Introdução
A pericardiocentese é uma técnica valiosa no diagnóstico e tratamento de doentes com derrame pericárdico moderado a volumoso sintomático e/ou tamponamento cardíaco.1-3É uma técnica altamente específica e invasiva, pelo que a experiência na realização da mesma é de extrema importância, têm sido adoptados diferentes métodos na tentativa de optimizar a taxa de sucesso e reduzir o número de complicações, sendo que anteriormente era um procedimento realizado sob fluoroscopia, guiado pelo traçado electrocardiográfico ou por referências anatómicas, o que se associava a alta taxa de complicações, pelo que tal já não é recomendado.4,5
O desenvolvimento da ecocardiografia bidimensional nos anos 70 permitiu confirmar a presença e a localização do derrame pericárdico6-8; tal confere um acesso rápido e fiável do impacto hemodinâmico causado6,9associado a segurança demonstrada pela baixa incidência de complicações.7,10-12Estas vantagens fizeram com que membros da Mayo Clinic Echocardiographic Laboratory desenvolvessem e descrevessem a técnica da pericardiocentese guiada por ecocardiograma em 1979.7,10,13,14Com a maior disponibilidade da ecocardiografia, esta tem-se tornado universalmente a técnica de escolha para a realização de pericardiocenteses.15
No entanto, ainda surgem algumas dúvidas quanto à utilidade da pericardiocentese com o intuito diagnóstico, sobretudo quanto à aplicabilidade dos critérios de Light para distinguir transudado de exsudado. Apesar de não estarem validados, as recomendações da European Society of Cardiology sugerem alguns parâmetros como sugestivos de estarmos na presença de um exsudado (proteínas >3 g/dL; rácio proteínas >0,5; LDH >200 U/L; rácio LDH >0,6).16,17
O objectivo deste estudo foi avaliar as medidas adoptadas pela equipa da Unidade de Cuidados Intensivos de um hospital periférico na realização de pericardiocenteses, tendo em vista o sucesso do procedimento, utilização de ecocardiograma, taxa de complicações e utilidade para o estudo etiológico de doentes com derrame pericárdico.
Material e Métodos
Análise retrospectiva do processo clínico de todos os doentes submetidos a pericardiocentese entre Janeiro de 2013 e Dezembro de 2019 num hospital periférico, após a sua identificação utilizando a base de dados da Unidade de Cuidados Intensivos do mesmo - 48 doentes num total de 55 procedimentos.
ASPECTO TÉCNICO DO PROCEDIMENTO
A abordagem técnica foi ao critério do operador, tendo sido utilizada a técnica de Seldinger para a punção. Foi utilizado ecocardiograma previamente a todos os procedimentos, mas não necessariamente a guiar a técnica. Não foi usada fluoroscopia em nenhum dos casos. Após confirmação da localização correcta e saída de líquido em quantidade moderada, foi introduzido angiocatéter pigtail para manter drenagem, que era retirada assim que o fluido aspirado reduzia para <25-50 cc por dia. Tal como noutros estudos,6 definiu-se o tamanho do derrame consoante a medição do mesmo em telediástole na maior zona anecogénica entre as duas membranas pericárdicas objectivada no ecocardiograma e o volume drenado, sendo moderado se 10-20 mm e/ou 100-400 mL e volumoso se >20 mm e/ou >400 mL). O tamponamento cardíaco foi definido como derrame pericárdico hemodinamicamente significativo, avaliado pela presença de sinais/sintomas característicos e/ou sinais ecocardiográficos. Considerou-se complicação major quando ocorria qualquer evento indesejável associados à técnica que necessitou de intervenção para além de terapêutica médica e vigilância, ao contrário das minor. A recorrência foi definida pela reacumulação de líquido em <90 dias.
EXAMES COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO
Todos os doentes tinham estudo analítico sérico, contendo hemograma completo, glicose, creatinina, lactato, LDH, velocidade de sedimentação, proteína C reactiva, procalcitonina, proteínas, estudo da coagulação e testes de função tiroideia. Quanto ao à análise do líquido pericárdico, procedeu-se ao estudo citoquímico (pH, proteínas, glicose, LDH, contagem de células com predomínio), citológico e bacteriológico na maioria dos doentes; em casos seleccionados, foi também pedido ADA, triglicéridos, marcadores tumorais e anticorpos antinucleares (ANA). Visto serem doentes abordados em contexto de Cuidados Intermédios/Intensivos, todos tinham radiografia torácica realizada no próprio dia, estavam monitorizados electrocardiograficamente, tinham linha arterial para avaliação contínua da pressão arterial e oximetria de pulso.
