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Medicina Interna
versão impressa ISSN 0872-671X
Medicina Interna vol.27 supl.1 Lisboa maio 2020
https://doi.org/10.24950/rspmi/COVID19/M.JoaoV.Rosa/UNL/S/2020
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES
Envelhecimento Demográfico em Fase de COVID-19
Demographic Ageing in COVID-19 Phase
Maria João Valente Rosa https://orcid.org/0000-0002-5665-0358
Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal
Palavras-chave: Coronavírus; Envelhecimento; Infecção por Coronavírus; Longevidade; Mortalidade.
Keywords: Aging; Coronavirus; Coronavirus Infection; Longevity; Mortality.
Introdução
A COVID-19 entrou, de forma ampla, no quotidiano da nossa vida em sociedade, apesar de se tratar de uma doença muito recente: no mundo, o primeiro caso foi reportado no final de Dezembro de 2019, em Wuhan (República Popular da China). Em Portugal, os primeiros casos identificados surgiram no início de Março de 2020 e o primeiro óbito aconteceu a 16 de Março.
Diariamente, são actualizados os dados sobre o número de mortes e de pessoas infectadas nos vários países. E, se bem que a doença tenha adquirido uma dimensão verdadeiramente planetária - aliás a COVID-19 foi declarada pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a 11 de março de 2020 -, existem regiões, populações e grupos que parecem estar mais sujeitos ao risco de a contrair do que outros.
De momento, o que sabemos sobre as características sociodemográficas das populações mais expostas a este vírus é ainda muito insuficiente. Os dados são escassos e, por vezes, pouco consistentes. Como tal, as análises e possíveis ilações devem, nesta fase, ser muito cautelosas. Há, porém, uma ideia que parece ganhar destaque no quadro desta evolução: o envelhecimento demográfico enquanto aliado da COVID-19. Mais do que encontrar respostas definitivas sobre o assunto, esta reflexão pretende colocar em perspectiva essa ideia, tendo por base os dados disponibilizados publicamente pela Direcção Geral da Saúde (DGS) e pela OMS até à data de 26 de Abril de 2020.
a. O envelhecimento e a vida das populações
O envelhecimento demográfico define se como uma evolução particular do perfil etário da população, que corresponde ao aumento da importância estatística das pessoas com idades superiores (envelhecimento no «topo» da pirâmide etária) ou à diminuição da importância estatística das pessoas nas idades mais jovens (envelhecimento na «base» dessa pirâmide).1
Entre as múltiplas ideias associadas a este processo demográfico, destacaremos quatro directamente relacionadas com a saúde das populações.
1.Envelhecimento demográfico e desenvolvimento
O envelhecimento demográfico mergulha as suas raízes em importantes conquistas da sociedade, que se saldaram por baixos níveis de natalidade/fecundidade e de mortalidade.
Este processo reflecte o desenvolvimento das sociedades, o qual se traduz, no caso da mortalidade, na vitória da vida sobre muitas doenças que provocavam a morte prematura nas populações. Por isso, já o dissemos,1 uma população não envelhece porque os seus membros estão doentes, mas por conseguir vencer muitas doenças, como algumas epidemias ou doenças infecciosas.
Embora o envelhecimento demográfico já tenha adquirido uma dimensão mundial, são os territórios mais desenvolvidos que revelam esperanças de vida mais elevadas e que apresentam maiores níveis de envelhecimento populacional. Neste quadro a Europa destaca-se por ser a região mais envelhecida do mundo.
Do ponto de vista demográfico, o envelhecimento não está associado, portanto, a populações mais frágeis do ponto de vista sanitário. Bem pelo contrário.
2. Envelhecimento demográfico e longevidade da população
Ainda não sabemos qual é o limite biológico máximo da vida humana, embora ele exista. A pessoa mais longeva de que há registo é Jeanne Calment, uma francesa que morreu aos 122 anos, em 1997.
