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Medicina Interna
versão impressa ISSN 0872-671X
Medicina Interna vol.26 no.4 Lisboa dez. 2019
https://doi.org/10.24950/rspmi/CC/2/19/4/2019
CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS
Seguindo o Alfabeto... Para Diagnóstico de Hepatite Aguda E:
Following the Alphabet... For the Diagnosis of an Acute Hepatitis E: Case Report
Cláudia Janeiro
https://orcid.org/0000-0002-1797-5731
Guilherme Simões
https://orcid.org/0000-0002-8149-4860
Rita Santos
https://orcid.org/0000-0002-5988-4766
João Teixeira
https://orcid.org/0000-0002-4763-5906
Luis Vale
https://orcid.org/0000-0003-3577-5730
Serviço de Medicina 2.1, Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, Hospital de Santo António dos Capuchos, Lisboa, Portugal
Resumo:
Classicamente a hepatite viral está associada ao vírus da hepatite A, B ou C, podendo ser também causada por outros vírus. Apesar de não ser endémica em Portugal, reporta-se o caso esporádico de uma doente com hepatite aguda, cujo diagnóstico se confirmou hepatite E. Os autores chamam a atenção para uma causa rara de hepatite, devendo ser um diagnóstico a considerar após exclusão de causas mais frequentes.
Palavras-Chave: Hepatitis E; Vírus da Hepatitis E.
Classically viral hepatitis is associated with the virus of A, B and C hepatitis or it can be caused by other viruses. Even though it is not endemic in Portugal, authors report a sporadic case of a patient with the diagnosis of acute hepatitis which came to be revealed as an acute hepatitis E. With this report authors want to show a rare cause of acute hepatitis, whose diagnosis should be considered after the exclusion of the more frequent causes.
Keywords: Hepatitis E; Hepatitis E virus.
Introdução
A hepatite caracteriza-se pela inflamação do fígado com envolvimento dos hepatócitos, podendo ser causada por infecções, nomeadamente vírus (hepatotrópicos ou viroses sistémicas), bactérias, fungos e parasitas. As causas não infecciosas incluem toxinas, álcool, doenças autoimunes, doenças do metabolismo, síndrome de HELLP, neoplasias primárias e secundárias e causas vasculares. O vírus da hepatite E (VHE) é umas das etiologias mais esquecidas no diagnóstico diferencial de hepatite aguda, causando habitualmente infecção aguda e autolimitada, podendo levar a falência hepática numa pequena proporção de doentes. O conhecimento sobre o VHE tem mudado na última década: inicialmente pensava-se que estaria limitado apenas a países em desenvolvimento, actualmente sabe-se que o VHE é endémico em muitos países desenvolvidos, sendo maioritariamente uma infeção zoonótica.1 Casos de infeção autóctone, particularmente com genótipo 3, têm sido reportados.
Caso Clínico
Doente do sexo feminino, 40 anos de idade, com história conhecida de doença de Graves, em remissão desde 2008, não medicada e gastrite atrófica autoimune medicada com cianocobalamina intramuscular trimestralmente. Observada por quadro com uma semana de evolução caracterizado por fadiga, mal-estar generalizado e sensação de enfartamento precoce, ao qual se associou coloração amarelada das escleróticas, colúria, acolia e prurido ligeiro em toda a superfície corporal. Sem náuseas, vómitos ou dor abdominal e sem febre. Cerca de duas semanas prévias à observação consumiu carne de javali, obtido através de caça tradicional. Negava história de viagens recentes, negava consumo de água não potável, álcool, drogas, medicamentos ou outras substâncias, nomeadamente chás. Nas análises apresentava ligeiro prolongamento do tempo de protrombina (TP), 69%, INR espontâneo de 1,29, bilirrubina total de 5,3 mg/dL, com fracção direta de 3,98 mg/dL, aspartato aminotransferase (AST) 3138U/L, alanina aminotransferase (ALT) 4893U/L, gama-glutamiltransferase (GGT) 89U/L, fosfatase alcalina 158U/L, amilase pancreática 60U/L, sem aumento dos parâmetros inflamatórios. Efectuou ecografia abdominal que se encontrava sem alterações e tomografia computorizada abdominal com contraste revelando fígado, sistema biliopancreático, baço, supra-renais e rins sem alterações morfostruturais significativas, sem ascite ou adenopatias periaórticas, ausência de espessamentos parietais de ansas ou densificação peritoneal e estruturas vasculares permeáveis.
