Introdução
A infeção por SARS-CoV-2 foi descrita pela primeira vez em dezembro de 2019, em Wuhan, na China. Desde então disseminou-se por todo o mundo, com grande impacto não só na saúde global, mas também em termos sociais e económicos.
Com o tempo, apercebemo-nos do seu caráter multissistémico, e do aparecimento de complicações com sequelas em diversos orgãos e sistemas.1,2
Embora o pulmão seja o primeiro orgão-alvo da infeção por SARS-CoV-2, o vírus pode atingir muitos orgãos diferentes, incluindo o coração, cérebro, vasos sanguíneos, rins, intestino, etc. Por esse motivo, o conhecimento da literatura e uma abordagem multidisciplinar tornam-se fundamentais na avaliação e acompanhamento destes doentes.1
Metodologia
No presente artigo as autoras fazem uma revisão da literatura sobre as complicações/sequelas da COVID-19 recorrendo a uma pesquisa informática na base de dados da PubMed de artigos publicados em inglês, de 2020 a 2021. Foram usados como termos de pesquisa: COVID-19 sequelae, post COVID e COVID-19 follow-up.
A lista de publicações foi revista manualmente e aquelas cujo resumo parecia adequar-se ao objetivo do estudo foram selecionadas para analise detalhada. Artigos adicionais que cumpriam estas exigências foram obtidos a partir de pesquisa no Lancet e no British Medical Journal. Foram selecionados, no final da pesquisa, 32 artigos para revisão e, dada a heterogeneidade de metodologias e de resultados, optou-se por uma análise descritiva dos dados obtidos.
Abordagem à doença COVID-19
Desde o início da pandemia COVID-19, tornou-se necessário um grande planeamento e definição de estratégias para a combater. Na revisão da literatura, encontramos estudos que recomendam um plano com quatro fases: na primeira fase, o sistema de saude deve criar condições para aliviar os hospitais de agudos dos doentes não COVID-19, criando circuitos alternativos no sentido de conseguir o máximo de capacidade de internamento durante o periodo de pico.
Na segunda fase, após a diminuição do surto inicial, devem tomar-se medidas para proteger a população vulnerável da COVID-19 e garantir a assistência a doentes COVID e não COVID.
Na terceira fase, após o desenvolvimento e disponibilidade de vacinas, deve apostar-se na distribuição e administração das mesmas, reforçar os cuidados médicos e iniciar a transição para o panorama pós-COVID-19.
Na fase final, devemos identificar oportunidades para melhorar o desempenho futuro e desenvolver um plano de resposta a pandemia para prestadores de cuidados pos-agudos.3 E nesta fase que estamos agora a entrar.
Com base em estudos publicados, estima-se que doentes com apresentações clínicas mais graves, especialmente os que necessitaram de ventilação mecânica invasiva, apresentem mais complicações a longo prazo e recuperação incompleta.1 Contudo, alguns estudos recentes descrevem sintomas persistentes em cerca de 30% dos doentes com doença ligeira.4 Segundo um estudo de Carvalho-Schneider et al, aos 30 dias 68% dos doentes mantinha pelo menos um sintoma e aos 60 dias 66% continuava a apresentar sintomas, principalmente anosmia/ageusia.5 Assim, para que fiquemos mais esclarecidos sobre as consequências desta doença, importa pesquisar em cada doente, o que lhe aconteceu pos-infecao por SARS-CoV-2 e de que forma o vírus afetou o seu corpo.1
Assim, o seguimento dos doentes recuperados da COVID-19 deve ser o mais abrangente possivel, no sentido de concentrarmos todas as informações necessárias a uma adequada abordagem clínica e de cuidados. Nessa avaliação, que se pretende holística, devemos obter informações sobre a fase aguda da doença (sinais e sintomas durante o internamento) e pode ser utilizada para redefinir o modelo organizacional de saúde, e planear o que for necessário a médio e longo prazo.1 Parece, portanto, adequado propor um modelo detalhado sob a forma de checklist para a avaliacao inicial dos doentes (conjunto minimo de dados para a avaliacao dos doentes recuperados da COVID-19), desde que as etapas subsequentes possam ser personalizadas com base nessa avaliação inicial (Anexo 1).
