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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.26 no.3 Lisboa set. 2019

https://doi.org/10.24950/rspmi/Revisao/229/18/3/2019 

ARTIGOS DE REVISÃO / REVIEW ARTICLES

Insuficiência Respiratória Aguda: Dúvidas Existenciais do Internato em Medicina Interna

Acute Respiratory Failure: Existential Questions in Internal Medicine Fellowship

 

Jorge Dantas1
https://orcic.org/0000-0002-1775-914X

Rui Morais1
https://orcid.org/0000-0001-7141-4604

Rita Vaz1
https://orcic.org/0000-0001-6120-5577

Irene Verdasca4
https://orcid.org/0000-0001-7619-8103

 

1Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, Hospital São Francisco Xavier, Lisboa, Portugal

Correspondência

 

Resumo:

Com o objectivo de rever aquelas que são as recomendações mais recentes no que se refere à abordagem do doente em insuficiência respiratória aguda em contexto de urgência, nomeadamente daquelas que são as dificuldades e dúvidas com que um especialista ou interno de medicina interna se pode deparar neste contexto, são apresentadas a metodologia ABCDE, a abordagem ao doente com asma aguda ou doença pulmonar obstrutiva crónica agudizada, e também ao doente com insuficiência cardíaca aguda, sendo discutido ainda o diagnóstico diferencial entre estas patologias. São revistas assim a abordagem clínica em contexto de urgência externa/interna de medicina interna e as etiologias mais frequentes da insuficiência respiratória aguda neste contexto, integrando-as com casos clínicos e com as dúvidas que frequentemente surgem neste ambiente, condicionadas tanto pelo stress a ele inerente, como pela complexidade da abordagem ao doente instável.

Palavras-chave: Insuficiência Respiratória; Serviço de Urgência Hospitalar

 


 

Abstract

With the aim of reviewing the most recent recommendations regarding the approach of the patient in acute respiratory failure in an emergency context, namely those that are the difficulties and doubts we can find, we present the ABCDE methodology, the approach to the patient with acute asthma or acute obstructive pulmonary disease, and also the patient with acute heart failure, and the differential diagnosis between them. Therefore it is discussed the clinical approach to the emergent patient in internal medicine and the most frequent etiologies of acute respiratory failure in this context, resorting to clinical cases and the doubts that frequently arise in this environment, conditioned both by the inherent stress and the complexity of the unstable patient.

Keywords:Emergency Service, Hospital; Respiratory Insufficiency

 


Introdução

A Medicina Interna é neste momento a especialidade que em contexto de urgência é responsável na maioria dos serviços de urgência externa do nosso país pela abordagem inicial ao doente instável com patologia médica, sendo um dos diagnósticos mais prevalentes neste contexto a insuficiência respiratória aguda (IRA).

Dadas as suas especificidades, o trabalho em ambiente de urgência fica por vezes refém do impacto do stress na tomada de decisão médica, sendo passível que ao invés de conceitos científicos esta adopte por base um conjunto de respostas automáticas e mimetismos que não representam a resposta adequada ao quadro clínico em questão.

A Medicina Interna é neste momento a especialidade que em contexto de urgência é responsável na maioria dos serviços de urgência externa do nosso país pela abordagem inicial ao doente instável com patologia médica, sendo um dos diagnósticos mais prevalentes neste contexto a insuficiência respiratória aguda (IRA). Dadas as suas especificidades, o trabalho em ambiente de urgência fica por vezes refém do impacto do stress na tomada de decisão médica, sendo passível que ao invés de conceitos científicos esta adopte por base um conjunto de respostas automáticas e mimetismos que não representam a resposta adequada ao quadro clínico em questão. No que se refere às competências clínicas da equipa assistente, o consenso actual é de que a abordagem ABCDE deve ser a estratégia a seguir sempre que o médico se depara perante uma situação clínica potencialmente crítica, o que se encontra expresso por exemplo no facto de ser esta a abordagem preconizada quer no doente em risco de evolução para paragem cardio-respiratória (PCR), quer no doente pós recuperação da circulação espontânea.1-4

Podendo ser aplicada em todas as situações clínicas, a abordagem ABCDE permite simultaneamente estabilizar o doente e realizar uma investigação diagnóstica com o objectivo de adequar a terapêutica instituída à situação clínica em questão,3-4 sendo por vezes esta metodologia simplificadamente descrita como ´reconhecer e tratar.1-2

O doente com IRA enquadra-se nas situações clínicas potencialmente críticas e com risco de evolução rápida para PCR, pelo que a sua abordagem deverá seguir a metodologia ABCDE.1 Neste sentido, esta revisão partirá desta metodologia para o estabelecimento de um diagnóstico diferencial e para a resolução de um conjunto de dúvidas que por vezes surgem associadas à abordagem dos doentes com IRA em contexto de urgência.

