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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27 no.4 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.24950/Revisao/MJLobao/4/2020 

ARTIGOS DE REVISÃO / REVIEW ARTICLES

 

A Importância da Inteligência Emocional para a Prática Médica do Internista no Futuro

The Importance of Emotional Intelligence for the Internist´s Medical Practice in the Future

 

Maria João Lobão1,2,3, MD, MSc
https://orcid.org/0000-0002-3837-4476

1Serviço de Medicina Interna, Hospital de Cascais; Cascais, Portugal

2NOVA National School of Public Health, Public Health Research Centre, Universidade NOVA de Lisboa; Lisboa, Portugal

3Comprehensive Health Research Center (CHRC), Universidade NOVA de Lisboa, Lisboa, Portugal

 

Resumo:

No futuro próximo as inovações tecnológicas a par do envelhecimentoda população justificarão mudanças adaptativas dos sistemas de saúde e da forma como exercemos medicina, colocando muitos desafios à especialidade de Medicina Interna. Apesar da capacidade sem precedentes para prevenir, diagnosticar e tratara doença, o foco na pessoa doente no seu contexto circunstancial continuará a ser central nos cuidados prestados. A Inteligência Emocional, que pode ser desenvolvida ao longo da vida, tem sido alvo de investigação aplicada à medicina alongo das últimasdécadas, tendo vindo a demonstrar-se o seu impactoem áreas diversascomo a relação médico-doente, a satisfação profissional, a satisfação e segurança do doente, a formação médica e desenvolvimento de lideranças na áreada saúde. Com esta revisão narrativa pretende-se definir e enquadrar a inteligência emocional como ferramenta importante para a prática clínica futura do internista.

Palavras-chave: Inteligência Emocional; Medicina Interna; Relação Médico-Doente.

 

Abstract:

In the near future, technological innovation alongside with population ageing will justify adaptive changes in health systems and in the way we practice medicine, posing many challenges to the specialty of Internal Medicine. Despite the unprecedented abilityto prevent,diagnose and treat the disease, the focus on the sick person in its circumstantial context will continue to be central to the care provided. Emotional intelligence, which can be developed throughout life, has beena research subject applied to medicine over the last decades and its impact has been demonstrated in several areas such as thedoctor-patient relationship, job satisfaction, patient satisfaction and safety, medical training and healthcare leadership development. This narrative review aims to define and frame emotional intelligence as an important tool for the internist’s future clinical practice.

Keywords: Emotional Intelligence; Internal Medicine; Physician-Patient Relations.

 

1. Introdução

A evolução tecnológica a que estamos a assistir vai implicar, no futuro próximo, mudanças a nível do sistema de saúde e dos hospitais,1  com previsível impacto na sua forma de organização (física, de processos, de recursos humanos) e foco prioritário na ambulatorização de cuidados.1,2 Avanços na inteligência artificial e machine learning, robótica, impressão 3-D, tecnologias de informação e genómica irão ser responsáveis pela melhoria da nossa capacidade de prevenir, diagnosticar e tratar doenças.2-4 Paralelamente à revolução tecnológica, o envelhecimento progressivo da população mundial,  que se assume como um fenómeno de proporções particularmente preocupantes em Portugal,5 terá inevitáveis repercussões no sistema de saúde e na forma como teremos de nos adaptar para prestar cuidados.6 O doente do futuro será mais complexo e com necessidades crescentes de cuidados de saúde. A facilidade com que terá de acesso à informação e o seu maior interesse na gestão da sua saúde gerará novas e mais exigentes expectativas em relação aos cuidados de saúde, com a legítima reivindicação do seu envolvimento nas decisões clínicas que em relação a sidizem respeito.4,6,7

