Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Medicina Interna
versão impressa ISSN 0872-671X
Medicina Interna vol.25 no.4 Lisboa dez. 2018
https://doi.org/10.24950/rspmi/original/185/4/2018
ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES
Estudo de Prevalência do Fenómeno de Raynaud na Região do Grande Porto
Study of Prevalence of Raynaud’s Phenomenon in Porto
Manuela V. Bertão1, Tomás A.Fonseca1, Maria Eduarda Reis2, Margarida Lima3, Ivone Silva4,5, Carlos Vasconcelos5
1Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar Universitário do Porto, Porto, Portugal
2Laboratório de Saúde Comunitária, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Porto, Portugal
3Serviço de Hematologia Clínica, Centro Hospitalar Universitário do Porto, Porto, Portugal
4Serviço de Cirurgia Vascular e Angiologia, Centro Hospitalar Universitário do Porto, Porto, Portugal
5Unidade de Imunologia Clínica, Centro Hospitalar Universitário do Porto, Porto, Portugal
RESUMO
Introdução: O fenómeno de Raynaud (FR) caracteriza-se por alterações da cor da pele das extremidades em resposta ao frio ou ao stress emocional. Não se conhece a sua prevalência em Portugal.
Material e Métodos: Estudo epidemiológico transversal. Foi aplicado um inquérito a 663 indivíduos, de ambos os géneros, com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos, residentes no Grande Porto. Estudou-se a associação entre FR e idade, género, estado civil, concelho de residência, atividade profissional, exposição ocupacional a químicos, máquinas com vibração e sistemas de refrigeração. Caracterizaram-se os indivíduos com FR de acordo com os critérios da UK Scleroderma Study Group (critério A) e aplicando a escala de cores de Maricq (critério A+B). Na análise estatística utilizaram-se os testes qui-quadrado com correção de Yates e de McNemar. Considerou-se um nível de significância de p < 0,05.
Resultados: Segundo o critério A, a prevalência do FR foi de 4,5% (5,6% nas mulheres versus 2,3% nos homens). Aplicando o critério A+B, a prevalência do FR foi de 1,7% (2,0% nas mulheres versus 0,9% nos homens). Apenas a exposição ocupacional a químicos mostrou associação estatisticamente significativa com a prevalência do FR. Das três cores que caracterizam o FR, a cor branca foi a que obteve significância estatística, independentemente dos critérios aplicados.
Conclusão: Em função dos critérios utilizados, no Grande Porto a prevalência do FR variou entre 1,7% e 4,5%. Contrariamente à literatura, a idade, o género, a exposição ocupacional a máquinas com vibração e a sistemas de refrigeração não apresentaram associação com o FR.
Palavras-chave: Doença de Raynaud/complicações; Doença de Raynaud/diagnóstico; Doença de Raynaud/epidemiologia; Portugal; Prevalência.
ABSTRACT
Introduction: Raynaud’s phenomenon (RP) is characterized by a color changed on the skin and extremities triggered by cold exposure and emotional stress. Its prevalence in Portugal is unknown.
Material and Methods: A cross sectional study was carried out in the region of Grande Porto, Portugal. The non-random sample was composed of 663 subjects, of both genders, varying from 15 to 64 years old. The association between RP’s prevalence and age, gender, marital status, county of residence, profession, occupational exposure to chemical products, vibratory tools and refrigeration systems was investigated. Participants were classified as having RP based on UK Scleroderma Study Group criteria (“A” criteria) and Maricq’s scale of distal finger color (“A+B” criteria). Data were analyzed using the chi-square and McNemar tests. Statistical significance was set at p < 0.05.
Results: Applying “A” criteria, the prevalence of RP was 4.5% (5.6% in women versus 2.3% in men) and with “A+B” criteria the prevalence of RP was 1.7% (2.0% in women versus 0.9% in men). Only occupational exposure to chemical products was significantly and positively associated with RP. Pallor fingers were the most reliable symptom of RP, regardless the criteria used. Conclusion: Depending on the criteria, the prevalence of RP in Grande Porto varied between 1.7% and 4.5%, and these findings were similar to those found in some other countries. In contrast with other studies, age, gender, occupational exposure to vibratory tools and refrigeration systems had no association to RP.