1ª Parte: Etiologia cardiovascular versus pulmonar primária

Dúvida nº 1 - Existirá uma terapêutica geral de estabilização para a IRA?

Não terá à partida qualquer sentido em tratar doentes diferentes e situações clínicas diversas exactamente da mesma forma, contudo, quando o médico é confrontado com uma situação de stress, pode sentir-se impelido a tomar a decisão mais simples ao seu dispor - por exemplo, recuperar a última abordagem terapêutica utilizada num caso semelhante.

Começos por atentar nos seguintes casos clínicos:

1- Homem 70 anos, obeso, fumador, antecedentes de hipertensão arterial (HTA), sem seguimento médico regular. Vem por dispneia franca súbita, não completando frases. Está desorientado. Exame objectivo (EO) com murmúrio vesicular (MV) francamente diminuído bilateralmente com prolongamento do tempo expiratório. Extremidades frias. Saturação periférica de oxigénio (SapO2) e tensão arterial (TA) não mensuráveis.

2- Mulher de 85 anos. Antecedentes de insuficiência cardíaca (IC), HTA e fibrilhação auricular (FA). Vem por dispneia franca e cansaço com 3 dias de evolução e prostração com um dia de evolução, associada a tosse produtiva e febre. EO com MV diminuído à direita, com fervores crepitantes bibasais e muitos roncos mais evidentes à direita. TA 70/30 mmHg; frequência cardíaca (FC) 130 bpm em FA; SapO2 88% em ar ambiente.

3- Homem de 55 anos, fumador, antecedentes de HTA e cardiopatia isquémica. Vem por dispneia e tosse com agravamento ao longo do dia. EO com FC de 120 bpm, TA 160/100 mmHg, SapO2 80% em ar ambiente, com muitos sibilos bilateralmente e prolongamento do tempo expiratório.

À chegada a um qualquer serviço de urgência, dada a gravidade aparente das suas situações clínicas, todos estes três doentes serão passíveis de serem tratados inicialmente com 40 mg de furosemida endovenosa (e.v.), 200 mg de hidrocortisona e.v. e terapêutica broncodilatadora inalada em baixa dose, que representa uma abordagem ampla não direcionada a uma etiologia em concreto. Este aspecto faz-nos então levantar a dúvida - existirá uma terapêutica única de estabilização para a IRA?

Ou seja, perante a identificação de um problema (neste caso a IRA) o médico decide imediatamente um plano terapêutico, não percorrendo os passos intermédios - o da avaliação de sinais e sintomas, a identificação de um mecanismo fisiológico subjacente e a definição de um diagnóstico mais provável.

Na verdade, esta primeira dúvida poderia ser enunciada segundo aquele que é uma das dificuldades crónicas na abordagem ao doente em IRA: Estamos perante uma etiologia cardiovascular, uma etiologia primária pulmonar ou uma outra etiologia?

É a falência na resolução desta questão que leva à decisão de tratar simultaneamente todas as etiologias possíveis com fármacos em baixa dose, por oposição à identificação do mecanismo subjacente seguido da consequente abordagem agressiva do mesmo.

Enquanto que um doente estável pode ser rotinamente abordado segundo a análise dos seus antecedentes pessoais e história de doença crónica, seguida da colheita da história clínica e identificação dos sintomas relevantes para o quadro actual, ao que se segue o EO e identificação de sinais clínicos e por fim a análise dos exames complementares de diagnóstico (MCDTs) antes da definição de um plano terapêutico, quando estamos perante um doente emergente esta abordagem não é possível.

Um doente em IRA não apresentará condições para nos fornecer os seus antecedentes pessoais, nem tão pouco a sua história clínica e necessitará da definição de um plano terapêutico muito antes de apresentar a estabilidade que lhe permita realizar os MCDTs de que necessita.

Não é, portanto, de estranhar que perante esta dificuldade na abordagem ao doente, associada à necessidade de uma decisão rápida, leve o médico a seguir uma reposta emocional e automática, decidindo-se pela supracitada ´terapêutica geral de estabilização´.

