A insuficiência cardíaca (IC) é um problema grave de saúde pública, estando associada a elevada morbilidade e mortalidade. Em Portugal, a prevalência global da IC crónica em 1998 foi estimada em 4,4%, atingindo os 12,7% na faixa etária dos 70-79 anos e 16,1% acima dos 80 anos,1sendo que com o envelhecimento da população é esperado um aumento muito significativo do número de doentes, nas próximas décadas.2A IC é a principal causa de internamento em adultos com mais de 65 anos originando custos muito significativos associados ao tratamento desta síndrome. Em Portugal, estima-se que em 2014 foi gasto um total aproximado de 300 milhões de euros em custos diretos com a IC, estando cerca de 40% destes custos associados ao internamento hospitalar.3
Nas últimas décadas têm sido múltiplos e robustos os avanços da terapêutica para a IC.4,5Contudo verifica-se que muitos doentes com IC ainda não beneficiam das terapêuticas que melhoram o tempo e a qualidade de vida. De facto, é reconhecido o hiato temporal entre a evidência científica e a transposição para a prática clínica.
Neste contexto, é importante melhorar a gestão clínica do doente com IC, melhorando o seu prognóstico e diminuindo o impacto clínico e financeiro da síndrome em Portugal. Esta melhoria da gestão da IC, passa não só por uma maior consciencialização para a síndrome da IC, o que melhorará o diagnóstico e a referenciação ao nível dos cuidados de saúde primários, mas também por uma melhor planificação, aquando do internamento, da otimização da terapêutica modificadora de prognóstico e das comorbilidades e dos cuidados pós-alta hospitalar. Com efeito, o internamento do doente com IC tem que ser progressivamente encarado, não apenas como uma descompensação grave da síndrome, mas principalmente como uma oportunidade para a otimização da abordagem da síndrome (p.e. revisão e otimização do regime terapêutico, realização de exames complementares fundamentais ao diagnóstico etiológico ou a avaliação da progressão da síndrome, etc.). Para alcançar este objetivo, é recomendada a elaboração e utilização dechecklistsnessa gestão, em contexto hospitalar.5,6
Com a publicação desteposition statemento Núcleo de Estudos de Insuficiência Cardíaca (NEIC) da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI), propõe a implementação de umachecklistna pré-alta do doente hospitalizado por IC. Acreditamos que a utilização destachecklistmelhora a abordagem do doente internado por IC, facilitando a avaliação clínica e a definição do plano terapêutico e de seguimento, promovendo a utilização das melhores práticas clínicas e sendo, por isso, um instrumento essencial para todos os profissionais de saúde envolvidos na gestão de doentes com IC.
DISCUSSÃO
A utilização dechecklistsna gestão dos doentes com IC é fortemente recomendada pelas sociedades médicas internacionais5,6e autoridades nacionais de saúde, como o National Institute for Clinical Excellence (NICE) do Reino Unido,12bem como por painéis de peritos em países cujas prevalências de IC e características demográficas são semelhantes às de Portugal, como são os exemplos da Espanha e da Turquia.13, 14
Abreviaturas: ARA II - antagonistas dos recetores da angiotensina II; ARM - antagonistas dos recetores dos mineralocorticoide; Cr - creatinina; ECG - eletrocardiograma; ETT = ecocardiograma transtorácico; FC - frequência cardíaca; FEVE - fração de ejeção do ventrículo esquerdo; Hb - hemoglobina; IECA - inibidores da enzima de conversão da angiotensina; iSGLT2 - inibidores do co-transportador de sódio-glicose 2; Lab - análises laboratoriais; NT-proBNP - porção N-terminal do péptideo natriurético tipo B; NYHA -New York Heart Association; TA = tensão arterial; TSAT - taxa saturação da transferrina; TSH - hormona estimuladora da tireoide
Notas:
1. A terapêutica dirigida e modificadora da doença só tem evidência nos doentes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (IC-FEr), por isso é fundamental conhecer a fração de ejeção do ventrículo esquerdo. O uso deste parâmetro permite reduzir a mortalidade, hospitalizações por IC e melhorar a qualidade de vida.