Keywords: Portugal; Prevalence; Raynaud Disease/complications; Raynaud Disease/diagnosis; Raynaud Disease/ epidemiology
Introdução
O fenómeno de Raynaud (FR) é uma microangiopatia comum na população em geral, mais frequente nas mulheres, que se traduz por alterações da cor da pele das extremidades, incluindo os dedos das mãos e dos pés, nariz, lobos auriculares, lábios e mamilos.1-3
Classicamente, o FR manifesta-se por alterações bifásicas ou trifásicas em resposta ao frio, podendo também ser desencadeado pelo stress emocional: fase branca por isquemia digital, fase azul por desoxigenação local e fase vermelha por hiperemia reativa.4,5 Todas elas podem estar associadas a dor e parestesias locais.5,6
O FR pode ser primário ou secundário a doenças do tecido conjuntivo, traumatismo ocupacional, medicamentos, doenças arteriais estruturais e doenças hematológicas.1,5-8 É importante distingui-los uma vez que a gravidade, o prognóstico e o tratamento diferem.5,9,10 Mais recentemente, o grupo EUSTAR (EULAR Scleroderma Trials and Research group) alertou para a importância de rastrear os indivíduos com FR, uma vez que este poderá constituir um critério major na identificação precoce daqueles que mais tarde desenvolverão esclerose sistémica. Aliás, 90% a 95% dos pacientes com esclerose sistémica manifestam FR.1,7 Por isto, é recomendável que todos aqueles com FR façam um rastreio de eventuais condições associadas, em especial as doenças autoimunes,2,11-16 permitindo, assim, um diagnóstico e tratamento precoces.2,17
A prevalência do FR tem sido avaliada em diversos estudos (Tabela 1). No entanto, as diferenças metodológicas, os diferentes critérios de diagnóstico e o efeito de fatores não controláveis, como a genética e o clima, explicam a variabilidade das prevalências encontradas.18
Pelo facto do diagnóstico de FR ser eminentemente clínico, há dificuldade em distinguir entre FR e uma resposta normal ao frio.9,20,21 Por este motivo, desenvolveram-se várias formas de abordagem ao estabelecimento do diagnóstico de FR. O UK Scleroderma Study Group (1993) sugere os seguintes termos para o diagnóstico de FR: (1) FR definitivo inclui episódios repetidos de alterações, pelo menos, bifásicas da cor com o frio; (2) FR provável quando há alteração unifásica da cor associada a dor ou parestesias; (3) FR ausente quando não há alteração da cor dos dedos com o frio. A descrição verbal por parte do paciente do hipotético FR associada à ausência de o visualizar presencialmente por parte do médico pode criar falsos positivos e negativos no diagnóstico. Para tal obviar, Maricq (1988) desenvolveu uma escala de cores que permite distinguir as cores variantes do normal das patológicas e, desta forma, melhorar a qualidade da informação obtida junto do doente.25
A prevalência do FR em Portugal não é conhecida. Foi objetivo deste trabalho estimar a prevalência do FR na região do Grande Porto.
Material e Métodos
Material
Foi efetuado um estudo epidemiológico transversal, com amostragem por conveniência, em dias fixos, entre 26 de novembro de 2010 e 25 de fevereiro de 2011, na área do Grande Porto, Portugal, da qual fazem parte os Concelhos de Espinho, Gondomar, Maia, Matosinhos, Porto, Póvoa de Varzim, Valongo, Vila do Conde e Vila Nova de Gaia. A população para a qual se pretendeu generalizar os resultados, engloba os residentes no Grande Porto com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos. A amostra foi constituída por 663 indivíduos, de ambos os géneros, estratificados por concelho de residência. Para o cálculo do tamanho da amostra foi usada a seguinte fórmula: n = N x Z2 x P (1-P) / E2 x (N-1) + Z2 P (1-P), em que n é o tamanho da amostra, N é o tamanho da população, Z é o valor crítico correspondente ao intervalo de confiança, E é a margem de erro e P é a proporção esperada na população. Foi considerada uma população de 886 747 habitantes, um intervalo de confiança de 99% e uma margem de erro de 5% e, atendendo à grande variabilidade de prevalência nos estudos publicados na literatura, foi assumido P = 50%, uma vez que este é o valor de P que proporciona o maior tamanho da amostra.