Dúvida nº 2: Perante um doente em IRA que se apresenta instável, será o primeiro e mais adequado passo a realização de uma gasimetria arterial (GSA)?

Tal como todos os procedimentos invasivos em doentes instáveis, ao optarmos por os realizar corremos o risco de ficar presos ao procedimento, incapazes por um lado de o realizar em tempo útil dada a dificuldade acrescida pela instabilidade do doente, e por outro incapazes de prosseguir a sua estabilização por estarmos presos a uma tarefa em concreto.

Certamente que um doente com IRA beneficiará da realização de uma GSA, contudo, uma vez mais, será talvez necessária uma metodologia que nos permita obter respostas mais rapidamente e que não nos deixe dependentes de um procedimento que será eventualmente difícil de realizar.

Atentando nas últimas recomendações publicadas pelo European Ressuscitation Council (ERC), no que se refere ao suporte avançado de vida (SAV),1-2 é claro que perante um doente colapsado/instável a primeira abordagem é pedir apoio e avaliar o doente. Caso este se encontre em PCR deve ser seguido o algoritmo de SAV, por outro lado caso o doente apresente sinais de vida deve ser seguida a metodologia ABCDE, com o intuito de ´reconhecer e tratar´.

A metodologia ABCDE preconiza assim que se avalie sequencialmente e com base no EO: a via aérea do doente (A), procurando sinais de obstrução e resolvendo-a caso ela exista; a função respiratória (B), avaliando a oxigenação e a ventilação e suportando-as quando necessário; a função cardiovascular (C), nomeadamente o preenchimento vascular e os sinais de sobrecarga hídrica e de baixo débito cardíaco; a disfunção neurológica (D); e que por fim se realize uma exposição (E) verificando todas as outras alterações que ainda não tenham sido identificadas.3

Aplicando esta metodologia ao doente que se apresenta com dispneia ou hipoxémia, seremos capazes de identificar aqueles com provável etiologia cardiovascular e que apresentam principalmente alterações em C, os doentes com provável etiologia pulmonar e que apresentam fundamentalmente alterações em B, e os doentes que pelo contrário apresentam alterações em A, D e E, e que provavelmente possuem uma outra etiologia para a sua IRA.

2ª Parte: Etiologia primária pulmonar

De forma a rever aquelas que são as etiologias mais frequentes para a IRA, comecemos por nos centrar na avaliação de B segundo a metodologia ABCDE3:

- Na inspecção e palpação poderemos encontrar movimentos respiratórios ineficazes (eventualmente traduzindo problemas em A ou D); desvio da traqueia, assimetria dos movimentos respiratórios ou enfisema subcutâneo (problemas do foro de B e potencialmente no contexto de um pneumotórax ou de trauma).
- A percussão e pesquiza de vibrações vocais poderiam potencialmente ajudar-nos a esclarecer assimetrias, contudo no contexto de um ambiente instável habitualmente são muito difíceis de realizar adequadamente.
- Na auscultação torácica poderemos encontrar roncos, crepitações assimétricas ou uma diminuição assimétrica do MV (sugestivas de uma infecção respiratória baixa); sibilos ou prolongamento do tempo expiratório (sugestivas de broncospasmo), ou ainda crepitações simétricas ou uma diminuição simétrica do MV (mais sugestivas de sobrecarga hídrica esquerda, e, portanto, um problema de C).

Esta abordagem ABCDE, baseada em ´reconhecer e tratar´ sugerida pela ERC, leva-nos então até à dúvida nº 3.

Dúvida nº 3: Deveremos administrar O2 suplementar antes de realizar uma GSA? E se o doente tiver uma doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC)? Qual é a prioridade de correcção, a hipoxémia ou a hipercápnia?

Olhando para os 3 casos clínicos apresentados, a situação paradigmática desta dúvida é o doente nº 1: Dispneia franca, não é possível medir SapO2, ainda não tem GSA, é fumador - terá DPOC?