ETIOLOGIA
Do ponto de vista etiológico, o diagnóstico foi estabele-cido na ausência de causa alternativa e com achados específicos:
- pericardite aguda viral: dor torácica pericárdica típica, elevação difusa dos segmentos ST, febre, e/ou atrito pericárdico;
- infecção bacteriana: cultura do fluido positiva, ou resposta clínica a antibióticos
- tuberculose: tuberculose conhecida em qualquer localização, ou detecção de Mycobacterium tuberculosis no líquido pericárdico ou PCR positiva no soro, ou resposta clínica à introdução de antibacilares empíricos;
- neoplasia: presença de células neoplásicas do líquido, ou neoplasia diagnosticada nos 2 anos antes ou nos 6 meses após pericardiocentese;
- insuficiência cardíaca: presença de disfunção sistólica ou diastólica grave;
- pós-enfarte agudo do miocárdio: clínica com início em 1 semana após enfarte agudo do miocárdio;
- pós-cirurgia cardíaca: história de cirurgia cardíaca aberta há <6 meses;
- doença renal crónica: hemodiálise ou diálise peritoneal crónicas, ou doença renal crónica com creatinina plasmática >2 mg/dL ou taxa de filtração glomerular <60 mL/min/1,73 m2;
- doenças reumatológicas: se presentes critérios diagnósticos de acordo;
- hipotiroidismo: disfunção analítica de acordo;
- fármacos: relação causa/efeito entre a administração do fármaco e o desenvolvimento de derrame;
- traumático: relação causa/efeito entre o trauma e o desenvolvimento de derrame;
- idiopático: incapacidade de identificar uma doença subjacente consistente com derrame pericárdico apesar de investigação adequada e follow-up ≥6 meses;
- indeterminado: morte num curto período a incapacitar determinação da causa, ou presença de ≥2 doenças concomitantes; ausência de causa provável com follow-up <6 meses.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
As variáveis contínuas foram definidas com médias, desvios padrão e valores mínimo e máximo, enquanto as variáveis categóricas foram definidas por percentagens e frequências absolutas. Os outcomes de interesse foram: técnica ecoguiada, sucesso do procedimento, complicações minor e major, recorrência e sobrevida. Os casos de repetição do procedimento por recorrência foram contabilizados apenas nos dados associados ao procedimento, de modo a evitar duplicação de dados na descrição da população, bem como características e etiologia do derrame pericárdico. Foram ainda avaliadas sensibilidade, especificidade e valores preditivos positivos e negativos das variáveis analíticas potencialmente utilizadas para diagnóstico etiológico do líquido pericárdico.
Resultados
CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO (TABELA 1)
Entre Janeiro de 2013 e Dezembro de 2019, foram realizadas 55 pericardiocenteses consecutivas em 48 doentes. Dos 48 doentes, 60,4% (n = 29) eram do sexo masculino e a idade média foi de 65,1 ± 14,8 anos (mínimo 26 anos e máximo 95 anos). Verificou-se um aumento progressivo no número de procedimentos realizados por ano, sendo apenas 4 pericardiocenteses por ano em 2013-2014 e 10 nos últimos anos (Fig. 1).
Na maioria dos casos a técnica foi realizada nos primeiros 5 dias de internamento (69,1%; n = 38), sendo que o quadro clínico que motivou a realização do exame foi sobretudo hipotensão (50,0%; n = 24), frequentemente refractária e com evolução para choque, e dispneia (33,3%; n = 16).
EXAMES COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO (TABELA 1)
Da avaliação analítica sérica realizada, nenhum doen-te apresentava disfunção tiroideia, sendo que as alterações mais comuns se relacionavam com elevação de parâmetros inflamatórios (velocidade de sedimentação média 64,2 mm/h; lactato médio 4,4 mmol/L; LDH média 493 U/L; proteína C reactiva média 13,5 g/dL; procalcitonina média 2,5 ng/mL).
