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Medicina Interna
versão impressa ISSN 0872-671X
Medicina Interna vol.23 no.4 Lisboa dez. 2016
CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS
Síndrome Nefrite Túbulo Intersticial Aguda e Uveíte (TINU): Um Caso Clínico
Acute Tubulointerstitial Nephritis and Uveitis (TINU) Syndrome: A Case Report
Ana Mafalda Silva1, Ana Mondragão1, Miguel Ferraz Moreira1, Joana Malheiro1, Clara Santos2, Marta Barbedo1
1Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/ Espinho, Vila Nova de Gaia, Portugal
2Serviço de Nefrologia, Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/ Espinho, Vila Nova de Gaia, Portugal
RESUMO
A nefrite intersticial aguda é uma causa comum de lesão renal aguda induzida na maioria dos casos por exposição a fármacos. Pode também ter etiologia autoimune, infiltrativa ou infeciosa. Numa pequena percentagem de doentes com nefrite intersticial aguda (5-10%) ocorre associação com uveíte definindo, assim, a síndrome nefrite túbulo-intersticial aguda e uveíte (TINU). Os autores apresentam um caso clínico de nefrite intersticial aguda em que a presença de uveíte associada a exclusão de outras causas permitiu o diagnóstico de TINU. Apresenta-se este caso pelo desfecho diagnóstico menos expectável e pela importância de um elevado índice de suspeição.
Palavras-chave:Nefrite Intersticial; Uveíte.
ABSTRACT
Acute interstitial nephritis is a common cause of acute kidney injury induced in most cases by exposure to drugs. It is also caused by autoimmune, infiltrative or infectious disorders. In a small percentage of patients with acute interstitial nephritis (510%) it occurs associated with uveitis, thus defining the acute tubulointerstitial nephritis and uveitis syndrome (TINU). The authors describe a case of acute interstitial nephritis that in the presence of uveitis associated with the exclusion of other causes lead to the diagnosis of TINU. We report this case by the less expected diagnostic outcome and by the importance of a high index of suspicion.
Keywords: Interstitial Nephritis; Uveitis.
Introdução
A nefrite intersticial aguda (NIA) é uma causa frequente de lesão renal aguda, a maioria das vezes induzida por fármacos, principalmente antibióticos e anti-inflamatórios não esteroides (AINEs).1 Contudo, também pode ser causada por distúrbios autoimunes como a síndrome de Sjogren ou lupus eritematoso sistémico; por doenças infiltrativas como a sarcoidose; ou por infeções que acometem o rim (por exemplo: infeção por Legionella, Streptococcus e Leptospira). Numa pequena percentagem de casos (5-10%), ocorre em associação com uveíte definindo uma entidade clínica pouco comum denominada síndrome nefrite túbulo intersticial e uveíte (TINU).1-3
A síndrome TINU foi descrita pela primeira vez em 19754 e desde então cerca de 250 casos foram reportados na literatura.5,6 Ocorre maioritariamente em crianças e mulheres jovens, com uma idade média de 15 anos,6 mas também têm sido descritos casos em adultos e mais raramente em idosos.7 O diagnóstico é principalmente clínico e de exclusão, caraterizado pela combinação, não necessariamente simultânea, de NIA, habitualmente de evolução favorável, e uveíte, que tipicamente é anterior, bilateral e que em 65% dos casos surge após o diagnóstico de NIA.8
A sua etiologia permanece pouco esclarecida, mas estudos mais recentes sugerem que seja secundária a processos imunomediados dirigidos contra autoantigénios comuns às células uveais e tubulares renais.9 Nenhum fator de risco foi identificado em pelo menos 50% dos casos, mas infeções prévias ou o uso de fármacos como antibióticos e AINEs podem estar implicados como fatores desencadeantes.5,8
Os autores apresentam um caso clínico de NIA em que a presença de uveíte associada a exclusão de outras causas permitiu o diagnóstico de síndrome TINU.
Caso Clínico
Doente do sexo masculino, 65 anos, caucasiano, com antecedentes de fibrilhação auricular, angina estável, hipertensão arterial, dislipidemia e diabetes mellitus tipo 2. Medicado habitualmente com: varfarina 5 mg/dia, ácido acetilsalicílico 100 mg/dia, bisoprolol 2,5 mg/dia, ramipril 2,5 mg/dia, atorvastatina 40 mg/dia, vildagliptina 50 mg/dia e ranitidina 150 mg/dia. Admitido por quadro com cerca de 3 meses de evolução de astenia, anorexia e perda ponderal de 6 kg e queixas de poliúria desde há 2 semanas. Este quadro foi antecedido por queixas de febre, rinorreia mucosa e olho vermelho à direita com 2 semanas de evolução, quadro interpretado como infeção das vias aéreas respiratórias superiores (IVAS) / sinusite, medicado com amoxicilina/ácido clavulânico e colírio não especificado com resolução.