Profissionais de saúde de vários países estão ja a dedicar-se ao acompanhamento especializado destes doentes, como acontece por exemplo em Itália, em que se implementaram protocolos para o seguimento destes doentes em hospitais de dia, com planeamento de estratégias de reabilitação.1,6Há já estudos em doentes Italianos internados que relatam que 53% destes mantem fadiga, 43% mantém dispneia e 22% toracalgia, 2 meses apos a infeção.6,7
Um estudo retrospetivo realizado em Inglaterra com mais de 47 000 doentes com COVID-19, descreveu ao longo de uma média de 140 dias, reinternamentos em cerca de um terco dos doentes, com maior taxa de disfunção multiorgânica, alertando para a necessidade de uma abordagem urgente e abrangente.8
Na abordagem destes doentes, destaca-se o papel do Internista, por ser aquele que melhor conhece o doente no seu todo e melhor gere os problemas multidisciplinares, com grande aptidão para lidar com o doente complexo, com múltiplas comorbilidades. O Internista, tem também grande capacidade de trabalho em equipa com colaboração multidisciplinar e com a família, sendo capaz de controlar o aparecimento de síndromes importantes como a sarcopenia, desnutrição, depressão e delírio.1,9
Complicações/sequelas da infeção por SARS-CoV-2 - O que diz a literatura?
Na literatura, comecam a aparecer definições de novas síndromes, como a síndrome pós-aguda COVID-19 que se refere a sintomas persistentes 3 semanas apos a infeção por SARS-CoV-2 e a síndrome COVID-19 crónica que descreve sintomas que duram mais de 12 semanas.6
Um dos problemas mais importantes a serem resolvidos e a possibilidade de uma reinfeção por SARS-CoV-2. Alguns relatos sugerem que a COVID-19 pode recidivar em doentes considerados recuperados da doença, principalmente com o surgir de novas variantes.1
Segundo Woodruff, 70% dos doentes que cumprem critérios clínicos para serem considerados recuperados da doença, ainda testam positivo, com um tempo médio de 19 dias entre o início dos sintomas e a obtenção de um teste negativo.10Compreender a potencial imunidade protetora ao SARS-CoV-2 e sua duração no tempo representaria uma importante conquista científica, tanto a nível individual quanto numa perspetiva de saúde global, daí que seja importante a realização de zaragatoa nasofaríngea para SARS-CoV-2 um mês após dois testes negativos e a avaliação da resposta imunológica (níveis sericos de IgG e IgA/IgM) em doentes que superaram a fase aguda da doença em diferentes momentos durante o acompanhamento (1 mês apos o início dos sintomas e aos 3, 6, e 12 meses).1,11De acordo com alguns estudos, há um rápido aumento nos títulos de anticorpos nas primeiras três semanas após o início dos sintomas, com redução subsequente, embora se mantenham com uma atividade neutralizante robusta até 6 meses depois.12
COMPLICAÇÕES PULMONARES
Com milhoes de casos confirmados em todo o mundo, há uma preocupação crescente, e cada vez mais atual sobre o potencial da infeção pelo SARS-CoV-2 poder contribuir para uma sobrecarga apreciável de sintomas respiratórios crónicos ou doença fibrótica entre os indivíduos recuperados.13
Os achados mais comuns em doentes internados com COVID-19 são tosse, dispneia, insuficiência respiratória e alterações na tomografia computorizada (TC) que aparecem como opacidades em vidro despolido e/ou consolidacoes.1,14O vírus pode afetar os pulmões de três formas: causando a síndrome da dificuldade respiratória aguda, com lesão alveolar difusa; desencadeando uma oclusao microvascular alveolar trombotica difusa, e originando uma inflamação das vias aéreas associada a mediadores inflamatórios. Estes mecanismos podem levar a um compromisso da oxigenação alveolar, hipoxemia e acidose que, na ausência de tratamento eficaz, podem levar a morte ou a sequelas pulmonares permanentes.15
Durante a fase aguda, os doentes apresentam uma tolerância ao exercício reduzida que em muitos casos se mantem na altura da alta. Alguns dos doentes recuperados apresentam sintomatologia respiratória ou precisam mesmo de manter aoxigenoterapia em ambulatório. Assim, e fundamental avaliar no follow-up destes doentes a função pulmonar, as trocas gasosas e a tolerância ao exercício. Com base nesta avaliação pode ser necessária a realizacao de uma TC torácica para avaliar a resolução radiológica da pneumonia ou a possível evolução fibrótica. Alguns doentes permanecem com condensações únicas ou múltiplas, bandas fibróticas, opacidades em vidro despolido, pneumonia organizativa, bronquiectasias de tração ou nódulos sólidos.1,14