Olhando uma vez mais para aquelas que são as recomendações internacionais, neste caso da British Thoracic Society (BTS) para a utilização de O2 suplementar em adultos em contexto de emergência,5 temos que:

- No contexto de doente crítico a terapêutica inicial de oxigénio recomendada é de 15 L/min por máscara de alto débito (MAD) com reservatório até existirem medições fiáveis da oximetria.
- Se não for possível obter leituras fiáveis da oximetria, deve ser mantida MAD até ao tratamento definitivo.
- Doentes em respiração espontânea, com oximetrias fiáveis, devem ter saturações periféricas tituladas para os 94% - 98%.
- Doentes com DPOC e outros factores de risco para a hipercapnia que se apresentem instáveis devem ser abordados da mesma forma que os restantes doentes até à realização de GSA, após o que poderão necessitar de titulação da oximetria para os 88% - 92%.

Dúvida nº 4: É necessário realizar uma GSA num doente em exaustão para a comprovar e para posteriormente avançar para entubação orotraqueal (EOT) e ventilação mecânica invasiva (VMI)?

Assumindo que eventualmente não existirá uma resposta certa para todas as situações, podemos dizer que, na maioria dos casos, a clínica se sobrepõe sempre aos MCDTs e que estes se destinam a esclarecer dúvidas que eventualmente subsistam após a avaliação clínica. No fundo, se uma GSA (ou qualquer outro MCDT) não vai esclarecer uma dúvida, se a clínica é suficiente para tomar a decisão, então esse MCDT não vai trazer benefício ao doente e como tal não tem sentido a sua realização.

Vamos então agora recuperar a dúvida nº 1. Já definimos que deve ser preferida uma abordagem ABCDE com o intuito de ´reconhecer e tratar´, de forma a ser possível ao mesmo tempo que se estabiliza o doente, procurar o mecanismo fisiológico na base da sua insuficiência respiratória e o diagnóstico mais provável que lhe está subjacente de forma a estabelecer um plano terapêutico adequado.

No que se refere aos problemas de B (portanto aqueles de etiologia primária pulmonar) os mais comuns em contexto de urgência serão a asma e a DPOC agudizadas, juntamente com as infecções respiratórias baixas.

Qual será então a terapêutica a instituir? Recuperamos a ´terapêutica geral de estabilização´ ou será que existe uma alternativa?

Uma vez mais vamo-nos socorrer daquelas que são as recomendações internacionais neste contexto. Começando pela asma e pelas recomendações da Global Initiative for Asthma,6 temos que:

- Em casos moderados em doentes geridos nos cuidados primários o tratamento inicial deve ser 4 a 10 puffs por dispositivo pressurizado e câmara expansora de beta agonista de acção curta (SABA) (p. ex. salbutamol 100 mcg/ inalação) a cada 20 minutos durante uma hora; prednisolona 1 mg/kg oral até aos 50 mg por dia; oxigénio titulado para SapO2 de 93% a 95%. Em caso de agravamento ou de asma severa os doentes devem ser sempre geridos em ambiente hospitalar.

- Em ambiente de urgência o primeiro passo é a abordagem ABCDE, se o doente apresentar prostração, confusão ou tórax silencioso (abolição grave do MV), deve ser contactada a unidade de cuidados intensivos e deve ser preparada EOT.

- Não apresentando os critérios de gravidade supracitados, o doente seve ser tratado com SABA (iniciar com terapêutica contínua ou com repetição muito frequente por via inalatória, não existindo benefício comprovado em administração por outras vias); eventualmente com associação de anticolinérgico de acção curta (p. ex. brometo de ipatrópio) e de corticóide sistémico (prednisolona 50 mg/dia ou dose equivalente de hidrocortisona) (não existe benefício em corticóide inalado se o doente realizar corticóide sistémico simultaneamente); oxigénio titulado para SapO2 de 93% - 95%.

- Não está recomendada a terapêutica com sulfato de magnésio, nem com aminofilina ou teofilina, nem tão pouco o início de VNI.

No que toca à DPOC e às recomendações de 2018 da Global Initiative for Chronic Obstrutive Lung Disease,7 no que se refere às agudizações, a estratégia terapêutica é muito semelhante à utilizada na asma com as seguintes excepções:

- Não estão recomendadas nem doses tão altas nem tão frequentes de SABA (uma vez que ao contrário da asma, na DPOC o broncospasmo não é potencialmente reversível por completo).