O estudo etiológico realizado incluiu estudo imunológico (Tabela 1), estudo metabólico (Tabela 2), estudo dos vírus da hepatite (Tabela 3) e dos agentes infecciosos com tropismo hepático (Tabela 4). Constatou-se positividade para o vírus da Hepatite E pelo método de PCR (teste para detecção viral do Clinical Microbiology and Public Health Laboratory, Health Protection Agency, Addenbrookes Hospital, Cambridge) e posteriormente foi realizada genotipagem compatível com o genótipo 3. A doente apresentou evolução clínica e analítica favoráveis (Tabela 5), com resolução das queixas, embora com valores de bilirrubina total que atingiram 16,5 mg/dL ao 10º dia de internamento com icterícia franca de atingimento de todo o tegumento cutâneo e mucosas.
Discussão
O vírus da hepatite E é um vírus RNA que pertence a família hepeviridae, responsável por infectar mamíferos, aves e peixes. As estirpes do vírus E que infectam seres humanos pertencem ao géneroOrthohepevirus que está dividido em quatro espécies (A-D).1 Os casos de hepatite E em humanos são causados por estirpes da espécie A, que contempla oito genótipos.2,3
Os genótipos 1 e 2 afectam apenas humanos por via de transmissão fecal-oral, através de água contaminada em áreas com infra-estruturas sanitárias pobres, associado a surtos e epidemias distribuídos pela Ásia, norte de África e México, onde são endémicos.4,5
Os genótipos 3 e 4 existem de forma endémica em alguns animais nomeadamente em porcos e javalis selvagens e causam infecções zoonóticas em humanos pelo consumo de carnes contaminadas ou por contacto directo. Os genótipos 5 e 6 foram apenas observados em javalis e algumas estirpes também foram identificadas em camelos, especialmente os genótipos 7 e 8.1
O período de incubação do VHE é de 15 a 60 dias. Cerca de 3 semanas após infecção, o RNA do VHE é detectado nas fezes e no sangue, onde permanece até 3-6 semanas.1
Existem pelo menos dois milhões de infecções VHE na Europa todos os anos, sendo maioritariamente adquirida por via zoonótica.1 Em Portugal passou a ser doença de notificação obrigatória desde 2015 tendo sido reportados 1 caso em 2015 e 2 em 2016.6 O primeiro caso de transmissão autóctone em Portugal foi pulicado em 2012 referente a um doente de 65 anos do sexo masculino internado em 2010.7
O hospedeiro primário para o VHE é o porco, sendo esta uma importante fonte de transmissão, através do consumo de carne infectada crua ou mal cozinhada.8 Outra via de transmissão possível é a contaminação de água, uma vez que uma grande proporção do VHE é excretado nas fezes levando à contaminação de rios, lagos e lagoas, sendo consequentemente encontrado em marisco, frutos e saladas irrigados com água infectada.1 Em Portugal foi realizado em 2013 estudo das águas residuais em 15 estações de tratamento, para deteção do RNA do vírus, que foi positivo para o genótipo 3 nas águas de duas estações uma no norte e outra no centro do país, confirmando que se encontra em circulação no país podendo ter impacto na saúde pública.9
Na Europa, as infecções autóctones estão maioritariamente relacionadas com o genótipo 3. No entanto outros genótipos adquiridos localmente (genótipo 4) ou associado a viagens (genótipos 1,2 e 4) podem também ser esporadicamente detectados.10 O número de infecções por VHE em humanos na Europa ainda é incerto, dada a elevada variação de testes, vigilância e ausência de informação publicada na União europeia/área económica europeia, no entanto é evidente que a hepatite E é uma patologia subdiagnosticada nos países desenvolvidos e que a sua incidência tem vindo a aumentar na última década.11
Na maioria dos doentes a hepatite E causada pelo genótipo 3 é clinicamente silenciosa, sendo que apenas 5% dos doentes desenvolvem sintomas de hepatite aguda com elevação dos parâmetros hepáticos, icterícia e sintomas não específicos como prurido, fadiga e náuseas.1
Nos doentes imunocompetentes a infecção resolve espontaneamente, sendo suficiente a monitorização dos parâmetros hepáticos na fase aguda e a progressão para a insuficiência hepática é rara.1,12
