Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Medicina Interna
versão impressa ISSN 0872-671X
Medicina Interna vol.27 supl.1 Lisboa maio 2020
https://doi.org/10.24950/rspmi/COVID19/P.Martins/CHUC/S/2020
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES
Medicina Intensiva em Tempo de Pandemia: Organização e Governação dos Serviços
Intensive Medicine in Pandemic Time: Organization and Governance of Services
Paulo Martins
Diretor do Serviço de Medicina Intensiva, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal
Palavras-chave: Coronavirus; Pandemia; Unidades de Cui-dados Intensivos; infecção por Coronavírus.
Keywords: Coronavírus; Pandemics; Intensive Care Units; Coronavirus Infection.
Introdução
Ninguém imaginaria há poucos meses que se abateria sobre nós uma pandemia com estas dimensões capaz de afectar transversalmente as sociedades de diversos países, obrigando a mudar completamente a nossa forma de viver e de olhar a vida.
Mais de 2,6 milhões de infectados em todo o mundo com uma taxa de mortalidade de 7%, muito superior à de outras epidemias virusais que nos tem assolado nos últimos anos. Portugal tem cerca de 22 mil infectados com uma taxa de mortalidade de 3,57%, bem inferior à taxa de mortalidade de Espanha (11,7%) e de Itália (13,4%).1,2
Em Portugal só 14% do total de doentes COVID positivos estão internados nos Hospitais e destes, o número de doen-tes internados em Serviços de Medicina Intensiva (SMI) oscilou, nestes últimos 50 dias entre os 6% e os 34%.3
Os SMI mundiais não estavam dimensionados para de súbito dar resposta a centenas ou milhares de solicitações. Nesta pandemia por COVID-19, em algumas áreas do globo, a escassez de recursos em medicina intensiva condicionou stress e levou à morte de doentes. Nestes últimos anos, em Portugal, tal como noutros países europeus, houve uma redução significativa de recursos hospitalares humanos e técnicos, mercê de uma política de não investimento público em saúde. Portugal está na cauda da tabela em número de camas de medicina intensiva por 100 000 habitantes4 e, a região centro é aquela em que se regista uma maior discrepância entre a capacidade instalada de meios e pessoas face às necessidades.5 Por isso os SMI trabalhavam já muito próximo da plena capacidade com meios humanos envelhecidos e no limite das necessidades diárias.
Plano de Contingência para doentes COVID-19 - a organização
Tendo em conta o crescimento mundial da infecção, no início de Março, semanas antes do aparecimento do primeiro caso em Portugal, o CHUC começou a preparar o seu plano de contingência para o Hospital, definindo espaços físicos a alocar ao COVID, criando circuitos e estabelecendo as necessidades em meios humanos, técnicos e de equipamento para fazer face a uma eventual pandemia.
Sabíamos dos relatos publicados que 5% a 30% dos doentes infectados necessitavam de internamento em Medicina Intensiva,5 obrigando à restruturação destes espaços. A arquitectura do Hospital repartida por vários pólos distintos permitiu definir como espaço COVID-19 dedicado ao trata-mento dos doentes críticos o SMI (10 camas) existente no pólo do Hospital Geral (HG), mantendo-se a actividade normal sem doentes COVID-19 nas duas unidades de medicina intensiva do pólo HUC (20 camas).
Naturalmente que o espaço físico do SMI HG era exíguo para as necessidades previstas pelo que, com o encerramento da actividade cirúrgica programada e de ambulatório, preparámos as áreas adjacentes ao SMI, constituídas pelo recobro do bloco (9 camas) e da Unidade Cirúrgica de Ambulatório (9 camas), alocámos a estes um outro espaço com potencial para 6 camas existente na Unidade de Cuidados Intensivos Coronários (UCIC), pois passámos a centrar todos os doentes do foro cardíaco no pólo HUC do CHUC. Todos estes espaços foram equipados com camas, ventiladores, monitores com capacidade para pressão invasiva, seringas, bombas perfusoras e outro material específico para doentes ventilados em medicina intensiva.
Definimos circuitos de sujos e de limpos, preparámos salas para vestir e despir equipamento de proteção, reajustámos circuitos de renovação de ar colocando filtros EPA e renovámos a distribuição de consumíveis e de fármacos.
A capacidade assim instalada era de 34 camas prepara-das para receber doentes críticos COVID-19.
À medida que os dias iam passando, olhando para a realidade de países próximos, projectámos alargar esta capacidade, para o dobro da lotação programada, identificando e preparando outros espaços, agora já no pólo HUC do CHUC.
