Introdução
A infeção por SARS-CoV-2, decretada doença pandémica em Março de 2020 pela Organização Mundial de Saúde (OMS),1 levou ao aumento da pressão assistencial sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e condicionou uma profunda estruturação nas instituições hospitalares e de cuidados primários motivada pela necessidade de mobilização de médicos e outros profissionais para o combate à doença pelo novo coronavírus 2019 (COVID-19).
Este facto, aliado à tentativa de contenção da transmissão de infeção2-5com implementação de medidas que privilegiam distanciamento social, levou a que fossem recomendadas e adotadas medidas alternativas de prestação de cuidados às doenças crónicas nomeadamente através do recurso à Tele-medicina (TM) para realização de consultas externas.6-10
A TM, descrita inicialmente em 189711 e implementada em Portugal há mais de duas décadas (essencialmente em projetos piloto)12,13é definida pela OMS como a prestação de cuidados de saúde, à distância e em tempo real, por qualquer profissional de saúde, com recurso à utilização de tecnologias de informação e comunicação que permitem a troca de informação para o diagnóstico, tratamento e prevenção de doença.14,15
Tendo sido previamente estudada a sua aplicação em doenças crónicas como diabetes, hipertensão, insuficiência cardíaca e algumas doenças pulmonares,16,17a TM mostrou ser vantajosa não só na redução de custos e da necessidade de deslocação, mas também na melhoria do acesso a cuidados médicos permitindo uma melhor estabilização das patologias crónicas, evicção da interrupção da terapêutica prescrita e redução do número de admissões no serviço de urgência. Estes benefícios contribuem para a capacitação do doente na gestão da sua patologia crónica e para um melhor prognóstico.18-20
Na revisão bibliográfica são apontadas como principais li-mitações da implementação da TM os potenciais riscos de quebra de confidencialidade e privacidade bem como a disrupção da relação médico-doente com diminuição da em-patia e proximidade e impossibilidade de realização de um adequado exame físico. Estes fatores podem culminar na impossibilidade de estabelecer um diagnóstico correto e de escolher o melhor regime terapêutico.14,21
A satisfação face aos cuidados recebidos associa-se a uma melhor adesão às recomendações terapêuticas, ao fortalecimento da relação médico-doente e a um melhor prognóstico global.18,22
O aumento da utilização da TM implica a manutenção da satisfação dos doentes sendo esta um forte indicador de que a mudança na prestação de cuidados corresponde às espectativas e valores dos doentes.18
Os doentes e as suas famílias são a fonte de informação mais fiável e mais adequada para reportar a satisfação com os cuidados médicos.18
Foram previamente desenvolvidos vários questionários de avaliação de satisfação por parte dos doentes face às consultas por TM que estudam diversas dimensões:
“Qualidade técnica”, “Aspetos económico-financeiros”, “Comunicação”, “Tempo com o médico”, “Relação Interpessoal”, “Privacidade”, “Semelhança à consulta presencial” e “Satisfação Geral”.17
Os autores pretendem avaliar a satisfação dos doentes em relação aos cuidados prestados na consulta telefónica de Medicina Interna (MI) e a sua vontade de manutenção desta tipologia de consulta no futuro.
Material e Métodos
Trata-se de um estudo observacional, descritivo-explora-tório de abordagem qualitativa.
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica com identificação dos questionários22-25mais utilizados para avaliar a satisfação com a TM. Estes questionários são principalmente adaptados à realidade americana com o recurso à vídeo-consulta.
Devido à necessidade de rápida adaptação da instituição em que o presente estudo foi realizado, as consultas à distância foram exclusivamente telefónicas. Assim verificou-se a ne-cessidade de criação de um questionário adaptado à nossa realidade (Tabela 1) que mostrou ter boa consistência interna e fiabilidade (alfa de Cronbach de 0,8).
Foi mantida a ênfase na avaliação das oito dimensões utili-zadas nos estudos validados através de 16 perguntas. Foram ainda adicionadas duas perguntas que avaliam a vontade do doente em relação à tipologia da consulta a ser realizada no futuro, garantindo a ausência de qualquer carácter vinculativo desta resposta (a tipologia de consulta é definida exclusiva-mente pelo médico assistente ou a pedido do próprio doente, não tendo os autores qualquer interferência nesta escolha). Não foi registado qualquer tipo de informação no processo clínico informático.