Apenas 2 doentes não tinham realizado radiografia torácica no momento do procedimento, sendo que se verificou aumento do índice cardiotóracico em 81,3% (n = 39) dos doentes. O electrocardiograma de 12 derivações não foi realizado na maioria dos doentes, visto estarem sob moni-torização contínua, sendo que a alteração encontrada mais comum foi a baixa voltagem dos complexos QRS (20,8%; n = 10).
O ecocardiograma transtorácico bidimensional foi realizado em todos os doentes, no entanto não estava descrito em 3 casos. Foi verificado compromisso hemodinâmico na maioria dos casos (76,4%; n = 42); em 10 (18,2%) casos, não havia compromisso hemodinâmico pelo que a técnica foi realizada com intuito diagnóstico. Este compromisso hemodinâmico traduziu-se em várias alterações, tais como colapso da aurícula direita em 45,5% (n = 25), colapso do ventrículo direito em 32,7% (n = 18) e variação do fluxo transmitral e swinging heart em 14,5% cada (n = 8); não foi descrita a alteração identificada em 8 casos. O derrame pericárdico era circunferencial na grande maioria dos doentes (92,7%; n = 51), sendo 65,5% (n = 36) considerados derrames volumo-sos e evidência de tamponamento em apenas 14,6% (n = 8), constando-se uma média de 27 mm da medição ecocardio-gráfica da espessura do derrame.
PROCEDIMENTO (TABELA 2)
Apesar da gravidade associada a derrames pericárdicos com necessidade de drenagem, foi de carácter emergente em apenas 25,5% (n = 14) dos casos, tendo sido inclusivamen-te feito apenas com intuito paliativo em 4 doentes. Embora tenha sido realizado ecocardiograma prévio a todos os doen-tes, o procedimento foi realizado integralmente com apoio ecográfico em apenas 63,6% (n = 35). Todas as tentativas de drenagem de derrame pericárdico foram bem sucedidas, sendo que todas as pericardiocenteses ecoguiadas o foram à primeira tentativa, enquanto nas realizadas por referências anatómicas houve um caso com necessidade de 3 punções e quatro casos de 2 punções (20% dos casos com >1 tentativa, com média 1,3tentativas para obter drenagem do líqui-do pericárdico). A abordagem preferencial foi equitativamente distribuída entre a via subcostal ou subxifoideia e a apical. O líquido obtido foi descrito como hemático em 50,0% (n = 24), tendo sido obtido um volume médio de 706 cc nas primeiras 6h, havendo necessidade de colocação de drenagem em 87,3% (n = 48) que permaneceu por uma média de 2,0 dias com drenagem adicional média de 249 cc.
Objectivou-se uma taxa de complicações de 9,1% (n = 5), tendo sido 1 complicação major que foi laceração do ventrículo direito, e 4 complicações minor de pneumopericárdio, pneumotórax, fístula pleuropericárdica e edema agudo do pulmão. Os casos de pneumopericárdio e edema agudo do pulmão ocorreram após punções ecoguiadas (taxa de complicações de 5,7%), enquanto os restantes casos ocorreram em pericardiocenteses por referências anatómicas (taxa de complicações de 15,0%).O caso da laceração do ventrículo direito que motivou transferência inter-hospitalar para Cirurgia Cardíaca ocorreu no caso de uma doente de 96 anos na qual foi realizado procedimento emergente por referências anatómicas durante manobras de suporte avançado de vida por tamponamento cardíaco, ou seja, múltiplos factores que dificultaram a realização da técnica. De notar que não houve distúrbios arrítmicos nem qualquer morte relacionados com a realização da pericardiocentese.
Foi feito controlo ecográfico a todos os doentes, tendo sido objectivada recorrência do derrame pericárdico em 12,7% (n = 7), quase todos eles <7 dias após remoção da drenagem; o único caso de recorrência a 90 dias foi de um doente com derrame pericárdico neoplásico.
ANÁLISE DO LÍQUIDO PERICÁRDICO
Após estabelecer diagnóstico etiológico, comparou-se os achados da análise citoquímica do líquido com o que seria expectável para uma definição de transudado ou exsuda-do segundo os critérios de Light para o derrame pleural. A média do rácio LDH líquido/soro foi significativamente maior nos casos de exsudado (3,2 vs 1,3), mas semelhante quanto à média do rácio de proteínas líquido/soro (0,8 vs 0,9). Dos parâmetros adicionais pesquisados, verificou-se que o cut-off de ADA>5 0U/L para diagnóstico de tuberculose teve sensi-bilidade e valor preditivo negativo de 100% e especificidade de 76,9%; os casos em que se identificou ADA>50 U/L na ausência de tuberculose, tinham todos etiologia neoplásica.