A radiografia de tórax também pode ser utilizada para o acompanhamento imagiológico de doentes recuperados da COVID-19, contudo neste método de imagem podem não ser detetadas alterações mais subtis do parenquima pulmonar devido à menor resolução e tecidos sobrepostos. Assim a TC torácica acaba por ser o método mais sensível para avaliação das alterações pulmonares nestes doentes.14
A fibrose pode apresentar-se como uma doença estável em resposta a infeção ou lesão, ou pode ser progressiva e marcada por períodos de rápida exacerbação. Tanto a doença pulmonar fibrótica estável, quanto a progressiva, estao associadas a morbilidade significativa devido à deposição excessiva de moléculas de matriz extracelular, como o colagénio, a laminina e a fibronectina, no tecido pulmonar parenquimatoso, as quais vao levar a um espessamento das paredes alveolares, com compromisso das trocas gasosas, o que contribui para a reducao da funcao pulmonar, dispneia, fadiga e intolerÂncia ao exercÍcio.13
É importante ter em conta a apresentação inicial e evolução da doença COVID-19 na avaliação das sequelas respiratórias.
A ventilação mecânica pode induzir lesão por barotrauma e lesão alveolar, podendo assim contribuir para a síndrome da dificuldade respiratória no adulto (ARDS). Esse barotrauma/estiramento, pode induzir lesão oxidativa, aumentar a produção de citocinas, e consequentemente aumentar a deposição de colagénio nos pulmões.13
A doença COVID-19 é mais grave em idosos. O envelhecimento do pulmão é particularmente suscetível ao desenvolvimento da resposta fibrótica, o que explica o facto desta população ter um risco aumentado de desenvolvimento fibrótico pós infeção pelo SARS-CoV-2. De facto, a idade está associada a alterações na comunicação intracelular e exaustão de células-tronco. O atraso na recuperação apos a infeção viral pode ocorrer devido a algumas alterações relacionadas com a idade como a senescência celular, o encurtamento dos telomeros ou alteracoes epigeneticas, as quais podem contribuir para as sequelas mais graves nesta população.13
Os estudos clínicos mostram um amplo espectro de outcomes, desde doentes com recuperação total a outros com fibrose estável ou progressiva. Esta resposta variável e um dos motivos da incerteza médica na previsão do curso da doença e sustenta a necessidade de mais acompanhamento e investigação.13
COMPLICAÇÕES OFTALMOLÓGICAS
A infeção por SARS-CoV-2 afeta a vasculatura, provavelmente através de uma reação imunomediada, e de fenómenos oclusivos mais evidentes em territórios microvasculares. Tendo isso em conta, a avaliação oftalmológica e particularmente importante para avaliar o grau de compromisso dos vasos da retina em sobreviventes de COVID-19. É importante tentar correlacionar o grau de compromisso da retina com o compromisso cerebrovascular e/ou cognitivo. Todos os doentes devem ser submetidos a uma avaliação oftalmológica completa, incluindo avaliação da acuidade visual, fotografia do segmento anterior e do fundo ocular, tomografia de coerência ótica 3D (OCT) e angiografia OCT (OCTA).1
COMPLICAÇÕES OTORRINOLARINGOLÓGICAS
Alguns estudos descrevem a persistência de sintomas relacionados com a comunicação, alterações na voz, deglutição e laringe em doentes recuperados, com predomínio naqueles internados em unidades de cuidados intensivos (UCI), comparativamente aos internados em enfermarias.16 A anosmia, a ageusia e a disgeusia foram descritas em 33%-80% dos doentes com COVID-19.17 Alguns autores descrevem tambem quadros de sensibilidade anormal a irritantes químicos como a pimenta chamados de quimiostesia.18
Segundo Stephani Sutherland, neurocientista Americana, no início da pandemia, havia a ideia de que o coronavírus podia atingir o cérebro entrando pelo nariz, seguindo os neurónios olfativos com consequências graves do ponto de vista neurológico.18 Estudos vieram confirmar que a lesão acontece no epitelio nasal, mais propriamente nas células de sustentação (que tem muitos recetores da enzima conversora da angiotensina [ECA] para a proteína S do vírus) e não nos neurónios olfativos que não tem estes recetores. As células de sustentação, mantém o delicado equilíbrio iónico do muco, necessário para os neurónios olfativos enviarem mensagens ao cérebro. Se esse equilíbrio deixa de existir, a sinalização neuronal e interrompida e em consequência o olfato também.
