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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.25 no.4 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.24950/rspmi/CC/113/42018 

CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS

Diretivas Antecipadas da Vontade: A Propósito de Um Caso Clínico

Advanced Directives and Living Will: A Case Report

Marta Vaz Batista, Jandir Patrocínio, Rodrigo Moraes, Lúcia Proença, Fernanda Louro, Marinela Major

Serviço de Medicina 1, Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, Amadora, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

Descreve-se o caso de uma mulher de 61 anos, com diagnóstico de neoplasia da mama em estadio IV. Na altura, recusou terapêutica. Recorre ao Serviço de Urgência, um ano após o diagnóstico, em mutismo, sendo que os exames complementares de diagnóstico revelaram uma lesão cerebral, interpretada como nova metástase. No seu processo clínico, tem uma diretiva antecipada de vontade. Este é um documento formal que explicita quais os cuidados que pretende ou não receber em final de vida. Apresentamos a descrição do caso, as indicações que a doente deixou expressas neste documento e uma reflexão acerca das diretivas antecipadas de vontade e de como estas devem ser integradas na prática clínica.

Palavras-chave: Adesão a Diretivas Antecipadas; Diretivas Antecipadas; Doente Terminal; Testamento Vital

 


 

ABSTRACT

The authors describe a case of a 61 year-old woman, diagnosed with stage IV breast cancer. At the time, she refused therapy. She is referred to the emergency department a year after, in mutism, and the computed tomography revealed a brain injury, taken as a new metastasis. In its clinical file, it was found an advance directive will. This is a formal document that spells out which medical care the person want to be given at the end of life. Here is presented the clinical case, the advance directives of will and a reflection about how these should be integrated into the clinical practice.

Keywords: Advance Directive Adherence; Advance Directives; Living Wills; Terminally Ill

 


 

Introdução

A prática clínica envolve muito mais do que o conhecimento teórico da fisiopatologia e do tratamento da doença. Há aspetos éticos que sempre se devem ter em consideração na abordagem do doente. Desde 2012 que está previsto, legalmente, a existência de Diretivas Antecipadas da Vontade (DAV), sob a forma de Testamento Vital. Em 2014 foi também publicado o modelo de DAV que deve ser preferencialmente utilizado. Neste caso, apresentamos uma doente com doença terminal, que, aquando do diagnóstico, deixou expresso quais os cuidados de saúde que pretendia ou não receber.

Caso Clínico

Mulher de 61 anos, divorciada e sem filhos, com antecedentes pessoais de depressão major e agorafobia, seguida em consulta de Psiquiatria; hipotiroidismo medicado; enfisema pulmonar; colecistectomia em 2006 por litíase biliar e tabagismo (51 UMA). Sem consumo de álcool ou drogas. Referenciada para a consulta de senologia 2 anos antes, por nódulo da mama esquerda e conglomerado adenopático axilar direito. O exame histológico foi compatível com carcinoma invasivo da mama. A tomografia computorizada mostrou metastização para gânglios mediastínicos, supra-renal esquerda, rins bilateralmente e peritoneu, estando a doente em estadio IV. Propôs-se quimioterapia antineoplásica com antraciclina e taxano e terapêutica dirigida anti-Her2 com trastuzumab, que a doente recusou. Optou ainda por deixar de ser seguida em consulta de Oncologia. Foi providenciado apoio domiciliário diário.

Nesta altura, a doente deixou expressa a sua vontade relativa aos cuidados que pretende ou não receber em fim de vida.

Um ano após abandono da consulta, trazida ao Serviço de Urgência em mutismo, comunicando com gestos, e dor abdominal difusa. Ao exame objetivo, mama esquerda com massa de consistência pétrea no quadrante superior esquerdo, com conglomerados adenopáticos axilares bilaterais, à esquerda com extensão cutânea e áreas de necrose e dor à palpação dos quadrantes inferiores do abdómen.

Realizou tomografia computorizada (TC) crânio-encefálica que mostrou lesão expansiva sugestiva de metástase. A ressonância magnética (RM) de crânio revelou lesão ocupando espaço, com limites bem definidos, centro hiperintenso em T2 e contorno irregular, espesso e hipercaptante sugestivo de depósito secundário necrótico/quístico, condicionando efeito de massa local. Repetiu TC toraco- -abdomino-pélvica que comprovou progressão de doença, com extensão da metastização para supra-renal direita, fígado, pulmão direito e parede toraco-abdomino-pélvica. Ficou com indicação para realização de radioterapia craniana com intuito paliativo, após discussão com a Oncologia Médica. Apesar da sua diretiva antecipada de vontade, em que deixava expresso não pretender receber cuidados paliativos, a doente aceitou esta terapêutica, tendo realizado nove sessões. Após a quinta sessão, agravamento do estado clínico, apresentando flutuação do estado de consciência, hipotensão e anisocória. Foram instituídas medidas de conforto (que a doente tinha deixado expresso pretender receber), acabando a doente por falecer no dia seguinte.

Diretivas Antecipadas da Vontade

Aquando do diagnóstico de neoplasia da mama em estadio IV, a doente decidiu deixar expressa a sua vontade relativa aos cuidados de saúde que pretendia receber/não receber. Redigiu o Testamento Vital, onde afirmou que não pretendia ser submetida a reanimação cardiorrespiratória, a meios invasivos de suporte artificial de funções vitais, a medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visassem retardar o processo natural de morte, a tratamentos em fase experimental, de investigação científica ou ensaios clínicos, a transfusão de hemocomponentes ou derivados. Declarou ainda não querer receber medidas paliativas, hidratação oral mínima ou subcutânea e não pretender receber assistência religiosa. Pretendia, sim, que fossem administrados fármacos necessários para controlar, com efectividade, dores e outros sintomas susceptíveis de causar padecimento, angústia ou mal-estar (Fig 1).

