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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.28 no.1 Lisboa mar. 2021  Epub 15-Mar-2021

https://doi.org/10.24950/cc/268/20/1/2021 

Casos Clínicos/ Case Reports

Fabry Disease: New Diagnosis of a Family

Doença de Fabry: Diagnóstico Inaugural de uma Família

1 Serviço de Medicina Interna, Hospital da Luz-Lisboa, Lisboa, Portugal


Abstract:

Fabry’s disease is a rare inherited disease, linked to the X chromosome, that results from a deficiency of alfa‐galactosidase A activity. We report the case of a 59-year-old -man admitted in the emergency department after a fall herald by chest pain. Cardiac ultrasound showed exuberant left ventricle hypertrophy and complementary study with cardiac magnetic resonance showed intramyocardial fibrosis. The rest of the study also showed a proteinuria of 2.15 g/24 hours. Past medical history highlighted an ischemic stroke at 50 years-old and vasospastic angina at 52 years-old. He also reported many years of symptoms compatible with acroparesthesias and had angiokeratomas since childhood. Suspecting Fabry’s disease, we measured the blood levels of alpha-galactosidase A, which showed a severe reduction in enzyme activity, confirming the diagnosis. Genetic study showed the p.G35E mutation in the alpha-galactosidase gene in our patient, his three daughters and one grandchild.

Keywords: alpha-Galactosidase; Fabry Disease; Rare diseases

Resumo:

A doença de Fabry é uma doença hereditária rara, ligada ao cromossoma X, cujo defeito metabólico decorre da diminuição da atividade da alfa-galactosidase A. Descreve-se o caso de um homem de 59 anos, internado através do serviço de urgência onde recorreu por queda precedida de dor torácica. O ecocardiograma mostrou exuberante hipertrofia do ventrículo esquerdo, confirmada por ressonância magnética cardíaca que mostrou fibrose intramiocárdica. Do restante estudo salientava-se proteinúria de 2,15 g/24 horas. O doente tinha história prévia de acidente vascular cerebral isquémico aos 50 anos e angina vasospástica aos 52 anos, destacando-se ainda sintomas compatíveis com acroparestesias com anos de evolução e angioqueratomas desde a infância. Colocada a hipótese de doença de Fabry, pelo que se doseou a alfa-galactosidase A, que mostrou redução grave da atividade enzimática, confirmando o diagnóstico. O estudo genético identificou a mutação p.G35E no gene galactosidase-alfa no doente, nas suas três filhas e em uma neta.

Palavras-chave: Alfa-Galactosidase; Doença de Fabry; Doenças raras

INTRODUÇÃO

A doença de Fabry é uma doença hereditária ligada ao cromossoma X, causada por mutações no gene da galactosidase alfa (GLA). É um distúrbio de sobrecarga lisossomal, cujo defeito metabólico decorre da diminuição da atividade da alfa-galactosidase A (α-Gal A).1É uma doença sistémica e progressiva, que apresenta um amplo espectro de manifestações clínicas.

A α-Gal A é responsável pela clivagem hidrolítica do terminal da galactose do globotriaosilceramida (Gb3), um glicoesfingolípido presente num grande número de células, particularmente nas células do endotélio vascular. O défice de α-Gal A resulta na acumulação lisossomal de Gb3, com subsequente ativação de vias citotóxicas, contribuindo para eventos pró-inflamatórios e pró-fibróticos.1,2

Devido ao padrão de transmissão ligada ao cromossoma X, os homens (hemizigóticos) expressam doença mais cedo que as mulheres e de forma mais grave, sendo que a maioria apresenta alterações neurológicas, renais e cardíacas antes da quinta década de vida.3

As mulheres (heterozigóticas) expressam um fenótipo de doença muito variável, desde a ausência de sintomas a uma doença grave semelhante à dos homens. Este padrão é em parte explicado pela inativação aleatória de um dos seus cromossomas X (hipótese de Lyon).4

CASO CLÍNICO

Homem de 59 anos, admitido no serviço de urgência (SU) após queda da própria altura, precedida de dor torácica retroesternal, com duração de minutos e com resolução espontânea. Referia que este quadro era recorrente, tendo sido já observado previamente no SU pelo mesmo.