2. Após a evidência da superioridade do sacubitril/valsartan versus enalapril na redução da mortalidade cardiovascular e das hospitalizações por insuficiência cardíaca no PARADIGM-HF em doentes com IC-FEr, o estudo PIONEER-HF também demonstrou superioridade do sacubitril/valsartan sobre o enalapril na redução de NT-proBNP quando iniciado em doentes hospitalizados, com perfil de segurança e tolerabilidade semelhante ao enalapril.7,10
3. A educação e as recomendações para o doente / cuidador devem abordar os seguintes tópicos:
- adesão à terapêutica farmacológica e não farmacológica;
- dieta: explicar por exemplo ao doente que deve ter uma dieta variada que inclua fruta, vegetais frescos, carne, aves, peixe, ovos, leite e iogurtes;
-restrição de líquidos e sal: explicar ao doente que deve beber a quantidade de água suficiente para não ter sede e não mais que essa quantidade, reforçar que não deve ser adicionado sal na confeção e após a confeção dos alimentos, sugerindo a utilização doutros condimentos, como o limão e ervas aromáticas, em substituição do sal;
- exercício físico (caminhada e natação são os exercícios mais adequados): por exemplo, sugerir ao doente para caminhar progressivamente em vários dias até aos 30 dias por dia, se tolerado, ou para caminhar várias vezes por dia enquanto estiver confortável com a caminhada;
- cessação tabágica / consumo de álcool;
- vigilâncias (PA / FC / peso);
- monitorização de sintomas de agravamento (aumento da dispneia ou cansaço, edemas, aumento de peso≥ 2 kg em 3 dias;
- auto-ajuste (limitado) dos diuréticos;
- fornecer material educativo / panfletos.
4. A consulta pós-alta deve acontecer no prazo máximo de um mês, idealmente 7 a 10 dias após a alta: a re-admissão nos primeiros 30 dias é de 11%-18,5%; mais de 30% destes doentes são re-internados nos primeiros 7-10 dias.11
Achecklistdescrita na Tabela 1 e aqui proposta pelo NEIC da SPMI, teve em conta as recomendações internacionais para a abordagem da IC, adaptando-as sempre que necessário à realidade da prática clínica, epidemiologia e demografia de Portugal. Sendo o internamento por IC uma oportunidade para otimizar a gestão da síndrome, consideramos que a implementação de umachecklistna pré-alta hospitalar para auxiliar a gestão do doente internado por IC aguda em Portugal poderá aliviar a carga da doença e originar ganhos em saúde significativos. Com efeito, uma checklistequipara-se a um “manual de instruções” alinhado com as melhores práticas clínicas internacionais, acabando por ser uma ferramenta importante para a otimização do desempenho dos profissionais de saúde na abordagem do doente com IC. Assim, com a utilização de umachecklistna pré-alta hospitalar são expectáveis melhorias significativas na gestão do doente com IC em vários parâmetros, nomeadamente: na identificação da etiologia (subjacente) da IC e das comorbilidades, na introdução e titulação da medicação modificadora de prognóstico para a IC bem como da medicação para as comorbilidades, na educação do doente e dos seus cuidadores e, ainda, na orientação para o seguimento estruturado em ambulatório. Temos a expectativa que o cumprimento generalizado desta recomendação se traduzirá em valor acrescido em saúde para os doentes assim como na redução dos custos associados a esta síndrome.
Propomos umachecklistorganizada em 7 secções que procuram responder de um modo abrangente às questões e problemas específicos que se colocam em contexto de pré-alta hospitalar do doente internado por IC.
“O doente está estável?” - sistematização da avaliação clínica e complementar do doente assegurando que está efetivamente em condições de ter alta: garantir que o doente está adequadamente estável e clinicamente bem, com terapêutica diurética oral há pelo menos 24 horas, e que se encontra hemodinamicamente estável são premissas essenciais para evitar os reinternamentos precoces.