O estudo microbiológico foi pedido em 89,6% (n = 43), tendo sido positivo em apenas 11,6% (n = 5) destes; nestes identificou-se Enterococcus spp resistente à vancomicina, Staphylococcus aureus meticilino-sensível, Staphylococcus aureus meticilino-resistente (2 casos) e Mycobacterium tuberculosis. Todos estes doentes tiveram hemoculturas positivas para o mesmo microrganismo.
Foi feito estudo citológico em 75,0% (n = 36), que não mostrou alteração em 38,9% (n = 14), nas restantes foram identificadas células inflamatórias em 19,4% (n = 7) e células malignas em 41,7% (n = 15); destas últimas, 10 eram de adenocarcinoma, 4 de carcinoma e 1 não discriminada.
ETIOLOGIA DO DERRAME PERICÁRDICO (TABELA 3)
A etiologia do derrame pericárdico foi identificada em 75,0% (n = 36), sendo que os restantes foram classificados como idio-páticos (16,7%; n = 8) ou indeterminados (8,3%; n = 4).
A causa mais comum foi neoplásica com 33,3% (n = 16), sendo quase todos os casos relacionados com neoplasia do pulmão e apenas 1 neoplasia oculta; em quatro destes casos, não existia diagnóstico prévio tendo sido esta a apresenta-ção clínica inicial. Seguiu-se a causa infecciosa com 22,9% (n = 11), correspondendo os casos de infecção bacteriana aos isolamentos microbiológicos referidos acima e maioritariamente com boa resposta à antibioterapia dirigida instituída; dos casos de tuberculose, apenas um foi identificado no exame cultural do líquido. Para além destes, houve quatro doentes com doença reumatológica activa (dois com lúpus eritematoso sistémico, um com púrpura trombocitopénica trombótica e outro com esclerose sistémica limitada variante CREST), um com insuficiência cardíaca terminal, um com doença renal crónica estadio V, um após cirurgia de substituição valvular mitral e dois traumáticos no contexto de acidente de viação e iatrogenia por cateter venoso central.
Dos seis doentes em que foi realizada pericardiocentese com intuito diagnóstico, em dois identificou-se células neoplásicas e o estudo subsequente revelou tratar-se de neoplasia do pulmão, um foi associado a insuficiência cardíaca terminal dada benignidade da análise do líquido, e nos res-tantes três não foi possível estabelecer diagnóstico permanecendo como idiopáticos.
SEGUIMENTO
Foi feita terapêutica adicional em 25,0% (n = 12) dos casos, nomeadamente antibacilares (n = 3), antibioterapia (n = 5), anti-inflamatórios (anti-inflamatórios não esteróides/colquicina/cor-ticoterapia) (n = 4), antiviral (n = 1) e pericardiotomia (n = 1). O único doente submetido a pericardiotomia tratava-se de um caso de derrame pericárdico idiopático recidivante; apesar de extenso estudo etiológico realizado por mais de uma vez, por permanecer inconclusivo nunca foi possível oferecer terapêutica dirigida, pelo que a janela pericárdica foi a única solução terapêutica possível. Foi feito follow-up até Junho de 2020, o que dá uma mediana de seguimento de 8 meses (de 0 a 63 meses), excluindo os óbitos, que ocorreram todos no primeiro ano de seguimento, os outros doentes foram seguidos por uma mediana de 41 meses. Verificou-se uma elevada mortalidade nestes doentes (37,5% a 30 dias, 56,3% a 1 ano, 75,0% a 3 anos e 93,8% a 5 anos), sobretudo nos doentes com etiologia neoplásica que tiveram uma média de sobrevivência de apenas 5,7 meses (Fig. 2).
