INTRODUÇÃO
O tromboembolismo venoso (TEV), engloba a trombose venosa profunda (TVP) e a embolia pulmonar (EP). É a terceira síndrome cardiovascular aguda mais frequente, a seguir ao enfarte agudo do miocárdio e do acidente vascular cerebral.1 É um problema de saúde pública, tanto pela sua morbimortalidade como pelo consumo de recursos.2 As taxas anuais de incidência estimadas na população europeia variam entre 104-183 / 100 000 pessoas / ano.3 Recorre em aproximadamente 30% dos casos aos 10 anos.3 A incidência do TEV e suas complicações são frequentemente subestimados.2 A mortalidade estimada de EP não tratada é de 13 a 17%, constituindo a principal causa de morte intra-hospitalar evitável.
Os D-dímeros resultam da degradação das ligações cruzadas da fibrina pela plasmina. Encontram-se aumentados na fase aguda da trombose pela ativação simultânea da via da coagulação e fibrinólise.4 Os D-dímeros têm uma sensibilidade de aproximadamente 95% e um elevado valor preditivo negativo para TEV. A especificidade está reportada entre 35,2% e 62,3% no doseamento ajustado à idade e os falsos positivos podem ser observados em casos de infeção, neoplasia, gravidez e puerpério.1,5-7O doseamento de d-dímeros é útil no diagnóstico de apenas mais duas situações clínicas: na coagulação intravascular disseminada e na hiperfibrinólise primária; e como fator prognóstico na infeção por SARS-CoV-2.8
Um doente com suspeita de TEV deve ser estratificado de acordo com a sua probabilidade pré-teste. Os scores de cálculo da probabilidade mais frequentemente utilizados para a EP são oscorede Geneva modificado e oscorede Wells, ambos validados externamente.9-11O score mais utilizado para TVP é oscorede Wells de dois níveis. Um doente com alta probabilidade pré-teste de EP deve realizar uma angiografia tomográfica computadorizada torácica (angio-TC tórax), no entanto, num doente com baixa probabilidade pré-teste, um teste D-dímeros negativo pode excluir EP sem necessidade de mais exames em ~ 30% dos casos (Fig.s 1 e 2).1 O objetivo deste estudo foi analisar todos os doseamentos de D-dímeros realizados no nosso serviço de urgência (SU) durante um período de 6 meses e determinar a adequação desse exame no diagnóstico de TEV.
MATERIAIS E MÉTODOS
Seleção da amostra:
Realizamos um estudo retrospetivo observacional de todos os episódios de urgência no nosso SU entre 1 de julho e 31 de dezembro de 2017. Os critérios de inclusão foram: idade superior a 18 anos, pelo menos um doseamento de d-dímeros no decorrer do episódio de urgência, registo clínico disponível com descrição de sinais e sintomas.
Coleção de dados:
Perante a leitura da ficha de urgência e registo médico de todos os episódios selecionados, foi efetuada uma pesquisa ativa de uma lista pré-definida de sinais e sintomas sugestivos de TEV. Esta lista foi estabelecida de acordo com literatura especializada.1,2Calculamos a probabilidade pré-teste de acordo com o score de wells, o score de geneva modificado e o score de wells de 2 níveis para cada doente. Registamos o valor de d-dímeros obtido e se se encontrava elevado de acordo com a regra ajustada à idade (idade (anos) x 10ug/L, se idade <50 anos). No período correspondente à análise o teste realizado no nosso laboratório era o VIDAS® D-Dimer Exclusion II da Biomerieux. Documentamos a realização de angio-TC (ou ecocardiografia transtorácica quando este estava contraindicado) e ecografia com doppler dos membros inferiores, bem como a confirmação ou exclusão de TEV.
RESULTADOS
1. Características da amostra
Entre 1 de julho e 31 de dezembro de 2017 foram identificados 7 212 479 episódios de urgência no nosso hospital. Em 764 casos foi efetuado doseamento de D-dímeros. Após análise do registo de urgência e exames efetuados durante o episódio, foram excluídos da análise 175 casos, 6 por apresentarem idade inferior a 18 anos, 52 por serem registos repetidos, 117 por não terem informação suficiente no registo da urgência (Fig. 3). Incluímos na análise um total de 589 episódios, englobando 565 doentes. A análise foi efetuada por episódio.