“A etiologia é conhecida?” - é essencial que a causa subjacente da IC seja determinada. O internamento, em virtude de um acesso facilitado a métodos complementares de diagnóstico, representa uma oportunidade para estabelecer a etiologia da IC no doente com IC de novo, bem como naquele em que a mesma não tenha ainda sido determinada. Esta informação é essencial para a otimização terapêutica e definição do prognóstico.
“O fator precipitante foi identificado e controlado?” - importa identificar as causas da agudização e garantir que são tratadas, eventualmente com necessidade de ajustes terapêuticos.
“As comorbilidades foram identificadas, avaliadas e controladas?” - a maioria dos doentes com IC tem doenças crónicas concomitantes. O estudo EPICA1revelou entre os doentes com IC em Portugal uma prevalência de 66% de hipertensão, 20% de doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) ou tromboembolismo pulmonar, 13% de fibrilhação auricular e 11% de diabetesmellitustipo 2. A doença renal crónica está também presente em 14% dos doentes com IC.15A presença de comorbilidades influencia a avaliação, o tratamento e o prognóstico dos doentes com IC. Assim importa fazer uma avaliação integrada de todas as comorbilidades durante o internamento, otimizando o seu controlo e tratamento.
“A terapêutica foi otimizada?” - com base em toda a informação sistematizada nas secções 1 a 4 dachecklist, o internamento por IC é uma oportunidade única para otimização terapêutica dos doentes com IC e FEr (FEVE < 40%), ajustando doses, associando ou alterando classes terapêuticas, de acordo com o perfil e quadro clínico do doente. Segundo as mais recentes publicações de consenso da Heart Failure Association da European Society of Cardiology (HFA/ESC) e do American College of Cardiology (ACC) e com base em toda a evidência disponível devem seguir-se as seguintes recomendações na gestão terapêutica do doente com IC e FEr4,16:
Inibidor da neprilisina e do recetor da angiotensina (IRNA): sacubitril/valsartan é recomendado em substituição de inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) ou /antagonistas dos recetores da angiotensina II (ARA II) para reduzir o risco de hospitalização e morte nos doentes com IC e FEr que permanecem sintomáticos e com peptídeos natriuréticos elevados, apesar de tratamento otimizado com IECA, bloqueador beta-adrenérgico e/ou ARM em ambulatório. A introdução do sacubitril/valsartan em vez de IECA/ARAII pode ser considerada em doentes hospitalizados por IC aguda,de novoou crónica descompensada, para reduzir o risco de eventos adversos a curto-prazo e facilitar a gestão da doença; o início de terapêutica com IECA, a sua titulação e posterior transição para o sacubitril/valsartan, não é obrigatória em doentes com IC e FEr. Esta estratégia demonstrou originar ganhos de tempo e redução da morbilidade e mortalidade.16
IECA / ARA II: os IECA mostraram reduzir a mortalidade e as hospitalizações por IC nos doentes IC e FEr. Os ARA II devem ser utilizados em doentes intolerantes ou com contraindicação para terapêutica com IECA, tendo mostrado benefícios semelhantes nesta população. Tanto uns como os outros poderão ser uma alternativa em doentes que não tolerem o sacubitril/valsartan.
Bloqueadores beta-adrenérgicos: os doentes com IC descompensada com perfil húmido e quente (perfil B) que estão sob terapêutica prévia com bloqueadores beta-adrenérgicos para a IC devem manter a terapêutica durante o internamento, exceto se estiverem sintomaticamente hipotensos ou se bradicardia secundária à mesma esteja na origem da descompensação da IC. Em ambulatório, os bloqueadores beta-adrenérgicos podem ainda ser considerados nos doentes com IC com FEVE intermédia (40%-49%) sintomáticos e em ritmo sinusal, para reduzir o risco de morte cardiovascular (CV) e a morte por qualquer causa. Em Portugal, os bloqueadores beta-adrenérgicos disponíveis para tratamento de doentes com IC e FEr são o bisoprolol, o carvedilol e o nevibolol.