- A VNI deve ser a primeira modalidade de ventilação assistida a iniciar, dado esta ser uma das duas situações em que está claramente indicada (sendo a outra o edema agudo do pulmão [EAP]), caso não existam contraindicações. No que se refere às infecções respiratórias baixas, ao contrário do que sucede nos casos de asma e de DPOC agudizadas, e caso o doente não apresente hiperreactividade brônquica, não tem sentido o recurso a broncodilatadores, nem tão pouco tem benefício a terapêutica corticóide sistémica por rotina.8

Dúvida nº 5: Um doente internado por infecção respiratória baixa, que apresenta má evolução clínica e episódios repetidos de agudização da sua dispneia, beneficiaria da ´terapêutica geral de estabilização´? Entre não fazer nada e tentar, qual a melhor opção?

Para facilitar a abordagem a esta dúvida, apresenta-se o seguinte caso clínico:

4- Homem de 80 anos, HTA, FA, diabetes mellitus tipo2 insulino tratado, internado por pneumonia adquirida na comunidade. Chamada por polipneia (episódios prévios repetidos tratados com hidrocortisona, brometo de ipatrópio e furosemida; optou-se previamente por não recorrer ao salbutamol dado o quadro de FA).

EO com roncos bilaterais, mais evidentes à direita e crepitações secas. Não consegue mobilizar secreções. Desidratado. GSA: acidémia metabólica com anion gap aumentado. Cetonémia de 5,0 mmol/dL.

Tal como sucedeu para a dúvida nº 4, não existe aqui uma resposta válida para todas as situações, contudo temos o exemplo do que pode acontecer quando perante um doente sem indicação para uma determinada terapêutica se opta por insistir nela mesmo assim - benefícios limitados e iatrogenias importantes - como poderão ser uma cetoacidose diabética para a qual contribuiu a terapêutica repetida com hidrocortisona e o quadro de desidratação agravado pela furosemida, existindo concomitantemente um quadro de secreções secas e muito difíceis de mobilizar agravadas pelos efeitos de um anti-colinérgico como o brometo de ipatrópio e uma vez mais pela desidratação induzida pela furosemida.

Dúvida nº 6: Pode um doente taquicardico fazer terapêutica com salbutamol?

Pondo de parte um doente com um enfarte agudo do miocárdio (EAM) a quem um beta-agonista pode agravar o quadro de isquemia, ou um doente com uma taquidisritmia como causa de IRA (e portanto um problema primário em C e provavelmente sem necessidade de SABA), a maioria dos doentes candidatos a realizar SABA, apresenta taquicardia como resposta fisiológica ao quadro de hipoxémia ou de dispneia, tendo indicação para manter terapêutica broncodilatadora, pois só assim será possível aliviar a sintomatologia e controlar a resposta fisiológica (taquicardia) por ela desencadeada.

3ª Parte: Etiologia cardiovascular

Tal como vimos para B, a metodologia ABCDE pretende ´reconhecer e tratar´ sequencialmente os problemas encontrados na avaliação clínica do doente, tendo por base o EO realizado à sua cabeceira.

Neste sentido na avaliação de C:

Na inspecção e palpação será avaliada a perfusão periférica, bem como a TA e a pressão de pulso, que juntamente com a avaliação do estado de consciência e do débito urinário, consistem nos sinais clínicos mais acessíveis de baixo débito cardíaco (extremidades frias, alteração da coloração da pele, aumento do tempo de reperfusão capilar, diminuição da pressão de pulso [baixa TA sistólica com alta TA diastólica, revelando uma pequena diferença entre ambas, sugerindo baixo débito cardíaco e vasoconstrição periférica reactiva], associado a prostração ou desorientação e diminuição do débito urinário). O baixo débito cardíaco pode provocar isoladamente IRA por via indirecta, ao comprometer a perfusão e correcto metabolismo ao nível da musculatura respiratória.

- Ainda na inspecção e palpação poderemos encontrar: edema das zonas de declive, pele húmida e suada, bem como ingurgitamento venoso jugular ou refluxo hepato-jugular que são sinais sugestivos de sobrecarga hídrica direita (isto é, com origem no aumento das pressões no interior das cavidades cardíacas direitas), mas que por si só não são habitualmente causa de IRA.

- Em termos de auscultação pulmonar o doente poderá apresentar crepitações ou fervores crepitantes simétricos, diminuição simétrica do MV e broncospasmo, que são sugestivas de sobrecarga hídrica esquerda (com origem no aumento das pressões no interior das cavidades esquerdas do coração).

- Por outro lado em termos auscultatórios, é possível encontrar alterações predominantemente assimétricas, ou roncos e ruídos de transmissão, que como vimos anteriormente são mais sugestivas de patologia pulmonar primária e, portanto, de um problema em B.