Discussão
A pericardiocentese é uma técnica altamente específica e com riscos potenciais, sobretudo quando efectuada num con-texto emergente; tal torna extremamente importante minimizar os riscos associados a esta.1O objectivo deste estudo foi avaliar as medidas adoptadas pela equipa da Unidade de Cuidados Intensivos do nosso hospital na realização de pericardiocenteses. Tem-se vindo a verificar um aumento progressivo no número de procedimentos realizados por ano, o que reflecte uma maior experiência adquirida pelos médicos envolvidos associada ao uso rotineiro da ecocardiografia, que permite uma realização atempada do procedimento aos primeiros sinais de compromisso hemodinâmico. O facto do ecocardiograma ser realizado à vasta maioria de doentes admitidos na Unidade de Cuidados Intensivos e Intermédios, aumenta também a probabilidade de detecção de derrame pericárdico.
Pelo facto da abordagem ser dependente do operador, não houve uma via de acesso preferencial, tendo sido igualmente distribuída entre as vias subxifoideia e apical paraesternal esquerda; para além disso, foi variável a utilização de ecocardiograma para apoio ao procedimento. A existência de poucos procedimentos emergentes com tamponamento cardíaco relaciona-se com a prevalência das etiologias encontradas, salientando a preponderância das doenças neoplásicas com envolvimento mais insidioso, em comparação com a patologia infecciosa.
Verificou-se uma taxa de sucesso de 100% com apenas uma punção nos procedimentos ecoguiados tal como noutros estudos,10,18-21ao passo que a técnica por referências anatómicas implicou maior número de punções para obter sucesso em 20% dos casos, o que poderá traduzir-se num maior risco de complicações. Apesar da ausência de mortalidade associada ao procedimento, dada a existência de poucos procedimentos emergentes, a taxa de complicações foi relativamente elevada quando comparada com a maioria das outras séries (Tabela 4). Embora haja uma distribuição equitativa quanto à via de acesso, salienta-se a maior prevalência de complicações bem como as com maior gravidade potencial (laceração do ventrículo direito e fístula pleuropericárdica) em pericardiocenteses realizadas por referências anatómicas. Assim, estes achados são apoiados pelo referido universalmente pela literatura,1,4,5,7,9-15,18-23o que reforça a importância extrema do apoio rotineiro de ecocardiograma durante o procedimento de forma a optimizar a sua eficácia com segurança máxima para o doente, reduzindo o número de complicações por permitir a visualização contínua da ponta da agulha.
A pericardiocentese simples, sem colocação de dreno, tem sido associada a taxas de recorrência de 55%.22 Assim, é natural que a utilização de drenagem pericárdica após a punção inicial já seja uma prática recorrente, permitindo a evacuação completa ou quase completa do derrame pericárdico,7 com poucas complicações associadas e elevada eficácia (apenas um doente necessitou de intervenção cirúrgica). A recorrência de derrame pericárdico foi verificada em apenas sete doentes, mas num período que poderá parecer surpreendentemente curto. Apesar de drenagem vestigial, nestes casos verificou-se ecocardiograficamente resolução apenas parcial do derrame, o que levantou a suspeita de coagulação do circuito (pelo facto de serem todos líquidos hemáticos e pela utilização de dreno com calibre reduzido); efectivamente, após colocação de nova drenagem, houve rápida resolução do derrame.
O aspecto macroscópico hemático estava presente em quase todos os derrames de etiologia neoplásica, no entanto por esta característica também ocorrer nas outras etiologias, este parâmetro não deve ser tido em consideração para o diagnóstico.
Apesar de pedido em todos os doentes, conforme expectável por outros estudos17 a análise citoquímica do líqui-do pericárdico não permitiu extrapolar os critérios de Light do derrame pleural (Tabela 3). Efectivamente o rácio LDHp/LDHs foi > 0,6 em todos os doentes, no entanto verificou-se uma tendência para associação entre casos clássicos de exsudado (neoplasia e infecção) e rácio LDHp/LDHs>3; para além disso, o rácio LDHp/limite superior do normal LDHs foi sempre >2/3 mas igualmente nos mesmos casos clássicos de exsudado foi >4. Assim, embora o número de casos não permita estabelecer um cut-off com segurança, parece haver uma tendência para significância de LDH elevados no líquido pericárdico como casos de exsudados. Quanto ao pH e ao rácio de proteínas não houve diferenças relevantes entre os vários grupos etiológicos. O cut-off de ADA>50 U/L para diagnóstico de tuberculose teve sensibilidade e valor preditivo negativo elevados, pelo que será um parâmetro útil a pedir nesta suspeita clínica.