Antagonistas dos receptores dos mineralocorticoides (ARM) - a combinação de ARM + sacubitril/valsartan ou IECA ou ARAII + bloqueador beta-adrenérgico reduz a mortalidade por todas as causas e as hospitalizações por IC em doentes sintomáticos (em classe II ou superiores da New York Heart Association (NYHA) com IC e FEr.17
Ivabradina: a combinação de ivabradina com IECA/ARAII + bloquador beta-adrenérgico + ARM reduz a mortalidade CV e as hospitalizações por IC dos doentes com IC e FEr, em ritmo sinusal e com FC≥70 bpm.18
Inibidores do co-transportador de sódio-glucose 2 (iSGLT2): emplaglifozina, canaglifozina e dapaglifozina devem ser considerados em doentes com Diabetesmellitustipo 2 e com doença CV estabelecida ou com risco CV elevado, de modo a prevenir ou adiar o desenvolvimento da IC aguda. Não existe ainda indicação formal na Europa para o uso desta classe terapêutica em doentes com IC estabelecida, mas existe evidência científica que mostrou que a utilização de pagliflozina em doentes com IC e FEr, diabéticos ou não, medicados com as classes terapêuticas das alíneas prévias, está associada a redução da mortalidade CV e dos episódios de descompensação da IC.19
“Foi fornecida educação e recomendações ao doente / cuidador?” - no seguimento de toda a informação clínica sistematizada nachecklist, o momento do internamento é excelente para educar e relembrar os doentes / cuidadores sobre a doença e a sua monitorização, os autocuidados, os ajustes terapêuticos eventualmente necessários, melhorando assim a literacia e envolvendo o doente / cuidador na gestão da doença.
“O follow-up/ seguimento foi programado?” - tendo em conta a elevada taxa de re-internamentos no 1º mês após um episódio de hospitalização por IC aguda, é essencial deixar agendada antes da alta hospitalar uma consulta de acompanhamento, idealmente nos primeiros 7 - 10 dias após a alta, com o intuito de reavaliar o doente, ajustar a terapêutica diurética e titular os fármacos modificadores de prognóstico. Sempre que esteja disponível localmente, o doente internado por IC deve ser integrado num programa estruturado de gestão da IC ou numa consulta de IC. A articulação com os cuidados de saúde primários também deve ser assegurada, promovendo uma reavaliação precoce e complementar ao acompanhamento hospitalar.
Vários estudos têm documentado os ganhos em saúde que podem ser gerados com a implementação de umachecklist. Por exemplo, Basooret alnum estudo com 2 coortes de 48 doentes demonstraram uma taxa de otimização terapêutica (titulação do fármaco) mais frequente e uma redução significativa das re-hospitalizações a 30 dias e a 6 meses no grupo de doentes em que foi utilizada checklist.20
Legalloiset alnum estudo prospetivo de 103 doentes em que foi utilizada umachecklist eem que os resultados foram comparados com uma coorte retrospetiva de 137 doentes, concluíram que, embora não fossem encontradas diferenças (estatisticamente) significativas em termos de mortalidade e taxas de readmissão, o uso dachecklistestava associado a uma melhor otimização terapêutica e a um melhor planeamento do seguimento do doente após a alta hospitalar.21Resultados semelhantes foram obtidos, num estudo prospetivo com 139 doentesversusuma coorte retrospetiva com 182 doentes, em que se observou uma melhoria significativa das comorbilidades associadas à IC e uma melhor referenciação para o programa de seguimento dos doentes após a alta hospitalar.22
A iniciativa “Optimize Heart Failure Program” (www.optimize-hf.com) foi implementada em 45 países e, para além de promover a adoção das melhores práticas clínicas na gestão da IC localmente e a literacia dos doentes, prevê a utilização dechecklistspara a pré-alta e pós-alta hospitalar. Os resultados preliminares deste programa têm demonstrado melhorias significativas na otimização terapêutica dos doentes com IC e na consciencialização para a IC por parte dos profissionais de saúde e doentes.23
Esperamos que, com esta proposta dechecklistpara a gestão pré-alta do doente internado por IC, adaptada à realidade clínica de Portugal, e com a evidência apresentada para os potenciais ganhos de saúde que poderá originar, possamos ser catalisadores de mudança e contribuir para a melhoria contínua da prática clínica em Portugal.