Discussão

Uma Diretiva Antecipada da Vontade (DAV) é um documento formal, feito por iniciativa do cidadão, onde este pode inscrever os cuidados de saúde que pretende ou não receber.1 Idealmente, deverá ser expressa em modelo apropriado2 e registada no Registo Nacional do Testamento Vital. “O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida recomenda que, em qualquer caso, ao fazer uma DAV, o respetivo autor debata previamente o assunto com um profissional de saúde da sua confiança, ou com a equipa de saúde que o cuida”,3 pois esta reflexão implica a compreensão da doença, do potencial de recuperação e das alternativas terapêuticas existentes para essa patologia. A decisão final será sempre da responsabilidade do doente. O documento de DAV tem uma validade de cinco anos, findos os quais o utente deverá repetir o processo, caso pretenda manter expressa esta sua deliberação. A qualquer momento poderá, também, cancelar a DAV.

Apesar de prevista na lei desde 2012, ainda é relativamente infrequente depararmo-nos com doentes que expressem DAV. Quando tal acontece, o profissional de saúde deverá não só explorar as vertentes psicológica, social e espiritual do doente, como também integrar esta visão holística numa reflexão ética ponderada acerca da melhor decisão clínica.

Nas sociedades ocidentais, em que ainda está bastante enraizado o conceito de uma medicina paternalista e em que as decisões do médico tendem a ser soberanas, as DAV têm o papel de trazer a decisão de volta ao doente, mesmo que este se encontre num estado em que já não tenha capacidade de expressar a sua vontade verbalmente. “A recusa de tratamentos de suporte vital não pode ser vista como uma tentativa de suicídio ou como eutanásia, pois uma tal decisão apenas permitirá que a doença siga o seu curso natural. Se a morte eventualmente ocorrer, será o resultado de uma doença e não de lesões auto ou hetero-inflingidas “.4 Isto porque o melhor interesse do doente pode não ser, necessariamente, o de prolongar a vida, mas antes a decisão de não ser submetido a estratégias invasivas que adiam a morte natural e não trazem benefício em termos de qualidade de vida. Assim, as DAV plasmam os princípios da autonomia e da auto-determinação. No entanto, “outros princípios, nomeadamente os da beneficência e da não-maleficência, não deixam também de estar presentes aquando da tomada de decisões sobre pessoas incapazes de se exprimirem”.5

As DAV são orientações e, como tal, não têm carácter obrigatório. Cabe ao médico, por exemplo, a decisão de não iniciar terapêuticas que não considere adequadas face à situação clínica do doente. De facto, “o desejo de tratamentos extraordinários, que em nada adiantarão para o bem-estar do doente ou para a sua longevidade, não vincula o médico”.4 Também, “não deverão ser respeitadas quando: se comprove que o outorgante não desejaria mantê-las, se verifique evidente desatualização da vontade do outorgante face ao progresso dos meios terapêuticos, entretanto verificado; não correspondam às circunstâncias de fato que o outorgante previu no momento da sua assinatura. Ainda, em caso de urgência ou de perigo imediato para a vida do paciente, a equipa responsável pela prestação de cuidados de saúde não tem o dever de ter em consideração as DAV, no caso de o acesso às mesmas poder implicar uma demora que agrave, previsivelmente, os riscos para a vida ou a saúde do outorgante.”6 Desta forma, cabe sempre ao médico a decisão final de seguir as indicações expressas no documento.

Porque tratamos doentes e não doenças, as DAV devem ser encaradas, pelos profissionais de saúde, como uma norma orientadora, facilitadora da comunicação médico-doente, mesmo perante um paciente que não tenha, de momento, capacidade de se exprimir. Permitem, assim, integrar os cuidados de saúde naquilo que o doente crê ser o seu melhor interesse perante determinada situação clínica e preservar a auto-determinação e crenças de cada indivíduo.

 

Referências

1. Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, Perguntas Frequentes FAQ´s RENTEV Testamento Vital, 2014. Lisboa: SPMS; 2014.

2. Portaria nº 104/2014, de 15 de Maio de 2014, Diário da República nº 93 – I série, Ministério da Saúde, Lisboa.

3. Conselho Nacional de Ética para as ciências da vida, Parecer nº 69 do conselho nacional de ética para as ciências da Vida - Parecer sobre as propostas de portaria que regulamentam o modelo de testamento vital e o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV), 2012. Lisboa: SPMS; 2012.

4. Raposo VL. Diretivas antecipadas da vontade: em busca da lei perdida. Lisboa: Revista do Ministério Público; 2011        [ Links ]

5. Conselho Nacional de Ética para as ciências da vida, Parecer nº 59 do conselho nacional de ética para as ciências da Vida - Parecer sobre os projectos de lei relativos às declarações antecipadas de vontade, Lisboa, 2010. Lisboa: SPMS; 2010.

6. Lei nº 25/2012, de 16 de Julho de 2012, Diário da República nº 136 – I série, Assembleia da República, Lisboa.

 

 

Correspondência:Marta Vaz Batista martafilipavaz@gmail.com
Serviço de Medicina 1, Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, Amadora, Portugal
IC 19 - 2720-276 Amadora

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Direito à Privacidade e Consentimento Informado: Os autores declaram que nenhum dado que permita a identificação do doente aparece neste artigo.

Proteção de Seres Humanos e Animais: Os autores declaram que não foram realizadas experiências em seres humanos ou animais.

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Protection of human and animal subjects: The authors declare that the procedures followed were in accordance with the regulations of the relevant clinical research ethics committee and with those of the Code of Ethics of the World Medical Association (Declaration of Helsinki).

 

Recebido: 06/09/2017

Aceite: 15/12/2017

 

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