Os estudos microbiológicos foram positivos em apenas 11,6% dos doentes, no entanto esse valor corresponde a 62,5% (n = 5) dos doentes com derrame pericárdico causado por infecção não viral, ou seja, uma boa rentabilidade no isolamento de agente microbiológico.
Verificámos que foram identificadas células malignas nas citologias realizadas em 93,8% (n = 15) dos doentes com etiologia neoplásica. Embora a ausência de células neoplásicas não exclua um diagnóstico do foro oncológico, o facto de terem sido identificadas células neoplásicas em 2 doentes submetidos a pericardiocentese com intuito diagnóstico, mostra a vantagem de fazer estudo citológico a todos os doentes em que se decida a realização do exame.
A evolução clínica e o respectivo prognóstico dos doentes com derrame pericárdico varia sobretudo com a causa subjacente (Tabela 3). Nos doentes oncológicos, a taxa de sobrevivência foi substancialmente menor do que nas outras causas (5,7 vs 21,6 meses), o que faz pressupor a presença de derrame pericárdico como factor de mau prognóstico nestes doentes. Os doentes com etiologia indeterminada foram assim classificados por terem evoluído desfavoravelmente antes de ter sido possível obtenção de um diagnóstico. Por contabilizar poucos doentes, os doentes com derrame pericárdico por insuficiência cardíaca, pós-cirurgia cardíaca, trauma, urémia ou doença reumatológica não permitem inferir conclusões acerca da sobrevida.
COMPARAÇÃO COM OUTRAS SÉRIES (TABELA 4)
No estudo comparativo de outras séries de pericardiocen-teses, as principais diferenças têm que ver com o menor número de doentes no nosso estudo (em relação com a área de influência do hospital e ausência de algumas valências como Cirurgia Cardíaca e Politrauma; para além disso alguns dos estudos referidos eram multicêntricos) e com a percentagem de utilização de ecocardiograma durante a técnica (64% no nosso hospital, versus 100% nos restantes). Quanto os dados demográficos, similarmente tivemos um predomínio do sexo masculino e idade média entre a sexta e sétima décadas de vida. A taxa de sucesso da técnica foi próxima dos 100% em todos os estudos, sendo que, com um excepção de um estudo apenas com tamponamentos cardíacos,9a taxa de complicações foi maior no nosso hospital. Tal parece estar relacionado com a experiência inerente ao número de procedimentos realizados, bem como com a sistematização do uso do ecocardiograma.
LIMITAÇÕES DO ESTUDO
O facto de ser um estudo retrospectivo traz um viés na-tural ao estudo, sobretudo porque depende da qualidade dos registos clínicos efectuados. Para além disso, é impor-tante salientar o facto da técnica utilizada e o estudo adicional realizado ter sido dependente do médico e não parte de um protocolo completo pré-estabelecido; por exemplo, não foi utilizado polymerase chain reaction (PCR) para identificação de vírus cardiotrópicos para confirmação do diagnóstico de pericardite viral, nem doseamento sistemático de marcadores tumorais ou de autoimunidade, pelo que esses doentes podem ter sido incluídos nos doentes com pericar-dite idiopática.
Conclusão
A pericardiocentese guiada por ecocardiograma teve uma elevada taxa de sucesso associada a percentagem significativamente menor de complicações face à utilização de referências anatómicas, pelo que se defende a sua utilização em todos os procedimentos. Esta técnica tem um principal ob-jectivo terapêutico sobretudo nos derrames moderados a graves, visto que do ponto de vista diagnóstico apenas a ADA para os doentes com suspeita de tuberculose, os estudos culturais na suspeita de infecção não viral e a citologia para patologiaoncológica parecem ter utilidade; os critérios de Light para o derrame pleural não devem ser extrapolados para o derrame pericárdico.
Dentre as etiologias subjacentes, as neoplasias foram a causa mais comum, salientando-se mortalidade mais elevada a curto prazo nestes doentes pelo que o derrame pericárdico deve ser considerado um factor de mau prognóstico.
A elaboração de um protocolo quanto à técnica utilizada para as pericardiocentese, bem como quanto ao pai-nel de testes diagnósticos a pedir poderá trazer vantagens na redução de complicações e/ou recorrência; de qualquer forma, não podemos esquecer as peculiaridades de cada doente e respectiva situação clínica que deverão implicar a adaptação do mesmo sempre que necessário.