Ao exame objetivo à admissão: consciente, colaborante e orientado, mucosas coradas, desidratado, eupneico, sem tiragem nem cianose, SO2 (21%): 98%, apirético, hemodinamicamente estável (TA: 120/70 mmHg, FC: 72 bpm, rítmico), auscultação cardiopulmonar normal, abdómen sem alterações, sem edemas periféricos, sem adenomegalias palpáveis, exame oftalmológico normal.
Do estudo realizado: hemoglobina 11,7 g/dL, normocítica/ normocrómica, hematócrito 30%, velocidade de sedimentação 73 mm/h, plaquetas e forma leucocitária normais; creatinina sérica 2,42 mg/dL (valor prévio em estudo analítico de há 4 meses de 0,9 mg/dL), ureia 76 mg/dL; proteínas totais/ albumina 6,8/3,4 g/dL; eletrólitos e enzimas hepáticas sem alterações; sedimento urinário com glicosúria, eritrocitúria e leucocitúria, razão proteínas/creatinina urinárias 0,45 (proteinúria de baixo grau); ecografia renal e telerradiografia torácica sem alterações. Estudo de causas imunológicas: discreto aumento de IgG (1790 mg/dL) e IgA (524 mg/dL), IgM, D e E normais; sem consumo de complemento; marcadores imunológicos (fator teumatoide, ANA, ANCA, anticorpos anti-ds-DNA, anti-Sm, anti-citrulina, anti-RNP, anti-SSa/b, anti-jo, anti-SCL 70, anti-fosfolipidicos, crioglobulinas, anti-membrana basal) negativos. Estudo de causas infeciosas: exame bacteriológico de sangue e urina negativos, marcadores víricos (hepatite A, B, C e VIH) negativos, reação TPHA/VDRL, Weil-Felix, Wright e Widal negativas, serologias para Leptospira, CMV, Toxoplasma gondii, Mycoplasma pneumoniae, Borrelia, parvovirus, EBV, Chlamydia trachomatis, Coxiela burnetii e Legionella negativas. Estudo de causas infiltrativas: alfa 1 anti-tripsina, ECA, saturação transferrina, cobre e ceruloplasmina normais. Biópsia renal: glomérulos sem alterações; raras imagens de tubulite; interstício com infiltrado inflamatório mononucleado, com participação de alguns polimorfonucleares neutrófilos e muitos raros eosinófilos, sem fibrose; espessamento da média em alguns vasos de calibre; estudo por IFD: positividade fraca e focal, segmentar, granular, nas ansas com anticorpo anti-C3; negatividade com os restantes anticorpos testados; Conclusão: quadro morfológico compatível nom NIA.
Ao 7º dia de internamento apresentou quadro de fotofobia, olho vermelho e miodesopsia à esquerda, compatível com uveíte anterior. Estabelecido assim o diagnóstico de síndrome de TINU, pela combinação de NIA e uveíte e exclusão de outras causas etiológicas. Iniciou tratamento com prednisolona 1 mg/kg/dia e colírio com corticoide apresentando melhoria significativa das queixas oculares, resolução da anemia (10,9 > 13,6 g/dL), descida da velocidade de sedimentação (VS) (73 > 44 mm/h) e melhoria progressiva da função renal com creatinina à data da alta de 1,8 mg/dL. Manteve corticoide em esquema de desmame durante 6 meses, com estabilização da função renal (creatinina de 1,4 mg/dL aos 4 meses de seguimento). Apresentou recorrência da uveíte anterior na primeira redução de dose de prednisolona mas com resolução com corticoide colírio. Atualmente, 3 anos após o diagnóstico de síndrome de TINU, mantém-se assintomático sem corticoterapia, sem alterações no sedimento urinário, creatinina de 1,1 mg/dL, hemoglobina de 15,8 g/dL e VS de 9 mm/h.
Discussão
A síndrome de TINU é uma entidade clínica rara, provavelmente subdiagnosticada na prática clínica. O diagnóstico é de exclusão, sugerido pela presença de NIA e uveíte.