Estas duas dimensões da evolução na área médica têm contribuído para o desenvolvimento daquele que é o constructo da medicina de precisão - uma abordagem centrada no doente e baseada no conhecimento profundo dos atributos únicos relacionados com a saúde e doença de cada pessoa,8 por contraste com o “one size fits all” proporcionada pela medicina baseada na evidência que hoje praticamos.3,8,9 Não obstante os pontos fortes e fraquezas destas duas abordagens e da eventual necessidade futura da sua complementaridade,3 apesar de previsivelmente virmos a ter uma capacidade de acuidade diagnóstica e terapêutica sem precedentes, o foco da prática médica não se poderá centrar exclusivamente na doença. O doente do futuro continuará a ser um ser humano na sua circunstância única, com necessidade de ser cuidado por profissionais compassivos, capazes não só de respeitar a sua dignidade e o seu sofrimento, mas também de estabelecer umarelação de confiança que os ajude a interpretar a informação e a tomar decisões informadas em relação à sua saúde/ doença.6 Neste contexto, a dimensão do “cuidar”, profundamente humana e tãocara à especialidade de medicina interna, poderá ter um papel ainda mais relevante não sendo substituível pela tecnologia que teremos à disposição.1,6 O maior enfoque no desenvolvimento de competências humanas, a nível da formação médica pré e pós-graduada, que dote os profissionais de capacidades acrescidas para uma gestão eficaz e serena da relação com o seu doente será ainda mais necessária no futuro que se avizinha.1

A investigação na área da inteligência emocional aplicada à medicina tem sido crescente ao longo das últimas décadas. Esta revisão narrativa pretende definir e enquadrar a inteligência emocional no contexto da prática médica e analisar de que forma ela se poderá constituir como ferramenta importante paraa actividade clínica do internista no futuro.

 

2. O que é a inteligência emocional?

A primeira definição de inteligência emocional (IE) remonta aos anos 90 do século XX e resulta do trabalho de investigação de John Mayer e Peter Solovey, ambos psicólogose professores nas universidades americanas Universidade de New Hampshire e Yale, respectivamente.10 O termo IE aponta já, por si só, para a intersecção entre pensamento e emoção. Ascontribuições do neurocientista português António Damásio foram fundamentais para o constructo por eles apresentado, nomeadamente os seus estudos em doentes com lesões nos circuitos que ligam a amígdala ao córtex pré-frontal e que são relatados na sua obra intitulada O Erro de Descartes.11  Nestes doentes, apesar de não se verificar alteração do quociente de inteligência (QI) ou deterioração das suas capacidades cognitivas, a capacidade paratomar decisões simples está francamente afectada, traduzindo-se em tomadas de decisão desastrosas para as suas vidas pessoais e profissionais. O dano causado pelas lesões descritas impede o acesso do neocórtex à aprendizagem emocional que foi adquirida ao longo da vida, isto é, ao repositório de “gostos” e “não gostos” que se vão acumulando no decurso desta. A neutralidade cinzenta que a realidade adquire neste contexto, torna a tomada de muito complicada, mesmo que de escolhas simples se trate. Este novo paradigma, que contrariou o que até então se postulava e que separava a razão da emoção, veio clarificar que o cérebro emocional está tão envolvido no raciocínio como o cérebro racional.11-15

Mayer e Solovey definiram a inteligência emocional (IE) como “a set of skills hypothesized to contribute to the accurate appraisal and expression of emotion in oneself and in others, the effective regulation of emotion in self and others, and the use offeelings to motivate, plan, and achieve in one’s life”.10 De uma forma mais simplista, poderemos dizer que a IE é a capacidade de utilizar a informação gerada pelas emoções para potenciar o pensamento.16,17 Para a elaboração deste construto, os autores consideraram a inteligência como “the capacity to reason validly about information” e emoção como “a feeling state (including physiological responses and cognitions) that conveys information about relationships”.16 Tendo isto por base econsiderando o conhecimento resultante da investigação em vários campos do conhecimento, Mayer e Salovey, definiram, em 1997, um modelo que designaram por “Four branch model” (ou “ability model of emotional intelligence”)18 que descreve as quatro capacidades que caracterizam a IE: i) reconhecimento da emoção (em si próprio e nos outros); ii) uso das emoções para promover o pensamento; iii) compreensão das emoções (e do seu significado);iv) gestão das emoções. Este modelo foi revisto em 2016, já com as contribuições adicionais de David Caruso, professor de psicologia e investigador na Universidade de Yale, criando-se uma versão expandida em relação ao original que inclui novos conhecimentos resultantes da investigação efectuada na década subsequente.19