A colheita dos dados foi feita através de um inquérito elaborado pelos autores do estudo, tendo por base as questões utilizadas pelo UK Scleroderma Study Group e a escala de cores de Maricq.25 O inquérito, com 22 questões de respostas abertas e fechadas, foi aplicado aos transeuntes dos hipermercados e centros comerciais da área do Grande Porto. Todos os participantes subscreveram o consentimento informado, receberam um folheto informativo elaborado pelos autores acerca do FR e aqueles com critérios de FR receberam ainda informação adicional acerca do estudo. Para a realização deste estudo foi obtida autorização do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP), após parecer favorável da Comissão de Ética e do Departamento de Ensino, Formação e Investigação, assim como por cada um dos locais supramencionados para a aplicação dos questionários.
MÉTODOS
Foram estudadas as seguintes variáveis: história pessoal de FR (variável dependente); idade, género, estado civil, concelho de residência, atividade profissional, exposição ocupacional atual ou passada a químicos, máquinas com vibração e sistemas de refrigeração (variáveis independentes). A variável “atividade profissional” foi agrupada em 13 categorias respeitando a classificação portuguesa das profissões. A variável “idade” foi agrupada em dois grupos, [15-30] e [31-64], tendo em conta que o FR primário surge mais frequentemente em idades inferiores a 30 anos e o FR secundário superiores a 30 anos.3,9
Os participantes foram sujeitos a dois tipos de critérios: (1) critério A e (2) critério A+B (Fig 1). Os indivíduos que negaram alteração da cor dos dedos com o frio foram excluídos como não tendo critérios para FR, quer para o critério A, quer para o critério A+B.
O critério A incluiu os parâmetros definidos pelo UK Scleroderma Study Group para FR, ou seja, apenas através da descrição verbal feita pelo participante da alteração da cor dos dedos nos episódios de FR sem recorrer a material visual. De acordo com as respostas, os participantes foram classificados em três grupos: (1) FR definitivo; (2) FR provável e (3) FR ausente. No entanto, para análise estatística dos fatores de risco, os participantes foram agrupados em dois grupos: (1) FR positivo FR (+) incluiu os participantes com critérios de FR definitivo; (2) FR negativo FR (-) incluiu tanto os participantes com FR provável, como aqueles sem critérios para FR. O critério A+B incluiu, para além dos critérios definidos pelo UK Scleroderma Study Group, a validação simultânea das cores descritas pelo participante mostrando-lhe a escala de cores de Maricq. De acordo com as respostas, os participantes foram classificados em dois grupos: (1) FR positivo e (2) FR negativo. Portanto, para efeitos de estudo de associação, a variável de história pessoal de FR foi tratada como nominal dicotómica, tomando-se como FR positivo os inquiridos com referência a pelo menos duas cores (branco, vermelho e roxo) e duas tonalidades tidas como patológicas na escala de Maricq e como FR negativo os inquiridos que apesar de terem alteração da cor dos dedos com o frio, não cumpriram as cláusulas anteriormente descritas, assim como os que negaram alteração da cor dos dedos como frio.
A prevalência foi estimada de acordo com o critério A e com o critério A+B. Foi feita a caracterização demográfica de toda a amostra e também a caracterização demográfica e clínica dos indivíduos com critérios para FR. Os inquiridos com critérios para FR foram convidados, no momento da entrevista, a integrarem uma consulta no HSA-CHP para dar posterior continuidade ao corrente estudo com realização de análises sanguíneas adequadas e capilaroscopia periungueal.17
ANÁLISE ESTATÍSTICA
As respostas obtidas foram codificadas e registadas no software SPSS®, versão18. Foi considerado um nível de significância estatística de p < 0,05. As frequências das respostas foram comparadas com o teste do qui-quadrado com correcção de Yates (X2c) e a magnitude da associação medida pelo odds ratio (OR) e respetivos intervalos de confiança. As diferenças obtidas entre as prevalências de FR segundo o critério A e o critério A+B foram comparadas com o teste de McNemar.