Estas células de sustentação também dão o apoio físico e metabólico necessários aos cílios dos neurónios olfativos, onde os recetores que detetam os odores se concentram. A lesão desses cílios leva a perda do olfato.18
Assim, todos os doentes recuperados da COVID-19 devem ser avaliados relativamente a sua função nasal, auditiva e vestibular. Deve ser feita uma inspecao do nariz, garganta e ouvidos, com avaliação de sintomas como a obstrução nasal, disosmia ageusia e disgeusia. Perante as queixas objetivadas, quando necessário, devem ser avaliados por um especialista de Otorrinolaringologia que efetue um exame objetivo dirigido.1
COMPLICAÇÕES NEUROLÓGICAS E PSIQUIÁTRICAS
Desde o início da pandemia por COVID-19, existe na comunidade científica a preocupação de saber se esta doença constitui um risco para o desenvolvimento de sequelas neurológicas e psiquiátricas e qual o mecanismo das mesmas.19
A infeção por SARS-CoV-2 pode dar origem a várias sequelas neurólogicas, não só devido ao atingimento cerebral direto pelo vírus, como pelo desencadear de fenómenos autoimunes, pela ocorrência da tempestade de citocinas inflamatórias e ainda devido aos efeitos adversos de fármacos, distúrbios metabólicos e neuropatia dos cuidados intensivos.2
As sequelas neurológicas foram agrupadas em três categorias: manifestações do sistema nervoso central (SNC): tonturas, cefaleias, alterações da consciência, doença cerebrovascular aguda, ataxia e convulsões; manifestações do sistema nervoso periférico (SNP): compromisso do paladar, do olfato, alteração visual e dor neuropática; e manifestações de lesões músculo-esqueléticas.1
No que diz respeito as doenças cerebrovasculares, estão descritos casos de hemorragia cerebral e trombose venosa, embora o mais comum seja a ocorrência de acidente vascular cerebral isquémico, por doença de grandes vasos, podendo constatar-se tambem afeção de múltiplos territórios e por vezes por fenómenos trombóticos condicionados pela presença de anticorpos anticardiolipina e anti-beta2glicoproteina.2
Estão descritos também casos de encefalopatia hipóxica, síndrome de Guillain-Barre, disfunção autonómica - síndrome da intolerância ortostática e agravamento de condições neurológicas prévias, que devem ser avaliadas.2
Nos estudos feitos, tem sido descritos níveis de fadiga extremamente elevados em doentes recuperados pós-COVID-19, mais frequentes em jovens do sexo feminino, e com um grande impacto na qualidade de vida, nomeadamente em termos de mobilidade e prestação de auto-cuidados.16,20
Alguns autores tem relatado alguns casos de síndrome pós-COVID-19 grave, caraterizado por efeitos a longo prazo semelhantes a encefalomielite miálgica, com fadiga persistente, mialgias difusas, sintomas depressivos e sono não reparador, mesmo até 6 meses apos a infeção.17,21-23Tem sido proposto que isto se possa dever a lesão nos neurónios sensoriais olfativos, levando a um aumento da resistência ao fluxo do líquido cefalorraquidiano através da placa cribriforme, com congestão do sistema glinfático (canais perivasculares do parenquima cerebral que permitem a drenagem de solutos intersticiais) e subsequente toxicidade no sistema nervoso central.17
Tendo em conta este ponto de vista, a síndrome da fadiga pós-COVID-19 pode ser considerada uma forma de hipertensão intracraniana, resultante de um excesso de líquido cefalorraquidiano (LCR) no sistema glinfático. Alguns estudos recentes suportam esta hipótese, descrevendo nalguns doentes com cefaleias pos-COVID-19 pressoes de abertura do LCR >25 mmHg, na ausência de meningite ou encefalite.17
As doencas neurodegenerativas englobam uma variedade de condicoes que levam ao declinio da qualidade de vida.
