto pelos agentes sociais que dependiam do trabalho para garantir sua subsistência, isto é, visto como uma mácula, símbolo de degradação física e moral, por historicamente ter sido o espaço socialmente destinado ao negro em situação de cativeiro.
Já Lima Barreto focalizou de maneira mais sistemática nos efeitos deste passado no cotidiano, como uma espécie de etnógrafo do Rio de Janeiro, à época capital da república, ele denunciou com as noções raciais impôs múltiplas restrições informais à cidadania da população não-branca de um modo geral, no contexto da Primeira República. Portanto, certos pertencimentos raciais, influíram diretamente nas relações sociais entre os sujeitos, como também nas relações dos sujeitos para com as instituições. Foi por isso que Lima Barreto pôs em xeque a premissa educacional, vista como meio redentor da nação por Manoel Bomfim, isto é, fundamental para a formação de um povo. Para Lima Barreto, a educação não dispunha de meios, por si só, para cumprir este papel “regenerador” equânime, em um cenário altamente hierarquizado racialmente, porque outros critérios inevitavelmente seriam mobilizados com o intuito de negar o acesso à cidadania plena à população negra e ameríndia.
Ainda que um lado, relacionado a “fé” na civilização, já estivesse colocado no ensaio publicado por Manoel Bomfim em 1905, A Obra do Germanismo, publicada em 1915, para além de certas posições, à primeira vista controversas, tal produção apresenta ao público uma outra leitura em relação à escravidão, a saber, positiva do processo, por compreendê-la enquanto uma espécie de educação civilizatória e transitória ou uma educação extensiva para a civilização. A nosso ver, cabe mais uma vez reforçar, que Manoel Bomfim abriu mão momentaneamente de seus postulados de 1905, em nome de um “jogo retórico” que produzisse algum grau de coerência e, por conseguinte, legitimasse a defesa da Entente na Primeira Guerra Mundial. Apenas assim torna-se possível compreender a omissão de dados históricos, suavização das relações violentas e discriminatórias. Deste modo, podemos dizer, que para Bomfim o que estava em jogo era “demonstrar” e convencer os germanófilos e os neutrais brasileiros que aliar-se à França, Inglaterra e Bélgica supostamente seria o único caminho viável de uma suposta “defesa natural” à civilização e ao progresso, e que estar ao lado da Alemanha, representaria o oposto deste processo. Noutras palavras, fica claro, que a suavização da escravidão assinalada por Manoel Bomfim, em seu texto “panfletário”, representou uma tentativa de reconfigurar no universo das ideias a atuação aliada fora da Europa em contraposição à real extensão das atrocidades neocoloniais impetradas por franceses, belgas e ingleses.
Neste sentido, a noção de escravidão enquanto uma espécie de educação civilizadora, extensiva e transitória, só faz algum sentido, como instrumento retórico de defesa à posição franco-britânica na Primeira Guerra Mundial, pois trata-se de argumento produzido e divulgado num momento que formalmente a escravidão moderna se encontrava abolida em todas as sociedades contemporâneas. Dito isto, nos parece certo afirmar que a escravidão mobilizada por Manoel Bomfim, em referência à educação civilizadora, apenas cumpriu o papel de defender países com extensa participação na consolidação de um sistema de trabalho forçado, que “moeu” a vida de milhões de africanos e seus descendentes. Diferentemente ao médico sergipano, o escritor fluminense Lima Barreto até chegou a se filiar à Liga dos Aliados em razão do conflito mundial, todavia pouco tempo depois, voltou atrás, assumindo uma posição de neutralidade diante a guerra. Em algumas de suas crônicas, Lima posicionou-se contrário à postura germânica, mas não economizou críticas também aos aliados. Inclusive, Lima Barreto se mostrou preocupado com às imposições abusivas impostas aos alemães ao fim do conflito, assinalando que seria impossível alcançar a paz duradoura, mediante a tais imposições (infelizmente, Lima não viveu o bastante para ver a tragédia humana e civilizatória que foi a Segunda Guerra Mundial).
Para concluirmos, sublinhamos a pertinência de confrontar Manoel Bomfim e Lima Barreto, dois intelectuais, fundamentais para o reconhecimento do que fomos e somos. Ambos os autores, muitas vezes, assumiram caminhos narrativo-textuais distintos e, até mesmo, divergentes. Manoel Bomfim e Lima Barreto foram personagens de um Brasil que, ao longo de sua vida institucional, penalizou e colocou-se como algoz de muitos de “seus filhos e filhas”. Embora tenham vivido em um mesmo contexto social, e ao que tudo indica, não mantiveram relações pessoais, as produções de Manoel Bomfim e Lima Barreto, em sua totalidade, podem ser tomadas como contraponto ao pensamento hegemônico, assentado naquele Brasil, das primeiras décadas republicanas. De todo o modo, ainda que Manoel Bomfim não tenha deixado nenhum registro no qual mencione o escritor Lima Barreto, tratando-se de Lima Barreto em relação a Manoel Bomfim, temos um indicativo e uma menção. O indicativo se deu a partir da existência de um livro de Manoel Bomfim, constante na biblioteca pessoal do escritor - a Limana; já a menção se deu em carta redigida por Lima Barreto a seu amigo Antônio Noronha Santos, datada de 23 de junho de 1916, na qual o romancista social relatou ao amigo “leio Manoel Bomfim, Oliveira Lima, Gómez Carrillo, Alberto Tôrres - autores que pouco lemos, mas que merecem ser lidos” (Barreto, 1961e, p.105).
Ao fim e ao cabo, podemos afirmar que tanto Lima Barreto, quanto Manoel Bomfim abordados de forma isolada ou comparativamente, podem e sempre vão propiciar diversos estudos pertinentes às Ciências Humanas e Sociais. Parafraseando um dos clássicos da sociologia, Max Weber em sua descrição da sociologia compreensiva, nós aqui, apresentamos uma das possibilidades de estudos, inclusive em perspectiva comparada entre Manoel Bomfim e Lima Barreto, não a única possibilidade. Partindo de posições muito diferentes e estratificadas entre si, tanto Bomfim, quanto Barreto foram vozes que se impuseram ao Brasil oligárquico e a sua forma “draconiana” de lidar com a fração marginalizada da população: indígenas, negros e negras, mestiços, brancos-pobres, etc., e infelizmente, ainda nos auxiliam, em termos de leitura do desenvolvimento genealógico de uma sociedade racialmente hierarquizada, classista, discriminatória e conservadora que persiste em reexistir desta maneira entre nós.