RESULTADOS
CARACTERIZAÇÃO DEMOGRÁFICA DA AMOSTRA
Os inquiridos (n = 663) tinham idade média de 37,35 anos com um desvio-padrão de 14,45, estando 61,8% (n = 411) entre os 31 e os 64 anos de idade, 67,0% (n = 444) eram mulheres e 48,0% (n = 318) eram casados. Em relação à atividade profissional, 21,7% (n = 144) dos inquiridos eram trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção e segurança e vendedores e 20,4% (n = 135) estudantes. A maioria dos inquiridos negou exposição atual ou passada a químicos (78,0%, n = 517), máquinas com vibração (77,2%, n = 512) e sistemas de refrigeração (85,2%, n = 565). Estimativa da Prevalência de FRA alteração da cor dos dedos com o frio foi referida por 140 pessoas, isto é, 21,1% dos inquiridos. De acordo com o critério A, foram encontrados 30 casos de FR na amostra estudada, o que corresponde a uma prevalência de 4,5% (Tabela 2). Por outro lado, aplicando o critério A+B aos casos de FR encontrados, estes reduziram-se a 11 o que se traduz numa prevalência de 1,7%. Após a realização do teste de McNemar constatou-se que a diferença entre estas duas prevalências (2,9%) foi estatisticamente significativa (p < 0,0001). Caracterização demográfica dos indivíduos com critérios para FR.
A prevalência de FR no género feminino foi maior do que a encontrada no género masculino, independentemente dos critérios aplicados. No entanto, esta diferença não foi estatisticamente significativa (pA = 0,08; pA+B = 0,46). Em relação aos grupos etários, e independentemente dos critérios aplicados (Tabela 3), o FR foi mais frequente entre os 31 e os 64 anos de idade, mas as idades daqueles que têm FR positivo e os que não têm FR são semelhantes, não havendo significância estatística que permita associar a idade à prevalência do FR (pA = 0,42; pA+B = 0,67).
No que respeita ao concelho de residência, a prevalência do FR foi maior nos concelhos do Porto (20,0%; 6/30)A (27,3%; 3/11) A+B,Vila Nova de Gaia (20,0%; 6/30)A (18,2%; 2/11)A+B e Gondomar (13,3%; 4/30)A (18,2%; 2/11)A+B, não havendo, no entanto, uma associação estatisticamente significativa (pA = 0,96; pA+B = 0,97).
Segundo o critério A, o estado civil associou-se com significância estatística à prevalência do FR que se mostrou mais frequente entre solteiros (53,3%; 16/30)A, casados (40,0%; 12/30) A e separados de facto (6,7%; 2/30)A do que entre viúvos (0%; 0/30)A, divorciados (0%; 0/30)A e unidos de facto (0%; 0/30)A (pA = 0,03). Utilizando o critério A+B, o FR foi igualmente mais frequente entre solteiros (36,4%; 4/11)A+B, casados (54,5%; 6/11)A+B e separados de facto (9,1%; 1/11)A+B do que entre viúvos (0%; 0/11)A+B, divorciados (0%; 0/11)A+B e unidos de facto (0%; 0/11)A+B, mas sem associação estatística (pA+B = 0,22).
O grupo de trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção de segurança e vendedores obteve a maior prevalência de FR (26,7%; 8/30)A (45,5,%; 5/11)A+B, ainda que sem significância estatística entre a relação profissão e prevalência do FR(pA = 0,42; pA+B = 0,40).