Ainda não está claro se a infeção por SARS-CoV-2 desencadeia doenças neurodegenerativas ou se acelera a sua ocorrência prematura, no entanto, a elevada expressão do recetor ECA2 em vários locais do cérebro não é apenas um alvo inicial para o vírus causar lesão cerebral aguda, mas pode ser uma base para alteracoes degenerativas posteriores. No entanto, até a data, ainda não há estudos que esclarecam se a infeção por SARS-CoV-2 pode ter algum papel no aparecimento mais precoce da demência de Alzheimer, doença de Parkinson ou esclerose múltipla.15
Há estudos que descrevem uma perturbação imunomediada do sistema nervoso autónomo, resultando em síndromes de intolerância ortostatica transitória ou a longo prazo, provavelmente causada pelo próprio vírus ou pela indução da produção de auto-anticorpos. As síndromes de intolerância ortostática incluem a hipotensão ortostática, a síncope vasovagal e a síndrome da taquicardia ortostatica postural.6
Durante a avaliação em consulta, os sinais e sintomas neurológicos ocorridos durante a fase aguda da infeção por SARS-CoV-2 devem ser apurados retrospetivamente para avaliar a sua persistência na fase pós-COVID-19. Todos os doentes com palpitações, síncope ou pré-síncope devem ser avaliados cuidadosamente. Deve ser feito um criterioso exame cardiovascular, respiratório e neurológico, com avaliação de sinais vitais e exclusão de outras patologias.6
Deve ser realizado um teste de ortostatismo ativo, com medição da pressão arterial e frequência cardíaca 5 minutos após decubito dorsal e 3 minutos após o ortostatismo. A hipotensão ortostática e definida como uma queda >20 mmHg na pressão arterial sistólica e >10 mmHg na pressão diastólica aos 3 minutos. A síndrome da taquicardia ortostática postural é caraterizada por sintomas ortostáticos (na ausência de hipotensão ortostática) com aumento da frequÊncia cardíaca ≥30 bpm com o ortostatismo durante mais de 30 segundos. A educação, o esclarecimento e o suporte são a base da gestão das sindromes de intolerância ortostática.6,24
O acompanhamento dos doentes com COVID-19 também deve incluir avaliação neuropsicológica específica para aferição das funções cognitivas (principalmente atenção, memória e linguagem) e da interação com aspetos psico comportamentais.1
Um estudo de coorte retrospetivo forneceu evidências de morbilidade neurológica e psiquiátrica substancial nos 6 meses apos a infeção por COVID-19 e revelou que os riscos foram maiores, mas não limitados a doentes com doença grave.19 Neste estudo que envolveu mais de 230 000 doentes com diagnóstico de COVID-19, a incidência estimada de um diagnóstico neurológico ou psiquiátrico nos 6 meses seguintes foi de cerca de 34%. Nos doentes admitidos em UCI, a incidência estimada de um diagnóstico foi de cerca de 46%. Em relação aos diagnósticos individuais dos resultados do estudo, constatou-se uma incidência de hemorragia intracraniana de 0,6%, de acidente vascular cerebral isquémico de 2,1%, de ansiedade em 17% dos casos e de alterações psicóticas em 1,4%.19
Existem já na literatura, evidências de que os sobreviventes da infeção por SARS-CoV-2, estãoo em risco aumentado de transtornos do humor e ansiedade nos 3 meses apos a infeção.25
Em comparação com as sequelas neurológicas, as psiquiátricas mais comuns (transtornos de humor e ansiedade) mostraram uma relação mais fraca com os marcadores de gravidade da COVID-19 em termos de incidência. Isso pode indicar que a sua ocorrência, reflete pelo menos em parte, as implicações psicológicas e outras implicações de um diagnóstico COVID-19, em vez de ser uma manifestação direta da doença.19
De facto, alguns dos doentes recuperados da COVID-19, passaram por uma experiência traumática, não apenas devido à gravidade da doença, mas também devido às condições peculiares do seu internamento e ao estigma social. Febre prolongada, dor, dispneia e exaustão/fadiga crónica, geram sentimentos de desespero, desesperança e depressão na maioria dos doentes. Naqueles internados em UCI, o medo de morrer adquiriu expressão concreta e paroxística. Risco de morte, isolamento social, gravidade da doença e problemas de sono, aumentam o risco de distúrbios mentais como ansiedade, humor e pensamento depressivo, bem como transtornos de stress agudo e pos-traumático, com maior risco de morte, particularmente de suicídio. Assim, é muito importante garantirmos um bom suporte de saúde mental na fase pós-COVID-19 para prevenir o possivel desenvolvimento futuro de transtornos psiquiátricos graves.1