Os avanços da ciência e as melhorias das condições de vida e de saúde das populações conseguiram o feito, não de evitar a morte, mas de a adiar para idades mais tardias da vida, pelo que a longevidade da população (e não a humana) está a aumentar. Ou seja, são cada vez mais as pessoas que chegam às idades avançadas e aí vivem, em média, mais tempo, situação que se traduz por uma «rectangularização» das curvas etárias de sobrevivência.2 Como tal, a morte chega sempre, mas cada vez mais tarde em média, na vida das pessoas.
Em Portugal, enquanto em 1960 só 57 em cada cem nascidos podiam esperar chegar aos 70 anos, em 2017 esse valor subiu para 84. Actualmente já existem mais de 1,6 milhões de pessoas com 70 ou mais anos, o que equivale a 16 por cento dos residentes (2018) em 1960, este grupo etário contava com pouco mais de 440 mil pessoas e representava apenas cinco por cento da população (Instituto Nacional de Estatística).
3.Envelhecimento demográfico e novos padrões de mortalidade
Havendo um limite para a vida humana, com a diminuição dos níveis globais de mortalidade e consequente reforço da parcela populacional em idades superiores, é compreensível o aumento de óbitos nas idades avançadas. Em Portugal, por exemplo, a esmagadora maioria dos óbitos ocorridos em 2018 (cerca de 80%) tinha 70 ou mais anos.
Por outro lado, embora a prevalência das doenças crónicas ou degenerativas não se inicie aos 70 anos, acentua-se com a idade e grande parte das pessoas acaba por morrer devido a essas causas. Assim se entende, por exemplo, que a maioria (87%, em 2018) das mortes por doenças do aparelho circulatório (principal causa de morte, em Portugal) ocorram em pessoas com 70 ou mais anos, e que, no caso das doenças do aparelho respiratório (a terceira causa de morte, em Portugal), 91% dos óbitos devidos a esta causa, em 2018, fossem de pessoas com 70 ou mais anos.3
A melhoria das condições de vida e os avanços do conhecimento científico anularam muitas mortes prematuras nos primeiros anos de vida ou mortes evitáveis, que eram frequentes acontecer no passado em sequência de, por exemplo, uma simples infecção. Assim com um tempo médio de vida mais dilatado, intensificam-se as mortes nas idades superiores e por causas relativas a doenças crónicas ou degenerativas.
4.Envelhecimento demográfico e envelhecimento individual
O envelhecimento demográfico não é inevitável, embora se afigure como uma tendência praticamente inelutável das populações, pelo menos a médio prazo, em virtude dos baixos níveis de fecundidade e de mortalidade. Todos os cenários - mais ou menos optimistas - concordam que, na ausência de catástrofes imprevisíveis, a população no futuro será ainda mais envelhecida do que a actual.
Quanto ao envelhecimento individual, ele é inescapável. Inicia-se muito antes dos 65 anos, manifesta-se de forma contínua (não se adormece jovem e se acorda velho) e tem traduções diversas consoante as pessoas.
O avanço na idade cronológica (determinada pelo ano de nascimento) traduz-se, genericamente, por um declínio inevitável de algumas funções físicas e cognitivas e certas patologias adquirem especial importância, como as doenças crónicas ou degenerativas. A probabilidade de a pessoa, com o avançar da idade, ter várias doenças em simultâneo (multimorbilidade) é real. Contudo há uma grande variabilidade das manifestações deste processo consoante os indivíduos.
A maior ou menor vulnerabilidade perante o risco de contrair uma doença difere entre pessoas, pois a idade cronológica não tem o exclusivo de influenciar o estado de saúde de alguém. A idade biológica, a qual depende, por exemplo, das condições das células, dos tecidos e dos órgãos é, a esse propósito, também muito importante. Só assim se compreende que, a uma mesma idade cronológica entre duas pessoas, possam equivaler diferentes níveis de vulnerabilidade face a riscos, provocados por agentes exógenos (como a COVID-19), que ameaçam a saúde e que podem levar à morte.