Para ambos os critérios, a prevalência do FR foi maior nos indivíduos com história ocupacional atual ou passada a químicos, máquinas com vibração e sistemas de refrigeração (Tabela 4). Segundo o critério A, os indivíduos expostos a químicos mostraram um risco duas vezes superior de desenvolver FR, embora sem significado estatístico (pA+B = 0,08; OR = 2,1 IC95%:0,994,60). No entanto, de acordo com o critério A+B, o risco nos expostos foi quatro vezes superior e com significado estatístico (pA+B = 0,02; OR = 4,4 IC95%:1,32-14,59). Em relação à exposição a máquinas com vibração, os expostos mostraram um risco aumentado de desenvolver FR, para ambos os critérios, ainda que sem significado estatístico associado (pA = 1,00; OR = 1,0 IC95%:0,44-2,46) (pA+B = 0,15; OR = 2,9 IC95%:0,87-9,60). No grupo de expostos a sistemas de refrigeração também se verificou um risco aumentado para FR e sem significado estatístico. (pA = 0,58; OR = 1,5 IC95%:0,59-3,70) (pA+B = 0,45; OR = 2,2 IC95%:0,57-8,44).
CARACTERIZAÇÃO CLÍNICA DOS INDIVÍDUOS COM CRITÉRIOS PARA FR
Independentemente dos critérios, os inquiridos descreveram mais frequentemente a alteração bifásica da cor dos dedos com o frio, tendo existido apenas uma inquirida que referiu as três fases clássicas do FR (Fig 2).
A cor branca dos dedos foi a que experimentou uma associação estatisticamente significativa independentemente da utilização da escala de cores de Maricq (pA<0,0001; pA+B<0,0001).
Clinicamente, a maioria dos inquiridos com FR referiu alterações da cor em vários dedos de ambas as mãos (A: 95,8%, n = 23 versus A+B: 90,9%, n = 10) e, e frequentemente associadas a dores e alterações da sensibilidade das extremidades (A: 87,5%, n = 21 vs A+B: 81,8%, n = 9). A maioria dos inquiridos com FR mencionou antecedentes familiares desta condição (A: 54,2%, n = 13 vs A+B: 45,5%, n = 5), nomeadamente, em parentes de primeiro grau, ainda que sem significância estatística (pA = 0,87; pA+B = 0,57). A história medicamentosa atual não se mostrou relevante, no entanto, quando afirmativa, os contracetivos orais foram os referidos.
DISCUSSÃO
Os diversos estudos de base populacional apontam para uma prevalência de FR entre 6% a 20% nas mulheres e 3% a 12,5% nos homens, valores superiores aos obtidos no corrente estudo.26 Esta diferença de valores poderá ser explicada pela variabilidade na metodologia, pelas características da amostra e pelas condições climatéricas locais. No entanto, neste estudo, verificou-se que a metodologia utilizada, mais concretamente os critérios usados, foi o fator que mais pareceu justificar a variabilidade dos valores de prevalência. A utilização exclusiva dos critérios do UK Scleroderma Study Group (critério A) traduz uma prevalência de 4,5% (n = 30), em que 5,6% (n = 25) das mulheres e 2,3% (n = 5) dos homens tiveram critérios de FR definitivo. Por outro lado, quando se aplicou a escala de cores de Maricq (critério A+B), a prevalência reduziu para 1,7% (n = 11), em que 2,0% (n = 9) das mulheres e 0,9% (n = 2) dos homens tiveram FR positivo. Esta diferença na estimativa da prevalência obtida, em função dos critérios utilizados, apresentou significância estatística (p < 0,0001). O critério A parece possuir maior sensibilidade, enquanto o critério A+B é mais específico. A escala de cores de Maricq diminui provavelmente a subjetividade que acompanha a descrição verbal e validou entre as tonalidades apontadas pelos participantes, as variantes do normal e as patológicas.