COMPLICAÇÕES CARDIOVASCULARES
Foram descritas várias complicações cardíacas em doentes com COVID-19, nomeadamente, miocardiopatias, por efeito direto do vírus e das citocinas libertadas durante a infeção, enfarte agudo do miocárdio (pela disfunção endotelial e instabilidade da placa aterosclerótica) e insuficiência cardíaca.2
As complicações cardíacas são assim multifatoriais, resultando da lesão viral do miocárdio, da hipoxia, da desregulação do recetor da ECA2, da hipotensão, da tempestade inflamatória ou da toxicidade farmacológica. Estas alterações inflamatórias levam a uma inflamação vascular, com miocardite e complicações arritmicas. A lesão miocárdica aguda, determinada pela elevação dos biomarcadores cardíacos, tem sido descrita mais frequentemente nos doentes que apresentam doenca mais grave, necessidade de suporte ventilatório e mortalidade aumentada.26,27
Em muitos doentes, desenvolve-se um estado pro-trombotico na fase aguda, que pode levar a embolia pulmonar, trombo intracardiaco e exacerbação da doença arterial coronária. Além disso, doentes com fatores de risco cardiovasculares (sexo masculino, diabetes, hipertensão e obesidade) apresentam maior risco. Deve ser feito, entao, no follow-up destes doentes, eletrocardiograma, Holter de 24 horas, ecocardiograma para avaliação da função e estrutura cardíaca, eventual ressonancia magnetica (RM) cardiaca e um controlo apertado dos fatores de risco cardiovasculares.1,26
Apesar de não haver ainda evidência absoluta, alguns estudos defendem que uma tromboprofilaxia primária prolongada até 45 dias após a alta hospitalar pode ter um rácio risco-benefício favorável dado o aumento das complicações trombóticas descrito em doentes com COVID-19. Niveis elevados de D-dímeros (superior a duas vezes o limite superior do normal) juntamente com comorbilidades como neoplasia e imobilidade podem ajudar a estratificar estes doentes no nivel mais alto de risco de trombose pós-aguda, contudo deve ser sempre avaliado o risco/benefício a nivel individual.28
Qualquer atleta que tenha uma miocardite pós-COVID-19 deve ficar durante 3-6 meses em pausa completa dos programas de treino. O período de repouso depende do quadro clínico, gravidade e duração da doença, função ventricular esquerda inicial e extensão da inflamacão na RM cardíaca. Os atletas devem obrigatoriamente ter uma reavaliação periódica devido a um risco aumentado de progressao clinica silenciosa, em particular durante os primeiros 2 anos. Os treinos e as competições podem ser retomados se a função ventricular esquerda for normal, os biomarcadores sericos de lesão miocárdica forem normais e não houver registo de arritmias no Holter de 24 horas nem na prova de esforco.26
A reabilitação cardíaca deve ser priorizada para os doentes com síndrome coronário agudo, revascularização coronária e insuficiência cardíaca.26
COMPLICAÇÕES GASTROINTESTINAIS
O vírus SARS-CoV-2 foi detetado em amostras de fezes, e os recetores ECA2, que usa para entrar nas células do hospedeiro, são expressos no esófago, estômago, intestino delgado, colón, fígado e pâncreas, o que pode explicar o atingimento gastrointestinal comum na COVID-19, com uma prevalência de anorexia, diarreia, vómitos, náuseas, dor abdominal e/ou hemorragia gastrointestinal de até 50% (variando de 3% a 79% de acordo com diferentes estudos), mesmo na ausência de manifestações respiratórias. Para além disso, alguns fármacos utilizados apresentam efeitos adversos gastrointestinais, pancreáticos e hepatobiliares, como os antibióticos, antivirais, hidroxicloroquina e produtos biológicos. É importante uma adequada avaliação das manifestações digestivas da COVID-19, fazer o diagnóstico diferencial adequado e controlar as complicações relacionadas com a infeção.1