Sobrecarga hídrica direita, sobrecarga hídrica esquerda e baixo débito cardíaco, podem ter origem em disfunção sistólica ou diastólica tanto do ventrículo direito (VD) como do ventrículo esquerdo (VE).

Cruzando estes dados com o mecanismo mais provavelmente envolvido na sua origem, sendo ele um aumento da pré-carga, um aumento das pós carga, ou queda do volume sistólico, é possível estabelecer qual o diagnóstico mais provável para a situação clínica em questão.

Este aspecto pode ser útil na marcha diagnóstica uma vez que por exemplo um doente em EAP, tem de obrigatoriamente apresentar aumento das pressões nas cavidades cardíacas esquerdas, tendo forçosamente este aumento de ser condicionado por um de três mecanismos: Aumento da pré-carga (p.ex. hipervolémia), aumento da pós-carga (p.ex. pico hipertensivo), diminuição do volume sistólico (p.ex. taquidisritmia com disfunção diastólica, ou EAM com disfunção sistólica). Se nenhum dos mecanismos estiver presente, então é muito improvável que o doente apresente um aumento real das pressões nas cavidades esquerdas e que como tal o quadro clínico se trate de um verdadeiro EAP.

Da mesma forma:

- Situações de sobrecarga hídrica esquerda e aumento da pré-carga (portanto aumento da pressão telediastólica do VE), podem ter na sua origem um estado hipervolémico; queda do volume sistólico no contexto de disfunção sistólica do VE por EAM, ou em caso de disfunção diastólica por taquidisritmia; e ainda em alterações valvulares como no caso de insuficiência mitral ou aórtica.

- Situações de sobrecarga hídrica esquerda e aumento da pós-carga (portanto aumento do trabalho sistólico do VE), podem ter na sua origem um pico hipertensivo, ou uma obstrução do tracto de saída do VE (p.ex. por estenose aórtica).

- Situações de sobrecarga hídrica direita e aumento da pós-carga do VD estão habitualmente relacionadas com obstrução à saída do VD como por exemplo no caso de tromboembolismo pulmonar (TEP) ou de outras causas de hipertensão pulmonar.

- Quadros de baixo débito cardíaco com queda da pré-carga do VE podem ter na sua origem um EAM do VD, TEP, pneumotórax hipertensivo, tamponamento cardíaco, ou um estado de hipovolémia.

- Quadros de baixo débito cardíaco e queda do volume sistólico (com pré-carga mantida ou aumentada) podem surgir no contexto de EAM do VE ou do VD; por uma taqui ou bradidisritmia (sendo que no caso da bradidisritmia é o volume ejectado por minuto que está diminuído); ou por exemplo no contexto de uma insuficiência major mitral ou aórtica.

- Por fim, é comum que exista alguma sobreposição, com o doente a apresentar simultaneamente sobrecarga hídrica esquerda, direita ou baixo débito com diferentes graus de gravidade.

Sendo a IC aguda, nomeadamente a sua apresentação em EAP uma das duas indicações formais da ventilação não invasiva, chegamos então à dúvida nº 7.

Dúvida nº 7: Pode um doente hipotenso fazer VNI com a aplicação de pressão positiva sobre a via aérea e a cavidade torácica?

Isto será o mesmo que perguntar ´pode o doente do caso clínico 1, à chegada ao SU, realizar VNI colocando-se a hipótese de se encontrar em choque cardiogénico?´

Segundo aquilo que nos diz a fisiologia, o doente do caso nº 1 pode, mas a reposta não é extensível a todos os doentes em choque cardiogénico. Vejamos, um doente em choque cardiogénico por disfunção sistólica do VD irá agravar o quadro de choque se for submetido a um aumento da pressão intratorácica com consequente diminuição do retorno venoso. A estabilização neste contexto é precisamente a atitude contrária, aumentando a pré-carga e as pressões dentro das cavidades direitas de forma a melhorar o débito cardíaco.