A amostra tinha predominância do género feminino, representando 61,3% (n = 361) dos casos. A idade média foi de 62 ± 19 anos, com um mínimo de 19 e um máximo de 98.
2. Variáveis analisadas
2.1. Sinais e sintomas
Os sintomas mais frequentes foram a dispneia (28,5%, n = 168), a dor torácica (27,5%, n = 162), dor assimétrica da perna (14,1%, n = 83) e síncope (13,2%, n = 78) e menos frequentes a tosse (7,5%; n = 44) e as hemoptises (1,0%; n = 6) (Fig. 4). Os sinais mais frequentemente documentados foram a taquipneia (19,0%; n = 112), a taquicardia (15,6%; n = 92) e o edema assimétrico dos membros inferiores (13,4%; n = 79). Menos frequentemente observou-se hipotensão, definida como PAS <90 mmHg ou uma descida face ao valor habitual do doente de ≥40 mmHg, por mais de 15 minutos, em 6,8% dos casos (n = 40) e cianose (2,5%; n = 15) (Fig. 5). Em 165 episódios (28,0%) não foi identificado nenhum sintoma sugestivo de TEV. Em 332 episódios (56,4%) nenhum sinal sugestivo de TEV foi identificado. Em 110 episódios (18,6%) não foi documentada clínica (sinal ou sintoma) sugestiva de TEV.
2.2. Probabilidade pré-teste
Em cada episódio foi calculada a probabilidade pré-teste para EP e TVP (Tabela 1). De acordo com oScorede Wells, 74,9% dos casos (n = 441) tinham baixa probabilidade para TEV, 24,4% (n = 144) probabilidade intermédia e em quatro casos (0,7%) alta probabilidade. Do grupo com baixa probabilidade foram confirmados três casos de EP, dois casos de TVP e um episódio com ocorrência concomitante de EP e TVP (EP+TVP), do grupo de intermédia probabilidade oito casos de EP, 11 casos de TVP e um caso de EP+TVP e no grupo de alta probabilidade 1 caso de EP+TVP. Dos 585 casos com baixa e intermédia probabilidade de TEV, 313 (53,5%) apresentaram elevação de D-dímeros e destes, 55 (17,5%) não tinham clínica sugestiva de TEV. Dos 313 casos com elevação de D-dímeros apenas 90 (28,8%) fizeram angio-TC na sua sequência.
2.3. D-dímeros
Foi encontrada elevação em 55,5% (n = 327) de todos os episódios (Tabela 2). Em apenas 28,1% (n = 92) destes foi realizado angio-TC (Fig. 6). Em 10 casos sem elevação de d-dímeros foi efetuado angio-TC, não tendo sido confirmado TEV em nenhum caso. Todos os casos confirmados de TEV tinham D-dímeros elevados. Dos 327 doentes com D-dímeros elevados, em apenas 8,2% (n = 27) foi confirmado existir TEV.
2.4. TEV confirmados
Os casos de TEV constituíram 4,6% do total de 589 episódios analisados (n = 27), 2% (n = 12) de EP e 2% (n = 12) de TVP e 3 casos de EP+TVP. A ecocardiografia transtorácica foi efetuada em 60 episódios (9,2%), tendo sido encontrados sinais de sobrecarga do ventrículo direito em 7 (1,2%) (Tabela 3). Em um caso o diagnóstico de EP foi baseado em sinais de sobrecarga do ventrículo direito no ecocardiograma e elevação de biomarcadores - a doente tinha contraindicação para a administração de contraste iodado.
Discussão
Os resultados obtidos estão de acordo com estudos observacionais de outros Serviços de urgência.