COMPLICAÇÕES ENDOCRINOLÓGICAS
Em termos de sequelas endocrinológicas, tem sido descritos casos de tiroidite subaguda, desmineralização óssea e o surgimento de diabetes mellitus. Foram descritos alguns casos de cetoácidose diabética, semanas a meses após a resolução dos sintomas da COVID-19, em doentes sem diabetes conhecida. De igual forma foi observada tiroidite subaguda com tirotoxicose clínica, semanas após a resolução dos sintomas respiratórios. A doença COVID-19 pode potenciar uma autoimunidade tiroideia latente que se manifesta com uma tiroidite de Hashimoto ou doença de Graves de novo.28
A desmineralização óssea que aqui ocorre pode ser resultado da inflamação sistémica, imobilização prolongada, exposição a corticóides ou insuficiência de vitamina D.28
COMPLICAÇÕES DERMATOLÓGICAS
Alguns estudos referem que as manifestações dermatológicas da COVID-19 ocorrem na maioria dos casos posteriormente aos sintomas agudos da doença, com uma latência média de cerca de 8 dias desde os sintomas respiratórios superiores até ao surgimento dos achados cutâneos. Num estudo chinês, apenas 3% dos doentes relatou uma erupção cutânea em 6 meses de acompanhamento. A queixa dermatológica predominante foi a queda de cabelo, que foi observada em cerca de 20% dos doentes. Não se sabe ainda se esta perda de cabelo e resultado da infeção viral ou de uma resposta ao stress.28
COMPLICAÇÕES NUTRICIONAIS/FÍSICAS
A desnutrição e tanto causa quanto consequência da disfunção imunológica. Doentes com COVID-19, com baixos níveis de marcadores circulantes de nutrientes (albumina, pré-albumina e linfócitos) apresentam piores outcomes.
A permanência prolongada em UCI, é um fator de risco bem estabelecido para a desnutrição e leva a um declínio marcado na massa e força muscular e na função fisica geral.1 A fraqueza muscular, o descondicionamento, as miopatias e neuropatias podem assim ser resultados secundários da doença COVID-19, levando potencialmente a um aumento da morbilidade, incapacidade e mortalidade a longo prazo. Com base nos dados emergentes, e inevitável que este grau de lesão seja ainda maior nos doentes das UCI, que normalmente são doentes mais idosos, têm pelo menos uma doença crónica e sintomas graves de COVID-19. A extensão desta incapacidade aumenta de forma paralela a necessidade de ventilação mecânica prolongada, sedação e uso de agentes de bloqueio neuromuscular.29
Após a infeção por SARS-CoV-2, a inflamação hiperativa pode exacerbar os processos catabólicos e a anorexia. Esses fenómenos podem, por sua vez, agravar a desnutrição e ser responsaveis por má recuperação, perda de independência, incapacidade e redução da qualidade de vida após a alta da UCI. Assim, no seguimento destes doentes recuperados da COVID-19 deve ser feita uma avaliação nutricional abrangente com intervencoes apropriadas.1
É fundamental desenvolver planos de reabilitacao para os doentes recuperados da infeção (terapia física, da fala, ocupacional e respiratória). No Reino Unido, estudos prevéem um grande impacto em termos de necessidades sociais, neuropsicológicas e físicas após a alta.16
O National Institute for Health and Care Excellence (NICE) recomenda que os programas de reabilitacao progressiva sejam iniciados nos primeiros 30 dias (fase pos-aguda), dado terem maior impacto na recuperacao.26
As intervenções de reabilitação devem ser baseadas nas necessidades individuais de cada doente. Após recuperação da infeção, os doentes devem ser avaliados para determinar as modalidades de reabilitação (cuidados no hospital ou ambulatório, intervenientes, programas) e devem ser geridos por uma equipa multidisciplinar que inclua fisiatra, psicólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e respiratório, com medidas farmacológicas e não farmacológicas.30
A reabilitação deve ter como objetivo aliviar os sintomas como a dispneia e o sofrimento psicológico, melhorando a função física e a qualidade de vida. Os doentes devem ser elucidados sobre a sua condição, e devem ser-lhes ensinadas estratégias sobre como gerir a sua recuperação.26