Tendo por base o trabalho essencial de Mayer e Solovey na área da IE, é Daniel Goleman, psicólogo e jornalista, quem mais notabiliza a temática, com a publicação, ainda na década de 90 do século XX, do livro com o mesmo nome que se tornou popular em todo o mundo.20 A proposta de Goleman para definição da IE é mais abrangente que a definição original, associando-lhe aspectos relacionados com traços de personalidade. Este modelo integra o que hoje se designa por modelos mistos de IE, pelo facto dos atributos acrescentados serem conceptualmente distintos dos originais e não estarem directamente relacionados quer com a emoção,quer com a inteligência.16 A avaliação conjunta da IE e da personalidade tem a sua lógica na medida em que a IE é uma parte da personalidade humana e é esta fornece o contexto no qual a inteligência emocional opera.16

 

2.1 COMPONENTES DA INTELIGÊNCIA EMOCIONAL

A investigação desenvolvida por Goleman nomeadamente na aplicação da IE ao contexto do trabalho permitiu gerar evidência de que o QI e competências técnicas são recursos básicos e essenciais, mas não são suficientes para um desempenho efectivo e de qualidade superior dedeterminadas funções, nomeadamente quando estas implicam liderança.20,21 Num célebre artigo publicado em 1998 pela Harvard Business Review,21 Goleman introduziu o conceito de 5 componentes da IE, que são: i) autoconsciência (capacidade de reconhecer as suas próprias emoções, motivações e impulsos, bem como o seu impacto destas no outro); ii) autocontrolo (capacidade para controlar ou reorientar emoções e impulsos disruptivos); iii) motivação (propensão para alcançar objectivos com energia e persistência, movidos pelo êxito e não por outros motivos como o estatuto ou dinheiro); iv) empatia(compreender e considerar as emoções do outro, nomeadamente na tomada de decisão); v) competência social (capacidade de encontrar um terreno comum com o outro para construir um relacionamento e criar redes,conduzindo a relaçãono sentido desejado).

Das componentes da IE referidas, as três primeiras componentes estão relacionas com a nossa capacidade de auto-gestão enquanto que as duas últimas impactam sobretudo a forma como gerimos a nossa relação com o outro.21  De todas as dimensões da IE, a empatia é a componente que é mais facilmente reconhecida e à qual foi sempre atribuída, historicamente, mais importância no meio médico. Em relação aesta componente da IE em particular, apesar de habitualmente ser reconhecida como atributo único, pode ser decomposta em três tipos distintos22: i) empatia cognitiva: capacidade de compreender a perspectiva de outra pessoa; ii) empatia emocional: capacidade de sentir o que outra pessoa sente; iii) preocupação empática: capacidade de nos apercebermos de como poderemos ser úteis à outra pessoa.

Todos nós precisamos de IE para gestão das demandas emocionais com as quais temos de nos confrontar diariamente. De uma forma geral, a IE aumenta a eficácia social de cada indivíduo no seu contexto pessoal e profissional.16,20,21 No contexto profissional em particular, e quanto maior for a posição na hierarquia, a evidência demonstra que adiferença de efectividade na execução das tarefas se deve a factores relacionados com a inteligência emocional e não com capacidades cognitivas.21

 

3. A inteligência emocional aplicada à prática médica e ao ensino da medicina

Razões sociológicas e epistemológicas explicam a rápida e ampla difusão do termo IE para campos profissionais. Um dos principais motivos diz respeito ao reconhecimento, por parte de profissionais de diversas áreas de actuação, do impacto e relevância das emoções no resultado de seu trabalho. Nesse contexto, a IE tornou-se uma estrutura de pensamento satisfatória eadequada, nos camposorganizacional e educacional, quer para tarefasavaliativas quer formativas.23

No contexto clínico médico ela também tem vindo a ser vastamente estudada, sendo reconhecida como uma estrutura teórica para estudar a arte da medicina, podendo inclusivamente ser útil a educadores médicos para o desenvolvimento de abordagens pedagógicas sólidas, exigindo-se uma utilização rigorosa e responsável.24,25

