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Medicina Interna
versão impressa ISSN 0872-671X
Medicina Interna vol.24 no.1 Lisboa mar. 2017
ARTIGO DE OPINIÃO / OPINION ARTICLE
Viagem pelo Mundo da Medicina de Urgência
Travel Around the World of Emergency Medicine
António Martins Baptista, Maria da Luz Brazão, Sofia Nóbrega
Núcleo de urgência e do doente Agudo NEUrgMI da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.
Palavras-chave: Medicina Interna; Medicina de Urgência; Serviço de Urgência Hospitalar.
Keywords: Emergency Medicine; Emergency Service, Hospital; Internal Medicine.
A Medicina Interna é uma especialidade fascinante, multifacetada e intelectualmente estimulante. Estas características têm permitido que ao longo dos anos muitos jovens médicos de alta qualidade a escolham, a despeito de ser uma das mais trabalhosas e menos bem remuneradas.
Uma das magias da Medicina Interna é o seguimento do doente desde a sua chegada ao hospital pelo Serviço de Urgência (SU) até ao momento da sua alta, com o raciocínio contínuo que começa na anamnese, passa pelo exame objectivo, pedido de exames, diagnóstico, terapêutica, controlo dos efeitos da mesma e prognóstico, com a vantagem para o doente de não haver quebra na prestação dos cuidados. Por isso, apesar do cansaço inerente às noites sem dormir, a maioria dos Internistas adora o trabalho na Urgência, está ávida de formação nesta área (todos os cursos organizados pela SPMI nesta área estão repletos), não quer trabalhar só na Urgência porque grande parte do raciocínio clínico é aprendido à cabeceira dos doentes na enfermaria, mas está disposta a colaborar em novas formas organizativas dos SUs, desde que a deixem rodar pelos vários locais de trabalho hospitalar onde se sente útil.
Quando se fala da instituição de uma especialidade de Medicina de Urgência, não podemos deixar de pensar que uma parte importante da magia da Medicina Interna estaria para sempre perdida, e talvez uma das mais atractivas para os mais jovens. Mas este facto não seria importante se nos provassem que o doente sairia beneficiado com o aparecimento daquela especialidade. Como passaremos a explicar, dando exemplos de países onde a especialidade de emergência já existe, tal não é verdade.
Comecemos pelos EUA, onde o internato da especialidade foi instituído pela primeira vez em 1970. Na sequência do aparecimento das múltiplas especialidades médicas ao longo do século XX, e com a criação do tronco comum que permitiu que todos os internistas pudessem fazer mais dois anos de especialidade e sair sub-especialistas de qualquer outra coisa, aumentando-lhes as oportunidades de emprego e melhor remuneração, a certa altura verificou-se uma desertificação de Internistas puros nos hospitais, com a agravante acrescida de os Internistas terem ido ocupar uma posição relevante nos cuidados de saúde primários na comunidade. Faltaram então médicos hospitalares que trabalhassem, nomeadamente nos SUs com a consequente necessidade de criar especialistas que ocupassem aquele espaço. Como um dos argumentos dos defensores da especialidade na Europa é de que esta é necessária para melhorar o modo como as urgências funcionam, dir-se-ia então que passados mais de 45 anos os erviços de urgência norte-americanos funcionam muito bem. Vejamos então o que pensam alguns autores que se debruçaram sobre o futuro dos cuidados de emergência do sistema de saúde dos EUA1,2:
Maryn McKenna, num artigo com o título Future of Emergency Care, publicado nos Annals of Emergency Medicine em 2006 escreve: The US emergency care system is overwhelmed, underfunded and at the breaking point situation accelerating out of control patients wait hours or days on gurneys for admission.1 Três anos depois, em 2009,Moskop et al, reforçam esta opinião dizendo que o resultado das medidas implementadas nos serviços de urgência americanos foi o surgir da crise nacional de sobrelotação.2 Em 2011 Harrison e Ferguson vêm confirmar o estado de crise nos serviços de urgência dos Estados Unidos e apresentam resultados indicadores de uma diminuição da capacidade de resposta dos profissionais a lesões traumáticas e catástrofe, com implicações negativas em termos de outcome dos doentes.3 Já em 2012, Robert Suter numa tentativa de avaliar a implementação e o desenvolvimento desta Medicina de Urgência nos Estados Unidos, acaba por reconhecer que mesmo assim não se resolveu o problema da sobrelotação e que se mantêm alguns desafios nomeadamente em termos de responsabilidade profissional, capacidade de progressão e projecção da equipa de trabalho, com um número muito elevado de queixas de negligência, prática de uma medicina defensiva e aumento dos custos.4 Ou seja, o panorama não é muito diferente do nosso, e mais de 40 anos de especialidade de Urgência nos EUA não resolveram nada. Mas pelo contrário, durante este caminho, o sistema percebeu que lhe faltavam médicos generalistas nas enfermarias e foram obrigados a inventar uma nova especialidade que aí seguisse os doentes (Hospitalistas). Parece ser óbvia a falta de bom senso em todo este percurso.
Outra das realidades americanas é que ao fim de décadas ainda não há especialistas de Urgência fora dos grandes centros, o que nos dá a certeza de que a criação da especialidade não resolveria o défice de especialistas nas regiões mais periféricas.
