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Medicina Interna
versão impressa ISSN 0872-671X
Medicina Interna vol.27 supl.1 Lisboa maio 2020
https://doi.org/10.24950/rspmi/COVID19/B.Nunes/C.M.Dias/S/2020
ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES
Incerteza em Tempo de Pandemia por SARS-CoV-2: O Papel da Investigação Epidemiológica
Pandemic-Time Uncertainty by SARS-CoV-2: The Role of Epidemiological Research
Baltazar Nunes1,2 https://orcid.org/0000-0001-6230-7209
Carlos Matias Dias1,2 https://orcid.org/0000-0002-0206-5874
1Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, Lisboa; Portugal
2Centro de Investigação em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal
Palavras-chave: COVID-19; Infecções por Coronavírus; Pandemia; Projectos de Investigação Epidemiológica; Métodos Epidemiológicos
Keywords: Coronavirus Infections; COVID-19; Epidemiologic Methods; Epidemiologic Research Design; Pandemics
Confrontada com uma nova doença causada por um agente viral, desconhecido até dezembro de 2019, a resposta da comunidade médica e de outros profissionais que trabalham na área da saúde foi dada, simultaneamente, em duas vertentes de acção: a abordagem clínica, em que o alvo principal de atenção é o individuo, e a abordagem de saúde pública, em que esse foco é a população ou seus sub-grupos.1,2
A constatação de um surto de casos com um ponto de potencial infecção comum num mercado na cidade de Wuhan, na China e as características clínicas comuns foi crucial para identificar o surto e definir as características clínicas e laboratoriais da nova doença.1 Esta informação foi indispensável para a gestão clínica individual, mas, também, para a contagem de novos casos incidentes na comunidade permitindo identificar outros surtos de casos e investigar as suas cadeias de transmissão, sem o que o controlo da disseminação comunitária não teria sido possível.2
A rápida evolução da epidemia em Wuhan e na China, com o impacto nos serviços de saúde e o confinamento de várias cidades foi seguida de forma dramática a nível global. Até 20 de Janeiro a doença tinha já sido exportada para vários países asiáticos, e em 24 de Janeiro é registado o primeiro caso em França, em 28 de Janeiro na Alemanha, e em 22 de Fevereiro na região italiana da Lombardia.3
A região da União Europeia tem, no seu conjunto, uma taxa de incidência cumulativa superior a 200 casos por 100 habitantes.3 Em Portugal, o número de casos (275,4 casos por 100 000 habitantes) e de óbitos (11,5 óbitos por cada 100 000 habitantes) estão nesta data (15/05/2020) num nível intermédio entre os valores elevados de Espanha (491,3 casos por 100 000 habitantes e 58,5 óbitos por 100 000 habitantes), Bélgica (475,3 casos e 77,9 óbitos por 100 000 habitantes) ou Irlanda (490,9 casos e 31,0 óbitos e os mais baixos observados na Polónia (46,4 casos e 2,3 óbitos) ou Grécia (25,8 casos e 1,5 óbitos).4
A necessária avaliação desta fase identificará, possivelmente, a rapidez e qualidade da resposta das estruturas, serviços e unidades de Saúde Pública, das estruturas e serviços hospitalares e das unidades de saúde primários do Serviço Nacional de Saúde, como determinantes para a actual posição epidemiológica, associadas, certamente, a um cumprimento reconhecidamente exemplar do Plano de Resposta coordenado pela Direcção-Geral da Saúde.5 Mas ficará também como exemplar adoção pronta das medidas pela população portuguesa.
O controlo de surtos, epidemias e pandemias segue princípios conhecidos há décadas pelos especialistas em Saúde Pública e epidemiologia, constantemente actualizados a novas realidades e modernos instrumentos.6 A vigilância epidemiológica, área de aplicação particular da abordagem epidemiológica a problemas de Saúde Pública, convive, muitas vezes, com diagnósticos e intervenções baseadas em dados incompletos e com qualidade imperfeita. O rigor da investigação de um surto, ou pandemia, não é geralmente compaginável com a necessidade de respostas para a contenção rápida da incidência de casos. É neste contexto que os métodos de vigilância e a investigação epidemiológica durante surtos ou epidemias revelam vantagens benefícios mais relevantes.7
Quando são necessárias respostas rápidas com base em informação que se exige rigorosa, para que as intervenções possam ser atempadas, efetivas e implementadas de acordo com a realidade atual, é necessário ter consciência, mesmo numa época de rápida digitalização, informação e comunicação, que os dados disponíveis podem ser incompletos, por exemplo que os dados relativos que estamos a receber em determinado momento do tempo correspondem a quem foi infetado e, ou, adoeceu há dias ou mesmo semanas atrás.
Por outro lado, quem recolhe, valida e analisa os dados deve estar consciente que nos serviços curativos, hospitais e centros de saúde, a prioridade é o tratamento dos doentes e não o registo de dados, rigorosos e completos, por vezes em várias bases de dados em simultâneo, para além das necessidades da gestão clínica.7,8
Todos estes fatores conjugados devem levar obriga- toriamente quem tem a responsabilidade em produzir informação e conhecimento para a decisão a procurar soluções metodológicas que permitam extrair a melhor evidência científica dos dados para uma decisão que se pretende a mais informada e mais atempada possível. Esta é uma combinação difícil de atingir em simultâneo, colher dados de elevada qualidade e completos demora o seu tempo, fator que se exige o mais curto possível para que a análise dos dados e a informação produzida se apresente aos decisores em tempo útil.