Uma das áreas de investigação que tem merecido interesse relaciona-se com o impacto da inteligência emocional do médico nasua relação com o doente. A evidência parece apontar para uma correlação directa positiva e benéfica para ambos os intervenientes no processo.24,26 Embora haja estudos com resultados neutros em relação a este tópico,27,28  em provável relação com aspectos metodológicos (selecção de participantes, formas de medição da IE, por exemplo), alguns estudos têm vindo a demonstrar que médicos com scores mais elevados de IE apresentam maiores níveis de satisfação profissional e menores níveis de burnout relacionado à profissão.24,29-31 A satisfação dos doentes também parece correlacionar-se positivamente com os scores de IE do médico, sendo mediada pela relação de confiança que o médico consegue estabelecer com eles no decurso da sua actividade clínica.32,33 Uma revisão recenteda literatura26 aponta para uma relação indirecta entre baixos scores e IE e risco aumentado problemas de litigância enfrentados pelos médicos no decurso da sua vida profissional, em muito relacionados com interacções negativas e insatisfatórias, que se traduzem em baixos níveis de satisfação dos doentes. Os autores dessa investigação defendem a utilização da IE como ferramenta valiosa de avaliação26 que poderá ser pensada como uma formade medição de factores que influenciam interacções entre médicos, os seus pares e os doentes.

Alguns estudos têm salientado a existência de uma relação directa entre a IE e o desempenho clínico.20,26,27,34 A revisão sistemática da literatura de Kozlowski et al34  demonstra, à semelhança do que se conhecia noutros contextos, que emoção e cognição estão igualmente envolvidas na tomada de decisão no contexto clínico.15 Os estudos analisados fornecem evidência de que a forma como o médico perceciona as emoções do doente e as experiencia influencia a forma como toma decisões. Neste contexto, levanta-se inclusivamente a possibilidade de o reconhecimento e domínio do aspecto emocional da tomada de decisão clínica constituir um aspecto crítico para a melhoria da qualidadedos cuidados prestados e da segurança do doente.35-38

Como referido previamente a IE tinha já sido identificada como competência essencial à boa liderança, nomeadamente no mundo empresarial.20,21 Também na área da medicina tem vindo a ser reconhecido, cada vez mais, que a IE é uma componente-chave do desenvolvimento de um bom líder. Mintz et al salientam a sua importância não só para o desenvolvimento e formação médica em geral, relação inter-pares e entre especialidades, mas também para o exercício de funções executivas relacionadas com a gestão em saúde ou em meio académico.39

Em relação ao ensino, uma das facetas que grande parte dos médicos, nomeadamente internistas, é chamado a desempenhar, a evidência demonstra que apesar da IE não se relacionar com o desempenho académico intelectual, ela é preditora da performance interpessoal e global durante o curso.40 O reconhecimento de que os estudantes são sobretudo treinados para serem tecnicamente competentes, relegando para segundo plano competências na área da IE também essenciais ao exercício prático da medicina, tem alertado a comunidade académica para a eventual necessidade de se ter em conta a IE no processo de selecção dos estudantes de medicina às universidades.40-42  No contexto actual e futuro, de envelhecimento progressivo da população e de predomínio de doenças crónicas, em que a gestão multidisciplinar (com enfoque na educação dos doentes, garantindo a adesão à terapêutica e a gestão emocional da doença) é fundamental, o desenvolvimento de competências na área da IE parece ser cada vez mais importante. Ezekiel EJ et al defende que se por um lado o QI é necessário para o domínio crítico do volume e complexidade de informação que o médico tem de aprender, por outro lado, acima desse limiar, o sucesso da medicina está intimamente relacionado com a IE. Se a preparação da nova geração de médicos para a realidade futura em que vão desempenhar as suas funções exige reconhecimento da importância da IE, então a selecção de candidatos a admitir nas faculdades de medicina deverá incorporar avaliações explicitas da IE dos candidatos e o currículo académico deve contemplar momentos de aprendizagem que proporcionem o seu desenvolvimento.41