Paralelamente a esta logística de espaços e de materiais, tivemos que pensar nos recursos humanos. Mercê da política restritiva de contratações com que nos confrontámos nestes últimos anos, o número de intensivistas era exíguo para as exigências, obrigando por isso à inclusão de outros especialistas de molde a garantir o funcionamento destes diversos espaços. Os internos de formação específica de Medicina Intensiva constituíram aqui uma ajuda preciosa.
Desde logo foram identificados anestesistas, pneumolo-gistas e internistas que nos poderiam ajudar nestas tarefas, sob orientação de intensivistas. O número de médicos escalados para esta equipa COVID-19 passava a ser proporcional ao número de doentes internados em cada instante, em média um especialista por cada cinco doentes.
Da mesma forma, tivemos que criar precocemente equipas de enfermeiros que conjugavam profissionais de medicina intensiva, com outros do bloco operatório ou do recobro cirúrgico. Procurámos dentro do quadro de enfermeiros do CHUC, aqueles que já tinham trabalhado em medicina intensiva e que agora trabalhavam noutros serviços, dando-lhes preferência para integrar estas equipas mistas.
Naturalmente que toda esta estrutura dedicada à estabilização e tratamento de doentes críticos se ligava com o restante hospital que tinha circuitos definidos de observação e triagem de doentes na urgência e tinha espaços físicos próprios para doentes a aguardar resultado (sempre moroso) do teste COVID-19 e outros para doentes COVID-19 positivo com necessidade de internamento hospitalar. Numa fase inicial estes doentes estavam repartidos pelos dois pólos hospitalares, posteriormente passaram a ser concentrados preferencialmente no pólo HG, que se assumiu como Hospital COVID-19. Os doentes eram-nos sinalizados pelos médicos que trabalhavam nas diversas áreas do CHUC (urgência, serviço de infeciologia ou qualquer outra área do hospital), eram observados pelos intensivistas, se reuniam critérios de internamento eram entubados, ventilados, estabilizados e transportados para o SMI COVID-19 do pólo HG. Este transporte, para os doentes do pólo HUC, era assegurado pelo INEM e acompanhado por enfermeiro e médico da medicina intensiva.
Os doentes que tinham alta do SMI eram transferidos para uma enfermaria do pólo HG, a cargo de internistas, onde continuavam a sua recuperação. Esta era uma enfermaria dotada de pressão negativa, pois muitos dos doentes com alta do SMI eram ainda COVID-19 positivos, já que a média de negativação do teste PCR para o COVID-19 nos doentes do CHUC era de 26 dias.
Plano de Contingência para doentes COVID - a formação
A formação tem nesta pandemia um papel crucial. Centrada não só no conhecimento dos diversos circuitos do plano estratégico mas, sobretudo numa altura em que não existe tratamento adequado, nem vacina, os cuidados a ter com o contacto com estes doentes são fundamentais, pois só desta forma impedimos a infecção do pessoal de saúde, peças cruciais num cenário de escassos recursos humanos.
O grupo GCL PPCIRA do CHUC assegurou as primeiras formações. De imediato os médicos e enfermeiros de medicina intensiva mobilizaram-se para melhorar o algoritmo e promover a busca de material necessário à proteção individual. Fizeram acções de formação no serviço, criaram kits individuais para as solicitações de observação de doentes no exterior, melhoraram técnicas de entubação, enfim garantiram um conjunto de medidas de proteção que reduziram a ansiedade e aumentaram a segurança do pessoal envolvido nestas tarefas.
Os doentes
Entre nós, a região centro do país tem cerca de 14% dos doentes com diagnóstico confirmado COVID-19, número inferior à região de Lisboa e Vale do Tejo (23%) e sobretudo à região norte (60%).
A generalidade dos SMI nacionais conseguiu ter espaço físico e meios para tratar os doentes graves em falência multiorgânica sem as circunstâncias dramáticas de outros países mais próximos. Tal aconteceu mercê de uma criação de planos de contingência hospitalar, aliados às medidas de evicção de contacto social promovidas pelo governo. Isto fez com que a afluência de doentes aos hospitais não fosse maciça, permitindo uma melhor gestão das escassas vagas de Medicina Intensiva. Das 525 camas de medicina intensiva nacionais só 54% estava ocupada por doentes COVID-19.
No CHUC tratámos até ao momento 20 doentes críticos COVID-19, com uma média de internamento de 11 dias o que nos permitiu gerir o espaço inicial de 10 camas sem ne-cessidade de activação do plano de contingência.