Da história médica do doente destacava-se internamento por acidente vascular cerebral (AVC) isquémico aos 50 anos, cujo estudo etiológico foi inconclusivo, resultando numa hemiparesia esquerda sequelar. Aos 52 anos foi diagnosticado com angina vasospástica, após ter realizado coronariografia para avaliação de quadro de angina instável, que não identificou lesões nas artérias coronárias, mas que documentou vasospasmo coronário. Foi medicado com antagonista dos canais de cálcio, com melhoria dos sintomas. O ecocardiograma transtorácico (ETT) desse internamento mostrava uma boa função do ventrículo esquerdo, sem alterações estruturais e sem alterações da cinética segmentar.

Da restante anamnese destacava-se quadro compatível com acroparestesias (referência a dor e parestesias, com sensação de queimadura episódicas, nas mãos e nos pés) com início por volta dos 40 anos de idade e de agravamento progressivo, para o qual já havia realizado estudo com eletromiografia (EMG) dos membros inferiores, que foi considerada normal. Apresentava também angioqueratomas desde a infância.

Da história familiar destacava-se que a mãe do doente teve um AVC isquémico aos 50 anos e que um primo materno em primeiro grau, de 30 anos, tinha doença renal crónica, sob hemodiálise, e sem etiologia identificada. Não havia doenças de transmissão heredofamiliar conhecidas.

No exame objetivo no SU o doente encontrava-se hipertenso, sem outras alterações de relevo. O eletrocardiograma mostrou sinais de hipertrofia do ventrículo esquerdo, inversão de ondas T em DII, DIII, AVF e nas derivações precordiais e no estudo analítico destacava-se elevação do valor da troponina I acima do valor de referência, 0,43 pg/L (valor de referência 0,06 pg/L).

Neste contexto realizou ETT que mostrou hipertrofia ventricular esquerda concêntrica exuberante (Fig. 1), sem alterações da cinética segmentar, e boa função sistólica global. Para caracterização, realizou ressonância magnética (RM) cardíaca que mostrou hipertrofia assimétrica e a avaliação da viabilidade por “realce tardio” foi considerada anormal, com fibrose intramiocárdica (fig. 2). Estes achados levantaram a hipótese de doença infiltrativa do miocárdio, sugerindo amiloidose ou eventual doença de Fabry.

Figura 1: Ecocardiograma transtorácico 

Figura 2: Ressonância magnética cardíaca. Painel A: Hipertrofia do ventrículo esquerdo (estrela); Painel B: Fibrose intramiocárdica (seta). 

Na restante investigação apresentava ainda proteinúria de 2,15 g/24 horas, sem alterações da função renal.

A existência de:

    conjugadas com hipertrofia do ventrículo esquerdo com fibrose intramiocárdica e proteinúria, levou-nos a considerar a hipótese de doença de Fabry. Foi realizado o doseamento da α-Gal A, que mostrou uma redução grave da atividade enzimática (2 nmol/h/mg), confirmando o diagnóstico.

    O estudo prosseguiu com o sequenciamento genético, que identificou a mutação p.G35E no gene da GLA. Foi estudada a família, onde se encontrou a mesma mutação nas três filhas do doente e em uma neta.

    O doente foi referenciado a um centro de doenças raras onde iniciou terapêutica de reposição enzimática. Apesar do tratamento faleceu três anos após o diagnóstico devido a complicações cardiovasculares da doença.

    DISCUSSÃO

    Lidoveet al denominaram a doença de Fabry como“The new great imposter”dado apresentar um amplo espectro de manifestações clínicas que podem simular outras doenças e cuja odisseia diagnóstica requer um elevado índice de suspeição clínica.5

    É uma doença heterogénea, que se expressa em dois fenótipos principais, o fenótipo clássico e o fenótipo tardio. O primeiro é o mais grave e é mais frequente em homens que têm uma atividade nula ou quase nula da α-Gal A. O fenótipo tardio corresponde ao nosso caso descrito e é o mais comum, ocorrendo em doentes que apresentam atividade residual da α-Gal A.6

    O diagnóstico da doença de Fabry é muitas vezes tardio, sendo que, retrospetivamente, é possível documentar sintomas muitos anos antes do diagnóstico ser estabelecido. Isto foi o que encontrámos no caso do nosso doente, dado que apresentava um quadro de acroparestesias com pelo menos 19 anos de evolução e compromisso de órgão alvo há pelo menos 9 anos, sendo a primeira manifestação documentada o AVC isquémico.