Neste trabalho não se verificou associação entre a prevalência do FR e o género (pA = 0,08; pA+B = 0,46), o grupo etário (pA = 0,74; pA+B = 0,33), a atividade profissional (pA= 0,42; pA+B = 0,40), o concelho de residência (pA = 0,96; pA+B = 0,97), contrariando outros estudos já realizados.7,26 Por outro lado, verificou-se significância estatística entre a prevalência de FR e o estado civil, mas contrastando com a literatura, o FR foi mais prevalente entre solteiros e casados do que entre viúvos e divorciados, facto que poderá devolver alguma controvérsia à valorização do estado marital como agente de stress emocional (pA = 0,03).26,27 Aplicando o critério A+B, foi notória uma associação, com significância estatística, entre a exposição ocupacional atual ou passada a químicos com a prevalência de FR, onde os indivíduos expostos mostraram ter um risco quatro vezes superior de desenvolver FR em relação aos não expostos (pA+B = 0,02; OR = 4,4; IC95% 1,32 14,59). Significância estatística que não se verificou com outros fatores de risco ocupacional, como a exposição a máquinas com vibração e a sistemas de refrigeração, muito embora também para estes tenha sido evidente um risco aumentado de FR nos expostos selecionados pelo critério A e pelo critério A+B.
Independentemente dos critérios utilizados, a expressão clínica dos episódios de FR foi em tudo concordante com o descrito na literatura: alteração bifásica (raramente trifásica) da cor da pele de vários dedos de ambas as mãos, com dores e alterações da sensibilidade associadas.6,7,22 A fase isquémi ca foi a que mostrou associação com relevância no estabelecimento do diagnóstico do FR (pA < 0,0001; pA+B < 0,0001), possivelmente porque a cor branca é mais facilmente identificada e menos dificilmente confundida com as cores roxa e vermelha das fases cianótica e hiperémica, respetivamente, aspeto este concordante com outros autores.1,4,22,25 A utilidade da escala de cores de Maricq manifestou-se quando se compararam as frequências entre as alterações bifásicas R+V utilizando o critério A e o critério A+B. A utilização da escala de cores de Maricq (critério A+B) reduziu de 11 para 2 a frequência de FR encontrados com R+V, diminuindo, assim, o fator confundidor atribuído às diferenças entre as cores roxa e vermelha que poderão não existir ou ser explicadas por outros acrosíndromes vasculares que não o FR.1,6 Por outro lado, independentemente dos critérios utilizados, a maioria dos inquiridos relatou antecedentes familiares que sofriam igualmente de FR, o que é condizente com a demais literatura (pA = 0,87; pA+B=0,57)21,28. Em relação à história medicamentosa, os resultados obtidos foram escassos e sem significado estatístico. Os indivíduos com FR que afirmaram tomar medicação eram mulheres e referiram os contracetivos orais (nA = 7; nA+B = 2). Aliás, vários estudos reportam a associação entre o FR e alguns medicamentos, como os contracetivos orais, os beta-bloqueantes e os citostáticos.7,19,25,26
Face à ausência de estudos no nosso país, relacionados com esta condição, seria oportuno dar continuidade à estimativa da sua prevalência a nível nacional, relacionando eventuais diferenças esperadas entre o Norte e o Sul de Portugal, dado que as condições climáticas são distintas. Por outro lado, seria de valor definir qual dos critérios, A ou A+B, possui maior poder diagnóstico, avaliando, para o efeito, a sensibilidade e a especificidade de cada um através de um valor standard estipulado, por exemplo, a partir de resultados analíticos laboratoriais.
Este estudo apresentou, contudo, algumas limitações. Em primeiro lugar, o facto de a amostragem ter sido feita por conveniência impossibilita a inferência dos resultados para a população. Contudo, a estratificação da amostra de acordo com a percentagem de residentes nos respetivos concelhos manteve a proporção relativa. Em segundo lugar, a utilização de um inquérito não validado abriu a possibilidade a viés de medição. Por fim, a não realização de um teste piloto justificou algumas falhas na construção do inquérito, nomeadamente, na avaliação das histórias familiar e medicamentosa. No entanto, a utilização da escala de cores de Maricq validada facilitou o diagnóstico clínico de FR, reduzindo o viés de memória.