Todos os doentes foram internados com síndrome de dificuldade respiratória aguda (ARDS) graves e necessidade de suporte ventilatório. Cerca 80% necessitaram de prone e 15% dos doentes foram suportados em oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO).
O comportamento clínico destes doentes não é o habitual pois em regra entre o quinto e o oitavo dia agravam por um síndrome hemofagocitico com componente inflamatório marcado e agravamento do número de órgãos em falência (renal, hepática e hematológica).
Os profissionais do SMI, na sua globalidade (médicos, enfermeiros e auxiliares) afrontaram com dedicação esta missão, entregando-se com imenso profissionalismo aos cuidados dos doentes, muitas vezes em situações adversas quer físicas quer psicologicamente. Como sempre acontece em circunstâncias de escassez de recursos fizeram jus à generosidade e ao génio inventivo arranjando soluções para os diversos problemas que foram surgindo, sem regatearem esforços para que tudo corresse pelo melhor.
O futuro
A infecção COVID 19 tem um potencial pandémico muito superior ao de outras epidemias virusais, por isso ninguém sabe quando conseguiremos controlar esta infeção, o mais provável é convivermos com ela até à próxima epidemia virusal de outono inverno e vai ser assim até ao aparecimento de uma vacina eficaz.
Contudo, este período permitiu reforçar a necessidade de investimento nacional em medicina intensiva com aumento de camas de nível III e II numa dinâmica de step up/step down entre unidades, bem como da importância de dotar os SMI em meios humanos e técnicos. Tais necessidades já haviam sido identificadas no documento da rede de referenciação para medicina intensiva publicado em 2016 pela ACSS.6
É importante reformular a realidade dos hospitais, deixando de compartimentar os espaços físicos onde os doentes são tratados por especialidade, desenhando outros geridos por internistas (níveis II/I) e intensivistas (níveis II/III), onde os doentes serão observados numa perspetiva global e em fun-ção da sua gravidade.
Os Hospitais deverão ter Unidades com dimensão adequada para que possam ver a sua capacidade expandida em situação de emergência. Dotadas de pressão negativa ou positiva, com espaços individualizáveis, para que a resposta ao tratamento dos doentes seja a correcta e esteja assegurada a proteção de saúde dos profissionais, evitando a necessidade de improviso em situações extremas.
Há sempre algo que se aprende na adversidade, espero por isso que na sequência da reflexão a que este período de pandemia nos vai obrigar, saibamos tirar partido das lições que aprendemos.
REFERÊNCIAS
1.Worldometer. COVID-19 coronavirus pandemic [consultado abril 2020] Disponível em: https://www.worldometers.info/coronavirus/ [ Links ]
2.Centre for Evidence-Based Medicine. Oxford COVID-19 Evidence Service [consultado abril 2020] Disponível em: https://www.cebm.net/covid-19/global-covid-19-case-fatality-rates/ [ Links ]
3.Direção Geral da Saúde. COVID-19 Relatório de Situação. [consultado abril 2020] Disponível em: https://covid19.min-saude.pt/relatorio-de-situacao/ [ Links ]
4.Rhodes A, Ferdinande P, Flaatten H, Guidet B, Metnitz PG, Moreno RP. The variability of critical care bed numbers in Europe. Intensive Care Med. 2012;38:1647-53. [ Links ]
5.SEMICYUC. Plan de contingencia para los servicios de medicina intensiva frente a la pandemia COVID-19 [consultado abril 2020] Disponível em: https://www.semicyuc.org/covid19_files/Plan_de_Contingencia_COVID-19.pdf [ Links ]
6.Paiva JA, Fernandes A, Granja C, Esteves C, Ribeiro J, Nóbrega JJ, et al. Rede de Referenciação de Medicina Intensiva. [consultado abril 2020] Disponível em: https://www.sns.gov.pt/wp-content/uploads/2016/11/RRH-Medicina-Intensiva.pdf. [ Links ]
Responsabilidades Éticas
Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.
Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.
Proveniência e Revisão por Pares: Comissionado; sem revisão externa por pares.
Ethical Disclosures
Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.
Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the pro-tocols of their work center on the publication of data from patients. Provenance and Peer Review: Commissioned; without externally peer re-viewed.
© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.
© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.
Correspondence/Correspondência: Paulo Martins - paulocoimb@gmail.com
Diretor do Serviço de Medicina Intensiva do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal
Praceta Prof. Mota Pinto, 3000-075 - Coimbra, Portugal
Received/Recebido: 24/04/2020
Accepted/Aceite: 26/04/2020
Publicado / Published: 4 de Maio de 2020