    As acroparestesias decorrem de uma neuropatia de pequenas fibras por ganglionopatia consequente à acumulação de Gb3. Esta manifestação, que se pode tornar importante com interferência na qualidade de vida dos doentes, nem sempre tem tradução no EMG.7,8De facto, a doença de Fabry deve ser sempre considerada no diagnóstico diferencial de acroparestesias em doentes com EMG normal, dado ser um sintoma precoce, e que geralmente surge antes de haver compromisso cardíaco, renal ou cerebrovascular.8

    O AVC isquémico é o evento grave mais frequente da doença de Fabry. É umas das manifestações mais precoces, pelo que vários autores propõem que a doença de Fabry entre no diagnóstico diferencial do AVC criptogénico do doente jovem (entre os 15 e os 55 anos). Assim sendo recomendam que este grupo seja considerado de alto risco e que, portanto, seja realizado por rotina o doseamento da α-Gal A e/ou o estudo genético de mutações da GAL.10

    Mais de 50% dos doentes com doença de Fabry têm envolvimento cardíaco, sendo que o espectro de doença é largo e vai desde distúrbios arritmogénicos a doença estrutural cardíaca e coronária. A doença cardíaca é a principal causa de morte.10,11

    O nosso doente apresentava diagnóstico prévio de angina vasospástica, manifestação que é frequente na doença de Fabry. De facto, a acumulação endotelial de Gb3 contribui para doença de pequenos vasos e para o desenvolvimento de lesões estenosantes nas artérias coronárias epicárdicas.11A disfunção endotelial, a hiperreactividade do músculo liso vascular e a disfunção da via do óxido nítrico culminam em disfunção microvascular, o que aumenta o risco de espasmo coronário multivaso.12Estas alterações aumentam o risco de arritmias potencialmente fatais, que podem também resultar de defeitos de condução por infiltração de Gb3 no sistema condutor cardíaco.11

    A hipertrofia do ventrículo esquerdo foi, no caso descrito, o sinal que motivou uma avaliação mais detalhada do doente, com subsequente suspeita de doença de Fabry. A realização de ETT por um especialista experiente é essencial, pois muitas vezes a primeira suspeita surge com base em achados deste exame. A cardiopatia de Fabry é ecograficamente semelhante à cardiomiopatia hipertrófica e a outras doenças infiltrativas, como a amiloidose, no que respeita à morfologia.13Nesse sentido, é fundamental identificar os sintomas e as manifestações sistémicas da doença de Fabry quando se discute o diagnóstico diferencial. Estes doentes evoluem com fibrose miocárdica, objetivada por realce tardio em RM cardíaca, sendo que nesta fase as alterações são irreversíveis.10,11,13

    A cardiopatia de Fabry é uma manifestação relativamente tardia da doença, mas responsável por morbilidade e mortalidade importantes.10,11,13

    A nefropatia é frequente na doença de Fabry e a sua prevalência aumenta com a idade. A proteinúria é o sinal mais frequente e precoce, surgindo antes do declínio da função renal, o que foi evidente no nosso doente, que apresentava proteínúria grave, sem disfunção renal.14

    Este caso ilustra as manifestações típicas desta doença hereditária, que atualmente pode ser tratada eficazmente e com segurança com a terapêutica de reposição enzimática ou com terapêutica com moléculaschaperone.15

    O diagnóstico precoce da doença de Fabry é essencial para o prognóstico e qualidade de vida dos doentes e da sua família. O aconselhamento genético da família, com triagem de todos os indivíduos em risco, incluindo os assintomáticos, permite o início precoce de tratamento, antes do desenvolvimento de sintomas e de complicações da doença.

    O nosso doente foi diagnosticado numa fase tardia de doença, já com alterações irreversíveis, pelo que, apesar de ter iniciado a terapêutica de reposição enzimática, o benefício que teve com a mesma foi escasso. No entanto, permitiu estabelecer o diagnóstico de doença de Fabry na sua família, visto que a mesma mutação estava presente nas suas três filhas e em uma das suas netas, todas elas ainda assintomáticas, conferindo a esta família melhores perspetivas de futuro.

    REFERÊNCIAS

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    Responsabilidades ÉticasEthical Disclosures3

    Received: November 13, 2020; Accepted: December 17, 2020

    Correspondence/Correspondência: Débora Sousa - dsofia.sousa@gmail.com Serviço de Medicina Interna, Hospital da Luz, Lisboa, Portugal Av. Lusíada 100, 1500-650, Lisboa

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