Em suma, em função dos critérios utilizados, no Grande Porto a prevalência de FR variou entre 1,7% e 4,5%, valores não muito diferentes dos encontrados em outros estudos. Contrariamente à literatura, a idade, o género, a exposição ocupacional a máquinas com vibração e a sistemas de refrigeração não apresentaram associação com o FR. A exposição ocupacional a químicos pareceu ser o fator de risco mais consistente para o aparecimento desta condição clínica e, independentemente dos critérios aplicados, a fase isquémica foi, das três fases clássicas do FR, aquela com maior relevância estatística no seu diagnóstico.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Prof. Doutor João Amado, pela orientação no tratamento estatístico dos dados; à Sonae Sierra® e Sonae Distribuição® nas pessoas de Ana Sofia Sousa, Dr. José Fortunato, Miguel Marques, Dr. Paulo Valentim e Dr. Ricardo Pereira, por terem consentido a implementação do inquérito nas instalações dos Centros Comerciais Via Catarina, Gaia Shopping e Maia Shopping; à Carla Almeida, à Filipa Pinto, à Filipa Sousa, à Maria Bertão e ao Rui Barbosa, por terem colaborado na realização do inquérito.
Prémios e Apresentações Prévias
O presente estudo foi realizado no âmbito da Unidade Curricular Opcional “Disciplina de Iniciação à Investigação Clínica” (DIIC) do Mestrado integrado em Medicina do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade do Porto (ICBAS/ UP), ao abrigo do Protocolo com o Centro Hospitalar do Porto (CHP), atualmente Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP), tendo sido apresentado na forma de Comunicação Oral nas “3as Jornadas de Iniciação à Investigação Clínica” (JIIC), realizadas a 1 de julho de 2011, no CHUP, e como Dissertação de Mestrado Integrado em Medicina.
Referências
1. Gayraud M. Raynaud´s phenomenon. Joint Bone Spine. 2007;74:e1-e8. [ Links ]
2. Handa R, Kumar U, Pandey RM, Aggarwal P, Biswas A, Wali JP. Raynaud’s phenomenon – a prospective study. JIACM. 2002;3:35-8.
3. Reilly A, Snyder B. Raynaud Phenomenon. Am J Nurs. 2005;105:56-65. [ Links ]
4. Bowling JC, Dowd PM. Raynaud´s disease. Lancet. 2003;361:2078-80. [ Links ]
5. Sunderkötter C, Riemekasten G. Pathophysiology and clinical consequences of Raynaud´s phenomenon related to systemic sclerosis. Rheumatology. 2006;45Suppl 3:iii33-iii5. [ Links ]
6. Cooke JP, Marshall JM. Mechanisms of Raynaud’s disease. Vasc Med. 2005;10:293-307.
7. Belch J. Raynaud’s phenomenon. Cardiovasc Res. 1997;33:25-30.
8. Nagata C, Yoshida H, Mirbod SM, Komura Y, Fujita S, Inaba R, et al. Cutaneous signs (Raynaud’s phenomenon, sclerodactylia, and edema of the hands) and hand-arm vibration exposure. Int Arch Occup Environ Health. 1993;64:587-91.
9. Block JA, Sequeira W. Raynaud´s phenomenon. Lancet. 2001;357:2042-8. [ Links ]
10. Ho M, Belch JJ. Raynaud´s phenomenon: state of the art 1998. Scand J Rheumatol. 1998;27:319-22. [ Links ]
11. Grassi W, De Angelis R, Lapadula G, Leardini G, Scarpa R. Clinical diagnosis found in patients with Raynaud’s phenomenon: a multicentre study. Rheumatol Int. 1998;18:17-20.
12. Ziegler S, Brunner M, Eigenbauer E, Minar E. Long-term outcome of primary Raynaud´s phenomenon and its conversion to connective tissue disease: a 12-year retrospective patient analysis. Scand J Rheumatol. 2003;32:343-7. [ Links ]
13. Suter LG, Murabito JM, Felson DT, Fraenkel. The incidence and natural history of Raynaud’s phenomenon in the community. Arthritis Rheum. 2005;52:1259-63. doi: 10.1002/art.20988.
14. Hirschl M, Hirschl K, Lenz M, Katzenschlager R, Hutter HP, Kundi M. Transition from primary Raynaud’s phenomenon to secondary Raynaud’s phenomenon identified by diagnosis of an associated disease. Arthritis Rheum. 2006;54:1974-81. doi: 10.1002/art.21912.