A IE parece ainda estar directamente relacionada com a resiliência e percepção de felicidade por parte estudantes de Medicina.43,44 Fenómeno semelhante tem vindo a ser reportado a nível pós-graduado, durante os programas de internato médico.31 Muito embora ainda não se consiga descrever quais os mecanismos de exactos envolvidos neste fenómeno, a evidência tem vindo a demonstrar que a IE é um factor protector nomeadamente da saúde mental.28,45 A medição prospectiva da IE ao longo do internato, poderá vir a ter utilidade prática na identificação dos médicos que estão em risco para desenvolvimento de resultados adversos em termos de bem-estar e saúde mental no decurso dos seus internatos.24,31

 

3.1 O CONTEXTO PARTICULAR DO SERVIÇO DE URGÊNCIA

Uma parte significativa dos internistas exerce actividade no Serviço de Urgência(SU), ambiente de trabalhoque se reveste de múltiplas particularidades: elevado volume e variabilidade de doentes, inexistência de relação prévia com os mesmos, imprevisibilidade das situações clínicas, variabilidade de condições e recursos humanos, interrupções frequentes, jornadas longas de trabalho muitas vezes sem pausas ou descanso, nomeadamente durante o período nocturno, sobrecarga cognitiva, necessidade de decisão rápida, entre outros. Neste ambiente, os médicos têm adicionalmente de lidar um amplo espectro de gravidade clínica e problemas sociais diversos.36 Todos estes motivos contribuem para que o Serviço de Urgência seja um ambiente gerador de elevados níveis de stress emocional onde a possibilidade de erro de diagnóstico e os riscos à segurança do doente se encontram particularmente aumentados.35,46,47 Apesar de sabermos que a emoção influencia o processamento de informação, a capacidade de decisão e o comportamento,15,34,48 não era claro quais seriam os factores desencadeantes das emoções e quais as consequências destas no contexto específico do trabalho na urgência, assim como as estratégias utilizadas pelos clínicos para as mitigarem. O estudo de Isbell LM et al, baseado em entrevistas semi-estruturadas a 86 profissionais de saúde (45 médicos e 41 enfermeiros) que trabalhavam em departamentos de urgências de hospitais americanos de diferentes tipologias, permitiu responder a estas questões.36  Os factores responsáveis pelo desencadeamento das emoções identificadas pelos profissionais de saúde foram agrupados em três níveis : i) factores relacionados com o Sistema de Saúde (sobre utilização e má utilização dos serviços de urgência, admissão dos doentes e transição de cuidados, desadequada continuidade de cuidados após a alta do SU, nomeadamente a articulação com cuidados de saúde primários); ii) factores relacionados com os hospitais (limitação de recursos humanos e materiais, sobrecarga de trabalho,problemas de comunicação entre pares e inter-equipas, dificuldade na gestão da consultadoria diferenciada solicitada); iii) factores relacionados com osdoentes (expectativas não realistas, incompreensão face às condicionantes de trabalho, comportamentos abusivos, particularidades de populações específicas tais como doentes psiquiátricos, utilizadores abusivos do serviço de urgência e utilizadores de substâncias ilícitas). Apesar das emoções referidas serem variadas as que mais frequentemente são relatadas pelos participantes do estudo são a frustração, ira e tristeza. A expressão de emoções positivas (gratidão, por exemplo) é, por comparação com as negativas, menos frequente e surge apenas no contexto da relação com o doente. Médicos e enfermeiros reconheceram que desenvolvem as suas próprias estratégias individuais, de forma empírica e pouco estruturada, para gestão das suas emoções, muitas vezes com recurso à repressão,compartimentalização ou desprendimento, cujo impacto na relação com o doente, com os pares e na capacidadedecisão clínica pode ser paradoxal. Os profissionais de saúde reconhecem e assumem que a gestão inadequada de emoções pode impactar asua capacidade de decisão clínica, com possível tradução em menor qualidade dos cuidados prestados, pondo em risco a segurança do doente. A regulação da emoção é, conforme evidenciado previamente, um componente importante da IE.10,16,20 Reconhecendo-a como muito importante para a prática médica, estes autores advogama implementaçãode intervenções que permitam o seu desenvolvimento pelos profissionais que trabalham neste contexto, como ferramenta importante para mitigar os riscos reconhecidos nomeadamente em relação à qualidade dos cuidados prestados e segurança do doente.