No Reino Unido a especialidade veio também colmatar a falta de internistas puros que observassem os doentes na urgência. Mas seguiram um caminho ainda mais exclusivista e hoje em dia estão, por lei, limitados às primeiras 6 horas após a entrada dos doentes no SU. A filosofia é de pura estabilização, assumindo que o seu papel não é o de fazer diagnósticos (que voltas não daria Sir William Osler na tumba?). Ora como após as primeiras 6 horas frequentemente o doente não está estabilizado, e tem forçosamente de ser transferido para uma enfermaria onde não há internistas, após algumas fatalidades que provocaram escândalo foi criada uma nova especialidade que estabiliza os doentes até às 48 horas, antes de serem transferidos para os pisos. Curiosamente esta nova especialidade (Acute Medicine) veio recentemente pedir para aderir à European Federation of Internal Medicine. Depois da destruição a regeneração. Mas ainda têm por resolver os generalistas após as 48 horas, e não nos admiraria muito que brevemente começassem a aparecer hospitalistas, também no Reino Unido.5
A Espanha tem um sistema de saúde muito semelhante ao nosso, com toda a estrutura hospitalar baseada na Medicina Interna. Em 2007 um Ministro da Saúde tentou criar a especialidade de urgências, o que não aconteceu por se ter gerado um movimento nunca antes visto, de união dos médicos contra esta decisão governamental, liderado pelas especialidades de Medicina Interna, Pediatria e Clínica Geral. A um outro nível, num trabalho apresentado pela Yolanda Romero num Congresso Nacional Espanhol de Medicina Interna verifica-se que o grau de auto-estima dos médicos internistas espanhóis que trabalham só em urgências é muito baixo. Neste inquérito 85,7% dos médicos gostaria de trabalhar também na enfermaria, 87,1% acha que esta rotação de local de trabalho seria útil para os doentes e 90% afirma que se sentiria mais realizado profissionalmente.5
A nível europeu em geral, incluindo Portugal, o movimento de promoção da especialidade tem sido liderado pela European Society of Emergency Medicine (EuSEM) que tem pronto um programa de internato de 5 anos, claramente baseado no modelo inglês de manter o doente vivo nas primeiras horas, com conteúdos que abarcam a Medicina Interna, Cirurgia, Ortopedia, Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia e até Otorrinolaringologia e Oftalmologia, no que respeita à actuação destas especialidades no SU. E aqui percebemos porque é o Governo Espanhol quis criar esta especialidade e porque é que alguns administradores hospitalares em Portugal defendem esta solução. É que estes especialistas em Urgência iriam substituir vários profissionais no SU, com óbvio benefício nos custos, mas também, com evidente perda de qualidade. Ninguém que tenha uma fractura óssea preferirá ser visto por este especialista tipo canivete-suíço em vez de um ortopedista. Uma laceração na face de uma rapariga de 12 anos, será seguramente melhor tratada por um cirurgião plástico. Um lactente com febre é com certeza melhor diagnosticado por um pediatra.
Por todos estes motivos somos claramente contra a criação da especialidade de Medicina de Urgência, mas propomos as seguintes medidas para melhorar os SU em Portugal:
1. Mantenham os SUs multidisciplinares. Os profissionais aprendem muito uns com os outros e os doentes agradecem a excelência dos cuidados.
2. Melhoremos a formação de Urgência das várias especialidades (eventualmente com o alargamento da competência de emergência aos vários saberes) e a organização dos próprios SUs.
3. A Medicina Interna vai proceder a uma mudança curricular que aumentará de forma significativa o componente da Medicina de Urgência no seu currículo obrigatório.
4. Ajudem-nos a convencer os decisores políticos e administrativos a encher as enfermarias (especialmente de algumas especialidades cirúrgicas onde os doentes estão muito entregues a si próprios) de internistas e não vão faltar médicos nas Urgências.
5. Que Hospitais de Dia e outras estruturas a criar permitam que os doentes crónicos tenham o seu próprio espaço de recurso hospitalar, sem necessidade de recurso ao SU.
6. Melhoremos a triagem pré-hospitalar ao nível dos Cuidados de Saúde Primários.
Estas medidas, de implementação relativamente simples, farão a verdadeira revolução positiva nos nossos SUs.
Referências
1. McKenna M. Debate rages over the future of emergency care. Ann Emerg Med. 2006; 48: 138-40. [ Links ]
2. Moskop C, Sklar J, Geiderman J, Schears R, Bookman K. Emergency department crowding, Part 2 Barriers to reform and strategies to overcome them. Ann Emerg Med. 2009; 53: 612-8. [ Links ]
3. Harrison JP, Ferguson ED. The crisis in United States hospital emergency services. Int J Health Care Qual Assur. 2011; 24: 471-83. [ Links ]
4. Suter RE. Emergency medicine in the United States: a systemic review. World J Emerg Med. 2012; 3 : 5-10. [ Links ]
5. Baptista AM. Viagem pelo Mundo da Medicina de Urgência. Rev Ordem Med. 2009; 101. [ Links ]
Correspondência: Maria da Luz Brazão mlbrazao@hotmail.com
Hospital Central do Funchal, Funchal, Portugal
Avenida Luís de Camões, nº 57, 9004-514 Funchal
Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.
Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.
Recebido:29-01-2017
Aceite: 05-02-2017