Nos doentes imunodeprimidos (ex.: pós transplante, VIH, doença reumatológica com imunossupressão agressiva, doença hematológica) a infecção pelo VHE pode persistir e desenvolver infeção crónica (replicação persistente por 6 meses). Esta progressão está documentada apenas nos genótipos 3 e 4, ocorrendo em menos de 50% dos casos com rápida progressão para fibrose, levando a cirrose e em alguns casos insuficiência hepática fulminante e morte.1
O envolvimento neurológico (ex.: Guillian Barré; meningoencefalite e parésia de Bell), renal (glomerulonefrite mebranoproliferativa e nefropatia IgA) e hematológico (trombocitopenia, anemia aplástica e anemia hemolítica) são algumas das manifestações extrahepáticas observadas na hepatite E, podendo ocorrer na fase aguda ou crónica.1
O diagnóstico laboratorial da infecção pode ser efectuado através de métodos directos, nomeadamente pela pesquisa de RNA viral, no entanto, a sua detecção no sangue e fezes só é possível durante quatro a seis semanas respectivamente, a maioria dos quais no período de incubação da infecção. Assim, muitos dos diagnósticos assentam na pesquisa de marcadores serológicos, mais concretamente das imunoglobulinas classe G (IgG) e classe M (IgM).13,14
O tratamento da hepatite E é geralmente apenas sintomático. A ribavirina pode ser considerada em casos de hepatite aguda grave com insuficiência hepática aguda ou crónica. A corticoterapia está associada a melhoria dos parâmetros de função hepática, contudo ainda não há evidência suficiente para iniciar esta terapêutica no tratamento de doentes com insuficiência hepática aguda.11
Este caso exemplifica a dificuldade diagnóstica de uma hepatite cuja apresentação sugeriu desde o início etiologia viral, mas cujos resultados iniciais para os vírus hepatrópicos mais frequentes foram negativos, obrigando a aumentar o leque diagnóstico com outras etiologias que habitualmente não se encontram descritas no nosso país. O facto de a doente não ter tido viagens ou contactos epidemiológicos tornou ainda mais difícil a marcha diagnóstica, no entanto, admitimos tratar-se de um caso autóctone de hepatite E, com genotipagem também concordante. Dado que a doente tinha história de consumo de carne de javali selvagem cerca de duas semanas previamente ao internamento, embora não descrito infecção no Javali previamente em Portugal,15 foi uma das hipóteses colocadas para a origem zoonótica da infecção.
Conclusão
A hepatite E deve ser considerada no diagnóstico diferencial das hepatites agudas sem causa evidente.
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Responsabilidades Éticas
Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.
Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.
Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.
Proteção de Pessoas e Animais: Os autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.
Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.
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Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.
Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship
Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.
Protection of Human and Animal Subjects: The authors declare that the procedures followed were in accordance with the regulations of the relevant clinical research ethics committee and with those of the Code of Ethics of the World Medical Association (Declaration of Helsinki).
Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.
© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.
© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.
Correspondence / Correspondência:
Luís Vale – luisfvale_238@hotmail.com
Serviço de Medicina 2.1, Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, Hospital de Santo António dos Capuchos, Lisboa, Portugal
Alameda de Santo António dos Capuchos
1169-050 Lisboa, Portugal
Received / Recebido: 19/02/2019
Accepted / Aceite: 04/07/2019
Publicado / Published: 11 de Dezembro de 2019