Contudo o doente do caso clínico 1 apresenta-se aparentemente em EAP, com sinais de sobrecarga hídrica esquerda, colocando-se a hipótese de estarmos perante um quadro de EAM do VE com diminuição concomitante do débito cardíaco. Neste caso, o aumento da pressão intratorácica provocado pela VNI fará diminuir a pós-carga (por igualização das pressões) o que habitualmente resulta não só numa melhoria da insuficiência respiratória como também do quadro de choque facilitando o trabalho do VE durante a sístole (ou seja, se pensarmos que durante a sístole o VE tem de ejectar o sangue para fora da cavidade torácica, e se for abolida a pressão negativa intra-torácica provocada pela inspiração, o trabalho do VE fica facilitado pois deixa de ter de ejectar um determinado volume de sangue de dentro de uma cavidade que está continuamente a aspirá-lo para dentro de si).

Dúvida nº 8: Sendo difícil distinguir uma etiologia pulmonar primária de uma cardiovascular no contexto de IRA, terá a determinação do péptido natriurético (NT-proBNP) algum papel a desempenhar?

Para responder a esta dúvida, vamos analisar as últimas recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC), no que se refere à IC.9

- De uma forma semelhante ao exposto anteriormente neste artigo, o doente deve ser avaliado de forma a determinar se apresenta ou não sinais de baixo débito cardíaco e se apresenta ou não sinais de sobrecarga hídrica.

- Os doentes com sinais de sobrecarga hídrica (ou wet patient) consistem em 95% dos doentes com IC aguda. Destes, aqueles que não apresentam sinais de baixo débito (wet and warm) dividem-se naqueles em que predomina a hipertensão e em que os fármacos de primeira linha são os vasodilatadores, e naqueles em que predomina a congestão e em que os fármacos de primeira linha são os diuréticos.

- Os doentes com sinais de sobrecarga hídrica e sinais de baixo débito cardíaco, se se encontram hipotensos com TA sistólica <90 mmHg, estão habitualmente em choque cardiogénico e beneficiam de suporte inotrópico e vasopressor em primeira linha.

- Quanto aos doentes sem sinais de sobrecarga hídrica (dry patient), aqueles que concomitantemente estão sem sinais de baixo débito (dry and warm), habitualmente só precisam de ajuste da sua medicação oral. Quanto aos doentes sem sobrecarga hídrica, mas com sinais de baixo débito (dry and cold), valerá a pena realizar um fluid challenge e optimização do preenchimento vascular antes de considerar terapêutica inotrópica.

- No que se refere à determinação do NT-proBNP em si, o seu interesse é limitado. Apresentando este exame uma grande sensibilidade com baixa especificidade, apenas um valor negativo tem relevância clínica ao diminuir a probabilidade de o doente apresentar um quadro de IC, uma vez que o valor preditivo negativo do teste é elevado, mas que o contrário não se verifica.

Dúvida nº 9: O que mais podemos oferecer a um doente com IRA?

Após a estabilização do doente para a qual a metodologia ABCDE é indispensável abre-se a possibilidade da realização de diversos MCDTs que permitirão uma melhor compreensão da situação clínica em questão.

Dentro daqueles que é possível realizar à cabeceira do doente é de destacar a ecografia, nomeadamente a metodologia FOCUS proposta pela ESC,10 que inclui a ecocardiografia e a ecografia torácica à cabeceira do doente com o intuito de excluir diagnósticos que põem a vida do doente em risco iminente e de permitir um complemento da abordagem clínica à etiologia subjacente ao quadro de insuficiência respiratória aguda, como são a avaliação do estado volémico e da função sistólica do VE e do VD.

Conclusão

Apesar de amplamente comum na prática clínica a IRA em ambiente de urgência está longe de nos solicitar uma abordagem simples, o que associado ao stress induzido pela instabilidade que o doente apresenta, favorece a tomada de decisões automáticas com um cariz emocional muito importante. Cabe-nos a nós enquanto médicos, lutar contra os nossos mecanismos inatos de defesa e procurar realizar uma abordagem o mais adequada possível, por muito que ela nos obrigue a confrontar com estratégias com as quais não estamos familiarizados.

 

Referencias

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Correspondência: Jorge Dantas jorgeolveiradantas@gmail.com
Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, Hospital São Francisco Xavier, Lisboa, Portugal Estrada Forte do Alto Duque 1449-005 Lisboa

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Suporte Financeiro: O presente trabalho não foi suportado por nenhum subsidio o bolsa ou bolsa.

Proveniência e revisão por pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financial Support: This work has not received any contribution grant or scholarship.

Provenance and peer review. Not commissioned; externally peer reviewed

Publicado / Published: 20, de Setembro de 2019

 

Recebido: 08/10/2018

Aceite: 18/12/2019

 

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