15. De Angelis R, Del Medico P, Blasetti P, Cervini C. Raynaud’s phenomenon: clinical spectrum of 118 patients. Clin Rheumatol. 2003;22:279-84.
16. Spencer-Green G. Outcomes in primary Raynaud phenomenon: a meta-analysis of the frequency, rates, and predictors of transition to secondary diseases. Arch Intern Med. 1998;158:595-600. [ Links ]
17. Matucci-Cerinic M, Allanore Y, Czirják L, Tyndall A, Müller-Ladner U, Denton C, et al. The challenge of early systemic sclerosis for the EULAR Scleroderma Trial and Research group (EUSTAR) community. It is time to cut the Gordian knot and develop a prevention or rescue strategy. Ann Rheum Dis. 2009;68:1377-80. doi: 10.1136/ard.2008.106302. [ Links ]
18. De Angelis R, Salaffi F, Grassi W. Raynaud´s phenomenon: prevalence in an Italian population sample. Clin Rheumatol. 2006;25:506-10. doi: 10.1007/ s10067-005-0077-1. [ Links ]
19. Leppert J, Aberg H, Ringqvist I, Sörensson S. Raynaud´s phenomenon in a female population: prevalence and association with other conditions. Angiology. 1987;38:871-7. [ Links ]
20. Silman A, Holligan S, Brennan P, Maddison P. Prevalence of symptoms of Raynaud´s phenomenon in general practice. BMJ. 1990;301:590-2. [ Links ]
21. Voulgari PV, Alamanos Y, Papazisi D, Christou K, Papanikolaou C, Drosos AA. Prevalence of Raynaud´s phenomenon in a healthy Greek population. Ann Rheum Dis. 2000;59:206-210. [ Links ]
22. Onbasi K, Sahin I, Onbasi O, Ustün Y, Koca D. Raynaud´s phenomenon in a healthy Turkish population. Clin Rheumatol. 2005;24:365-9. doi: 10.1007/ s10067-004-1045-x. [ Links ]
23. Çakir N, Pamuk ON, Dönmez S, Barutçu A, Diril H, Odabas E, Kiliçcigil V. Prevalence of Raynaud´s phenomenon in healthy Turkish medical students and hospital personnel. Rheumatol Int. 2008;29:185-8. doi: 10.1007/s00296008-0666-9. [ Links ]
24. Purdie G, Harrison A, Purdie D. Prevalence of Raynaud’s phenomenon in the adult New Zealand population. N Z Med J. 2009;122:55-62.
25. Maricq HR, Weinrich M. Diagnosis of Raynaud’s phenomenon assisted by color charts. J Rheumatol. 1988;15:454-9.
26. Fraenkel L. Raynaud´s phenomenon: epidemiology and risk factors. Curr Rheumatol Rep. 2002;4:123-8. [ Links ]
27. Fraenkel L, Zhang Y, Chaisson CE, Maricq HR, Evans SR, Brand F, et al. Different factors influencing the expression of Raynaud´s phenomenon in men and women. Arthritis Rheum. 1999;42:306-10. [ Links ]
28. Freedman RR, Mayes MD. Family aggregation of primary Raynaud’s disease. Arthritis Rheum.1996;39:1189-91.
Correspondência:Manuela V. Bertão manuelavidigalbertao@gmail.com
Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar Universitário do Porto, Porto, Portugal
Largo Prof. Abel Salazar, 4099-001 PORTO
Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.
Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.
Direito à Privacidade e Consentimento Informado: Os autores declaram que nenhum dado que permita a identificação do doente aparece neste artigo.
Proteção de Seres Humanos e Animais: Os autores declaram que não foram realizadas experiências em seres humanos ou animais.
Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.
Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.
Confidentiality of data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.
Protection of human and animal subjects: The authors declare that the procedures followed were in accordance with the regulations of the relevant clinical research ethics committee and with those of the Code of Ethics of the World Medical Association (Declaration of Helsinki).
Recebido: 23/10/2017
Aceite: 02/12/2017