É neste contexto que surge a necessidade de aperfeiçoar os dados com base no conhecimento que eles contêm para além da simples contagem dos casos. Por exemplo, para conhecer a transmissibilidade da infeção através dos seus números de reprodução (básico - R0 ou efetivo - Rt), o tempo de duplicação da infeção, o tempo de geração da infeção, é necessário conhecer a frequência de casos novos por data de início de sintomas, um dos passos críticos nesta investigação epidemiológica. Para todos estes parâmetros é essencial uma informação: a data do dia, ou o intervalo de dias, em que cada indivíduo desenvolveu os primeiros sintomas e, caso o indivíduo não apresente sintomas, a data do dia em que esteve em contacto com um caso provável ou confirmado da infeção.8,9
Pode ser uma surpresa para alguns, mas, durante a investigação epidemiológica de um surto, a data do início de sintomas pode estar omissa em quase metade dos casos registados. Este problema coloca-nos perante um dilema: ou optar por usar uma outra das datas disponíveis no registo, como a data do diagnóstico laboratorial, ou a data da notificação do caso, em substituição da data de início dos sintomas, ou recorrer a métodos estatísticos para estimar, para cada caso nesta circunstância, a data mais provável em que os sintomas terão tido início.10,11
Se a data de início dos sintomas é o momento do tempo mais próximo da data de infeção, a diferença entre estes dois momentos é o tempo de incubação da doença, ou seja um processo biológico, que pode depender das características de cada indivíduo, mas que pouco dependerá de fatores logísticos e organizacionais que são os principais determinantes do tempo que vai desde o início dos sintomas até ao diagnóstico ou até à notificação, e que muito provavelmente poderão depender também do momento da epidemia.
Actualmente, a comunidade científica das áreas da epidemiologia e estatística tem desenvolvido várias técnicas de imputação e de nowcasting que permitem estimar informação omissa e “prever” o presente, ou seja, estimar os casos de infeção ou doença já ocorridos, mas que no momento da análise ainda não foram diagnosticados ou notificados no sistema de informação, designadamente informático.11-14
No caso da COVID-19, o tempo entre a data do início dos sintomas e a data do diagnóstico tem sido reportado em vários países como sendo da ordem dos 5 dias, e o tempo médio até à notificação como indo até 8 dias, chegando a ser necessário passarem 15 dias para ter registados 95% dos casos ocorridos num determinado dia.15,16 Estes factos significam que as últimas duas semanas da curva epidémica estão incompletas, e que número de casos já ocorridos, mas ainda não conhecidos precisa de ser estimado para que a tomada de decisão seja realizada com base no passado mais recente, ou seja quase em tempo real.11-13
Em Portugal, tal como noutros países, como ao China, o Japão e a Alemanha,10,14,16 estes procedimentos analíticos (imputação e nowcasting) tem sido implementado para estimar a curva epidémica da COVID-19 corrigida e respetivos parâmetros de transmissibilidade desde o início da emergência, um desafio único e nunca antes experienciado pelas equipas de epidemiologistas durante tantos meses.
Conseguir descrever daqui a uns meses aquilo que sabíamos agora e como estes procedimentos analíticos contribuíram para nos aproximar de uma realidade que apenas é parcialmente conhecida no momento em que está a acontecer, irá sem dúvida melhorar a nossa capacidade de preparação, análise e resposta em tempo real. Mas o primeiro passo essencial para obter este conhecimento é estar consciente que, em tempo real, não conhecemos com detalhe nem o presente nem o passado recente durante uma epidemia.
Um “known unknown” impele-nos a procurar respostas e a estimar o desconhecido com base em padrões do passado, mas um “unknown unknown” ou seja desconhecer que desconhecemos, poderá levar-nos a tomar decisões com níveis de confiança que não existem.17 Durante uma epidemia a decisão tem obrigatoriamente de ser tomada com consciência da incerteza que está presente na informação e conhecimento, e que se deve procurar medir, mas a incerteza ou o desconhecimento nunca devem ser assumidos como inexistentes.
REFERÊNCIAS
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17. Nicoll A, Ammon A, Amato Gauci A, Ciancio B, Zucs P, Devaux I, Plata F, Mazick A, Mølbak K, Asikainen T, Kramarz P. Experience and lessons from surveillance and studies of the 2009 pandemic in Europe. Public Health. 2010;124:14-23. doi: 10.1016/j.puhe.2009.12.001. Erratum in: Public Health. 2010;124:300. [ Links ]
Responsabilidades Éticas
Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.
Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.
Proveniência e Revisão por Pares: Comissionado; sem revisão externa por pares.
Ethical disclosures
Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interestto declare.
Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.
Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.
Provenance and Peer Review: Commissioned; without externally peer re-viewed.
© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.
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Correspondence/Correspondência:
Baltazar Nunes - baltazar.nunes@insa.min-saude.pt
Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge
Av. Padre Cruz, 1600-560 Lisboa
Received/ Recebido: 18/05/2020
Accepted/ Aceite: 18/05/2020
Publicado / Published:19 deMaio de 2020