 

4. É possível desenvolver a inteligência emocional?

A IE, capacidade que não se correlaciona, em cada indivíduo, directamente com o seu QI, pode ser desenvolvida ao longo da vida.18,20,21,49-51 A evidência meta-analítica recente demonstra que as intervenções nesta área se traduzem em aumentodos scores de IE,independentemente do modelo definidor de IE utilizado, sendo os resultados melhores quando a abordagem utiliza o modelo de Mayer e Solovey em detrimento dos modelos mistos.50 Dada a variabilidade de intervenções passíveis de implementação, considera-se que poderá vir a ser importante, no futuro, criar guidelines para normalizar essas mesmas intervenções.50 A optimização do seu impacto poderá passar pela identificação dos grupos específicos ou populações que mais delas possam beneficiar, com recurso a treino individualizado prático que permita providenciar feedback qualificado aos participantes.51

Em virtude da natureza das suas funções e das exigências adicionais que a prática da medicina no futuro na sua vertente da relação com o doente poderá vir a trazer, os médicos, nomeadamente da especialidade de medicina interna, constituem-se como um dos grupos profissionais que poderão beneficiar de intervençõespara desenvolvimento da sua IE. Alguns estudos têm vindo a sugerir que o percurso profissional do médico, sobretudo durante o internato médico, pode ter impacto negativo na IE.52-54 Ou seja, a IE dos médicos pode diminuir ao longo da sua vida profissional, fenómeno que se relaciona com a incapacidade de gestão das emoções e que o levam ao desenvolvimento de estratégias, descritas no estudo de Isbel LM et al,36 que poderão conduzir a resultados nefastos individuais e contra producentes para a relação médico-doente. A importância do treino de competências na área da IE24,36,49 é por isso cada vez mais reconhecida, embora o tipo de treino e o momento ideal para a sua ocorrência, quer a nível da formação (pré-graduada epós-graduada) quer a nível da carreira profissional, careçam ainda de definição55 e justifiquem a continuidade da investigação nesta área.

 

5. Conclusões

É expectável que, no futuro, os avanços tecnológicos a que estamos a assistir, a par do envelhecimento da população, justifiquem adaptações no modelo de organização dos sistemas de saúde. Enquanto que a inovação tecnológica terá um impacto muito significativo na nossa capacidade de prevenir, diagnosticar e tratar a doença, o desenvolvimento de competências na área da IE poderá constitui-se com uma ferramenta útil para melhoria da dimensão dos cuidados centrados no doente. Continuará a caber à Medicina Interna a gestão técnica e profundamente humanizada do doente idoso e complexo, no seu contexto circunstancial. A evidência científica gerada ao longo das últimas décadas no que respeita à IE aplicada à medicina tem vindo a demonstrar não só o seu impacto na satisfação profissional, no desempenho e raciocínio clínicos, na qualidade da relação médico-doente, na satisfação do doente, como também a sua importância ao longo da formação médica e desenvolvimento de capacidades de liderança no decurso da carreiraprofissional. A IE não é uma competência inata e pode ser desenvolvida ao longo da vida e no decurso do percurso profissional. Os médicos que trabalham em ambientes de grande stress emocional, nomeadamente no Serviço de Urgência, nomeadamente internistas, constituem-se como um dos grupos profissionais que mais beneficiaria de desenvolvimento de competências na área da IE.

 

Nota: O conteúdo deste manuscrito foi previamente apresentado na conferência proferida sobre o tema no 26º Congresso Nacionalde Medicina Interna/VII Congresso Ibérico de Medicina Interna.

 

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Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

 

Ethical Disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer re-viewed.

 

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) e Revista SPMI 2020. Reutilização permitida de acordo com BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

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Correspondence / Correspondência:

Maria João Lobão - m.lobao@ensp.unl.pt

Serviço de Medicina Interna, Hospital de Cascais, Cascais, Portugal

Av. Brigadeiro Victor Novais Gonçalves, 2755-009 Alcabideche

 

Received / Recebido: 16/10/2020

Accepted / Aceite: 16/10/2020

 

Publicado / Published: 18 de Dezembro de 2020

 

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