Por outro lado, o tempo e tipo, de sociedade em que se vive também pode fazer toda a diferença no processo de envelhecimento individual e nas suas manifestações associadas. Por exemplo, não é indiferente uma pessoa ter a idade de 65 anos no século XIX ou no século XXI, quer em termos de saúde e de expectativas de vida, quer em termos de capacidades funcionais ou outras.
b. O envelhecimento e a COVID-19
Até ao dia 26 de Abril de 2020, cerca de 88% dos óbitos (em Portugal) associados à COVID-19 foram de pessoas com 70 ou mais anos (DGS). Um comportamento que não parece ser muito diferente do padrão da mortalidade em geral e, mais especificamente, do padrão de mortalidade de certas doenças muito ligadas ao risco mortal deste vírus.
Sabemos que a COVID-19 é particularmente agressiva para as pessoas com problemas de saúde, nomeadamente com doenças respiratórias e que essas vulnerabilidades se acentuam com a idade. Como tal, justifica-se saber se o envelhecimento demográfico é um bom preditor da dimensão e do impacto deste vírus, na população.
Os dados publicados pela Organização Mundial de Saúde revelam uma extrema concentração territorial da COVID-19. Até 26 de Abril de 2020, a OMS contabilizava, sobre a COVID-19, 2 810 325 casos confirmados e 193 837 mortes. Entre os 6 países do mundo com mais casos confirmados (EUA, Espanha, Itália, Alemanha, Reino Unido e França) e mais mortes (EUA, Itália, França, Espanha, Reino Unido e Bélgica),4 cinco são europeus, países com elevadíssimas esperanças de vida e com altas percentagens de pessoas com 65 ou mais anos, no quadro global mundial. Estes países europeus contribuíram, para o total dos valores registados no mundo, em 30% dos casos confirmados e em 51% das mortes.4 Contudo, os cinco países europeus que revelam maior número de casos confirmados por COVID-19 representam, 4% da população mundial e 9% da população do mundo com 65 ou mais anos; e os cinco países europeus no top da lista das mortes associadas à COVID-19 correspondem, no mundo, a 3% da população e a 7% da população com 65 ou mais anos.
Várias podem ser as razões da maior incidência da COVID-19 em países europeus, designadamente o facto de nem todos os países do mundo estarem a fazer reportes estatísticos criteriosos das incidências.
Para minimizar os efeitos da diferente qualidade de reportes estatísticos, optou-se por circunscrever esta análise apenas aos 28 países que, até 2020, integravam a União Europeia (incluindo o Reino Unido, portanto). Contudo, mesmo neste grupo europeu de países, existem diferenças de contagens que não devem ser ignoradas, nomeadamente: países que registam óbitos “por” COVID-19, outros que registam óbitos “por” e “com” COVID-19; uns que só contabilizam essas mortes caso tenham sido feitos previamente exames de diagnóstico; outros que só contabilizam as mortes caso tenham ocorrido num hospital, etc.
Toda a cautela é, por isso, essencial na análise comparada dos dados e nas ilações que se extraem da mesma. Por isso justifica-se, também, questionar a relação estreita, frequentemente sugerida, entre o envelhecimento demográfico e a incidência da COVID-19, baseada na informação pública conhecida até ao momento.
Neste sentido, apreciou-se, no quadro desses 28 países da União Europeia a relação entre as taxas de casos confirmados ou de mortes4 (por 100 000 residentes5) de COVID-19 e os níveis de envelhecimento, tendo por base o indicador “percentagem de pessoas com 65 ou mais anos”5 (2018).
Embora exista uma relação estatística forte (r= +0,721) entre as taxas de morte e as de casos confirmados (por 100 000 habitantes) - o que quer dizer, naturalmente, que os países com maiores taxas de casos confirmados também apresentam maiores taxas de mortalidade -, fica falsificado o facto de as populações mais envelhecidas apresentarem maior risco de morte de COVID-19.