Está frequentemente associado a manifestações sistémicas que habitualmente precedem o quadro de insuficiência renal tais como febre, perda de peso, astenia, anorexia, dor abdominal, artralgias, mialgias, cefaleias, poliúria e/ou nictúria,1-3,8,10 o que torna desafiante o diagnóstico final dado a panóplia de diagnósticos diferenciais.
As manifestações renais são as típicas de NIA e podem incluir: dor lombar, piúria, hematúria, proteinúria (geralmente não nefrótica) e LRA. Defeitos tubulares proximais e distais podem ocorrer e resultar em glicosúria, aminoacidúria, fosfatúria e defeitos de acidificação.11 Ecografia renal pode demonstrar marcado edema renal ou não ter alterações.
A uveíte é geralmente anterior e bilateral, mas também pode ser unilateral, habitualmente com resposta favorável ao tratamento tópico. As recidivas são frequentes, mas não necessariamente associadas ao agravamento da função renal.1-3,8 Na maioria dos casos (65%) ocorre após o início de doença renal, contudo pode preceder (21%) ou ocorrer simultaneamente (15%),8,12 pelo que não parece haver correlação evolutiva entre a doença renal e a ocular, o que dificulta ainda mais o diagnóstico.
Os achados laboratoriais não são específicos e podem incluir elevação de parâmetros inflamatórios, eosinofilia, elevação de VS e anemia.5 Associações de TINU com alguns marcadores serológicos na ausência de doença correspondente têm sido reportadas. Pode haver por exemplo, positividade para ANA, ANCA e FR, consumo de complemento e hipergamaglobulinemia,13 o que pode ser mais um fator confundidor para o estabelecimento do diagnóstico definitivo.
O caso apresentado trata-se de um homem de 65 anos com um quadro inicial de febre e olho vermelho, feito diagnóstico de IVAS e medicado com antibiótico e colírio. De seguida inicia quadro constitucional e posteriormente é feito o diagnóstico de NIA, confirmada por biópsia renal, e uveíte anterior, confirmada por exame oftalmológico. A presença desta associação e após exclusão extensiva das variadíssimas possibilidades etiológicas, nomeadamente doenças infeciosas, infiltrativas e autoimunes, permitiu o diagnóstico final de síndrome de TINU. Como achados laboratoriais apresentava ligeira anemia, LRA, proteinúria de baixo grau, leucoeritrocitúria e glicosúria, elevação da VS e aumento da IgA e IgG.
Analisando retrospetivamente, questiona-se se a febre inicial e as queixas de olho vermelho já não seriam manifestações desta síndrome, ou mesmo se o quadro de infeção respiratória e a terapêutica com antibiótico não terão sido o gatilho para a instalação de todo este quadro.
A doença renal nestes doentes tem um curso variável. Na maioria dos casos é auto-limitada, 11% progride para nefropatia crónica e em apenas 5% dos casos houve necessidade de diálise.8,11 Doentes com insuficiência renal progressiva são tipicamente tratados com prednisolona na dose de 1 mg/ kg/dia habitualmente por períodos mais longos do que é estipulado para as NIA de outras causas. Isto porque há maior probabilidade de recidiva de insuficiência renal nos doentes com síndrome de TINU quer pela sua base imunológica provável quer pela falta de um possível agente causal.
No presente caso, o doente foi tratado com prednisolona 1 mg/kg/dia durante 6 meses em esquema de desmame lento, com recuperação da função renal e sem recidivas, apresentando valores de creatinina normais mesmo ao fim de 36 meses de seguimento. Apresentou recorrência da uveíte durante o seguimento, mas não associado a agravamento da função renal, com resposta favorável ao corticoide tópico.
Conclusão
O caso apresentado pelos autores alerta para a importância da suspeita clínica da síndrome de TINU, a qual, embora rara, deverá ser sempre considerada no diagnóstico diferencial de NIA não explicada, especialmente na presença de manifestações oculares, mesmo em homens e idosos. Um diagnóstico precoce e o início de tratamento adequado com corticoterapia em estadios iniciais é crucial para um desfecho favorável, com reversibilidade completa da nefropatia.
Referências
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Correspondência: Ana Mafalda Silva anamafalda85@gmail.com
Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/ Espinho, Vila Nova de Gaia, Portugal
Protecção de Seres Humanos e Animais: Os autores declaram que não foram realizadas experiências em seres humanos ou animais
Direito à Privacidade e Consentimento Informado: Os autores declaram que nenhum dado que permita a identificação do doente aparece neste artigo.
Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho
Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo
Recebido: 22/08/2016
Aceite: 30/10/2016