Bayes et al descrevem uma diminuição significativa da realização de angio-TC de 90% (72/80) para 40% (44/110) após introdução do teste de D-dímeros no Serviço de Urgência, sem alterações da incidência de EP, com valor global de 8.4% (n = 16). Descrevem 3 casos de probabilidade alta segundo o score de Geneva modificado em que foi realizado teste de D-dímeros ao invés de angio-TC imediato.12
Fraile JB et al analisaram o doseamento de D-dimeros num SU e em apenas 33,5% da amostra (616/1833) foram encontrados algum sintoma ou sinal de TEV. Este valor é francamente inferior ao obtido na nossa amostra de 81,4% com clínica sugestiva de TEV. Em termos de probabilidade pré-teste, de acordo com o score de Wells, 29,4% da amostra tinha baixa probabilidade, 64,7% tinha probabilidade intermédia e 5,9% alta probabilidade. Estes valores são diferentes da nossa amostra, em que o predomínio é de baixa probabilidade. A incidência de TEV foi semelhante com 3,6% de EP (66/1833).13
Yin F et al documentaram D-dímeros positivos em 44% (465/1056) de uma amostra com suspeita de TEV, 36% destes com baixa probabilidade pré-teste e 53% com probabilidade intermédia. No entanto, apenas 29% realizaram exame de imagem. 9 doentes com alta probabilidade pré-teste fizeram doseamento de D-dímeros, e apenas 5 destes prosseguiram com angio-TC. 19% (111/591) dos doentes com doseamento negativo realizaram angio-TC. A incidência de EP foi inferior à nossa com 1,8% (27/1529).14
Kamolratanapiboon et al descreve uma amostra com suspeita de TVP, em que 53,6% (158/295) dos casos fizeram doseamento de D-dímeros em doentes com score de Wells de 2 níveis com classificação provável que deveriam ter realizado ad initium exame de imagem. Dos doentes com classficação improvável com D-dímeros positivos, 18,5% (21/113), não realizaram teste de imagem e 33,3% (8/24) comn D-dímeros negativos realizaram o mesmo.15
Os estudos citados corroboram um valor preditivo negativo próximo de 100% no doseamento de D-dímeros para o diagnóstico de TEV, assegurando assim a possibilidade de exclusão diagnóstica sem realização de imagem.
Algumas das razões apontadas para o incumprimento do protocolo nestes mesmos estudos e na nossa amostra são a não compreensão do algoritmo, a desvalorização do valor dos scores de probabilidade pré-teste e o entendimento de que os D-dímeros nada acrescem ao diagnóstico de doentes com alta probabilidade pré-teste. Quanto à realização de angio-TC após D-dímeros positivos, compreendemos que em algumas situações a clínica e restantes exames de diagnóstico doente podem ser tão sugestivos de diagnóstico alternativo que os clínicos acabam por considerar muito pouco provável a existência de TEV e não realizam imagem. No entanto, nestas situações os D-dímeros nunca deveriam ter sido pedidos inicialmente. Um estudo com participação de 6 países Europeus apresentou 2 casos clínicos tipo, um de EP e outro de TVP e pediu a vários clínicos do SU que procedessem ao diagnóstico e orientação.16 Vários erros no seguimento do protocolo foram documentados, corroborando as razões que apontamos acima.
Aponta-se como uma limitação do nosso estudo, o uso de registos médicos como fonte de dados. São uma ferramenta de trabalho e não de colheita rigorosa de informação para estudos. Configura um possível viés a ausência de registo de alguns sinais e sintomas ou cálculo de score de probabilidade pré-teste, apesar de realizados. Trata-se de uma limitação inerente à tipologia de um estudo observacional retrospetivo.
Conclusão
Esta análise demonstrou 3 erros principais no diagnóstico de TEV. Primeiro, observamos doseamento de D-dímeros em doentes sem sinais ou sintomas sugestivos de TEV, em 110 episódios (19%). Em pacientes sem sinais ou sintomas sugestivos de TEV o doseamento de D-dímeros não está indicado aumentando o número de falsos positivos.
Segundo, em doentes com alta-probabilidade pré-teste foi efetuado doseamento de D-dímeros e não angio-TC imediato. Segundo a literatura especializada à data de realização deste trabalho e a sua atualização em 2019,1 os doentes com alta probabilidade pré-teste não têm benefício em doseamento de D-dímeros inicial e devem ser submetidos a angio-TC como 1º exame diagnóstico. Terceiro, em doentes em que é documentada elevação de D-dímeros deve ser realizado angio-TC ou ecodoppler venoso. Na nossa análise, em apenas 28,1% (n = 92) dos 327 doentes com d-dímeros elevados foi efetuado angio-TC.
Realçamos o interesse desta análise do ponto de vista económico e de não-maleficência no que respeita ao uso excessivo de exames não indicados no diagnóstico de TEV que o nosso estudo e a literatura citada demonstram.
Com base neste estudo as autoras propuseram-se a realizar uma formação de atualização do diagnóstico de TEV no Serviço de Urgência e reanalisar estes dados.