Por um lado, não são os países mais envelhecidos no «topo» (ou seja, com maiores percentagens de pessoas com 65 ou + anos) que revelam maiores taxas de mortalidade de COVID-19. O coeficiente de correlação encontrado é praticamente nulo: +0,014. Por outro lado, e relativamente aos casos confirmados, a relação com os níveis de envelhecimento, embora baixa mas um pouco mais elevada que a anterior, é até negativa (o coeficiente de correlação é de -0,322), revelando que são os países menos envelhecidos no «topo» que tendem a registar taxas superiores de infecção declarada.
O gráfico apresentado (Fig. 1), com os países ordenados da menor para a maior percentagem de pessoas com 65 ou mais anos, ilustra bem essa ideia de, para este grupo europeu de países, as taxas de incidência (morte ou casos confirmados) de COVID-19 não acompanharem a ordem dos níveis de envelhecimento demográfico.
É prematuro avançar com explicações definitivas para a ausência de correlações estatísticas entre as situações de COVID-19 e os níveis de envelhecimento demográfico. Porém, é seguro avançar que, até ao momento, os níveis de envelhecimento demográfico (no «topo») não são um bom preditor da dimensão do impacto do vírus no caso das populações europeias analisadas.
Considerações finais
Os mais velhos são o principal alvo e a principal vítima desta pandemia, sempre que a idade cronológica estiver associada a vulnerabilidades particulares do estado de saúde, risco que se agrava fortemente com a vivência dessas pessoas em espaços fechados e em convivência com pessoas infectadas, como acontece com os lares para pessoas idosas. Porém, é precipitado extrapolar este princípio para a população em geral e afirmar que o envelhecimento demográfico, só por si, potencia esta pandemia. Do pouquíssimo que ainda sabemos sobre o assunto, e com os factos conhecidos até ao momento, uma conclusão impõe-se: o envelhecimento demográfico não tem dimensão suficiente para compreender o comportamento da COVID-19.
Outras dimensões, que não demográficas, como por ex-emplo a diversidade de reacções (tempo decorrido, medi-das aplicadas e sua abrangência) dos vários países ao surto pandémico, as políticas públicas de protecção de risco às pessoas mais vulneráveis, os hábitos e as formas de vida familiares e em comunidade, os factores ambientais, podem ter um papel bem mais decisivo sobre o comportamento diferencial, entre países, da COVID-19. Hipóteses que mere-cem ser devidamente exploradas no futuro.
REFERÊNCIAS
1.Rosa MV. Um tempo sem Idades: ensaio sobre o envelhecimento da popu-lação. Lisboa: Tinta da China : 2000. [ Links ]
2.Briggs R. Biological ageing. In: Bond J, Coleman P, Peace S, editors. Ageing in Society: An introduction to social gerontology. 2nd ed. London: Sage Publications Ltd; 1998. p. 53 67. [ Links ]
3.Instituto Nacional de Estatística. Estatísticas da Saúde, 2018. Lisboa: INE; 2020. [ Links ]
4.WHO COVID-19 Dashboard. [consultado 26/04/2020] Disponível em: https://covid19.who.int [ Links ]
5.População residente (2018). Pordata. [consultado 20/04/2020] Disponível em: https://www.pordata.pt/DB/Europa/Ambiente+de+Consulta/Tabela/5810986 [ Links ]
Responsabilidades Éticas
Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.
Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.
Proveniência e Revisão por Pares: Comissionado; sem revisão externa por pares.
Ethical Disclosures
Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.
Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the pro-tocols of their work center on the publication of data from patients. Provenance and Peer Review: Commissioned; without externally peer reviewed.
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© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.
Correspondence/Correspondência:
Maria João Valente Rosa - mj.rosa@fcsh.unl.pt.
Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Investigadora do Instituto Português de Relações Internacional Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal
Avenida de Berna, 26-C / 1069-061, Lisboa
Received/Recebido: 26/04/2020
Accepted/Aceite: 27/04/2020
Publicado / Published: 4 de Maio de 2020