Em termos neuromotores e consoante os casos, a reabilitação deve incluir mobilização passiva e ativa para preservar a amplitude de movimentos articulares dos membros, cintura escapular e pélvica e coluna cervical, fortalecimento muscular com exercícios funcionais ou meios auxiliares, exercícios de flexibilidade, exercícios aerobios e exercícios que visem melhorar a marcha e o equilíbrio, com uma verticalização progressiva numa fase inicial para contrariar a desadaptação ao ortostatismo com compressão venosa apropriada e monitorização da pressao arterial e frequência cardíaca.29,30
A cinesioterapia respiratória inclui um conjunto de exercícios que visam melhorar o controlo da respiração, aumentar o volume corrente e facilitar a eliminação de secreções pulmonares, reduzindo o stress, a ansiedade e a depressão.30
A cinesioterapia respiratória reduz os sintomas, aumenta a capacidade funcional e melhora a qualidade de vida mesmo naqueles doentes com alterações irreversíveis da arquitetura pulmonar.26
A reabilitação neuropsicológica pode ser proposta a doentes com distúrbios cognitivos devido a encefalopatia hipóxica ou a alterações vasculares pós-infeção. A terapia da fala pode ser indicada em doentes com distúrbios na voz ou na deglutição após entubação orotraqueal prolongada ou lesão cerebral focal. A terapia ocupacional deve ser recomendada a idosos que perderam a sua autonomia e ficaram com limitações nas suas atividades de vida diárias. Permite encorajar a aquisição de maior independencia e o retorno mais precoce ao domicílio.
O suporte psicológico e também fundamental em doentes com stress pós-traumático, ansiedade ou depressão.30,31
Embora nenhuma faixa etária esteja a salvo da infeção por SARS-CoV-2, o atingimento e maior e mais grave nas pessoas com idade igual ou superior a 70 anos, com taxas de mortalidade documentadas de mais de 20% entre os octogenários.
A presença de múltiplas comorbilidades esta associada a COVID-19 mais grave, possivelmente refletindo a presenca de fragilidade fisica e/ou cognitiva. Assim se percebe que estes doentes requerem mais atenção e cuidados.1
Para além dos efeitos a longo prazo da doença COVID-19 temos também que considerar as consequências das terapêuticas utilizadas, uma vez que uma série de fármacos como os anti-inflamatórios, antivirais ou imunomoduladores foram aqui reaproveitados. O uso de corticoides, por exemplo, que parece reduzir a mortalidade em doentes graves, em altas doses pode causar sequelas a longo prazo como a necrose da cabeca do femur.32
Conclusão
As sequelas multiorgânicas da COVID-19 para além da fase aguda estao a ser cada vez mais reconhecidas a medida a que vamos tendo mais expêriencia clínica e mais acesso a informação.
Para a abordagem atual e futura destes doentes importa reunirmos o maximo de dados no que diz respeito a caraterísticas clínicas, epidemiológicas, serológicas e imagiológicas na fase aguda, subaguda e crónica da doença COVID-19 que nos ajudarão a entender melhor a sua história natural e fisiopatologia.
Os profissionais de saúde têm atualmente o grande desafio de reconhecer, documentar, investigar e gerir toda a sintomatologia prévia e emergente ao longo do seguimento destes doentes. Facilmente se compreende que o nível de cuidados exigido nao termina com a alta hospitalar e que e necessária uma abordagem multidisciplinar integrada, com informação acessível e partilhada. Pode ser considerada uma priorização nos cuidados de follow-up aqueles com maior risco de doença pós-aguda, nomeadamente aos que apresentaram doença mais grave, necessidade de admissao em UCI, idosos, com múltiplas comorbilidades e aqueles com maior carga de sintomas persistentes.
Cada vez mais importa aprofundarmos conhecimentos no que diz respeito as complicações e sequelas a longo prazo da doença COVID-19 de modo a podermos prestar cuidados de saúde com qualidade a um crescente número de doentes afetados por esta pandemia.