As perguntas do questionário são de resposta fechada dicotómica para avaliação da qualidade técnica e aspetos económico-financeiros e em matriz para as perguntas de satisfação, com aplicação da escala Likert (1. Discordo totalmente, 2. Discordo, 3. Não concordo nem discordo, 4. Concordo, 5. Concordo totalmente ou 1. Muito insatisfeito, 2. Insatisfeito, 3. Nem satisfeito nem insatisfeito, 4. Satisfeito, 5. Muito Satisfeito).
Sempre que necessário foram permitidas explicações por parte dos investigadores para uma melhor compreensão das questões.
Foram ainda colhidos dados demográficos através da en-trevista telefónica (idade e género) e da avaliação do processo clínico informático para determinação da duração de seguimento em consulta.
O questionário foi aplicado através de chamada telefónica, para o contacto disponível no processo informático, após explicação dos objetivos do estudo, garantia de confidencialidade e consentimento verbal do inquirido. A investigação foi conduzida de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial, revisão de 2013.
Sempre que possível o questionário foi aplicado ao doente em estudo ou em alternativa ao familiar que havia sido o interlocutor durante a consulta telefónica alvo de avaliação de satisfação.
Foram incluídos no estudo todos os doentes que tiveram consulta telefónica de MI em Setembro de 2020. O questionário foi aplicado em Novembro de 2020.
Foram excluídos todos os doentes que tiveram consulta presencial durante o período do estudo, aqueles que não atenderam o telefone para a consulta ou para realização do questionário e os doentes em que a avaliação do processo clínico informático não permitiu garantir que a consulta havia sido telefónica. Foram ainda excluídos todos os doentes que tiveram consulta de subespecialidades da Medicina Interna.
Para minimizar os efeitos deletérios descritos as consultas telefónicas foram implementadas apenas após pelo menos uma consulta presencial.
O objetivo principal do estudo é avaliar o grau de satisfação dos doentes com a consulta telefónica de Medicina Interna. É objetivo secundário avaliar a vontade dos doentes em manter esta tipologia de consulta no futuro.
Foi utilizado o software SPSS® 23.0 (IBM, USA) para avaliação da consistência interna e fiabilidade da escala utilizada, realização de estatística descritiva e cálculo do score total de satisfação (soma da pontuação obtida nas perguntas de satis-fação com valor mínimo possível de 9 e máximo de 45 pontos). As variáveis contínuas foram apresentadas em média, valor mínimo e valor máximo e as variáveis categóricas em frequência absoluta e relativa (percentagem).
A correlação entre o tempo de seguimento em consulta de MI e o impacto negativo da consulta telefónica na relação médico-doente foi estudada com o coeficiente de correlação de Spearman. Foi utilizado o teste exato de Fisher para determinação da influência da possibilidade de acesso à Internet na vontade de realização de vídeo-chamada e o teste Qui-quadrado para determinação do impacto da atual pandemia na escolha da tipologia de consul-ta no futuro. Assumiu-se significância estatística para p < 0,05.
Resultados
Do total de consultas de MI realizadas em Setembro de 2020 (n = 369) foram excluídas as consultas presenciais (n = 204), aquelas em que não foi possível garantir que a con-sulta havia sido telefónica e as que o doente não atendeu o telefone para a consulta (n = 66). Houve ainda um grupo de doentes (n = 18) que não atendeu o telefone para a realização do inquérito.
O questionário foi realizado a 81 doentes. A idade média foi de 67,9 anos (mínima de 22 anos e máxima de 92 anos) com um predomínio do género masculino (43 doentes, 53,1%). A maioria dos inquéritos foi respondida pelo próprio doente (n = 58, 71,6%), tendo os restantes sido realizados com um cônjuge (n = 5, 6,2%), filho (n = 15, 18,5%) ou cuida-dor informal (n = 3, 3,7%).
A maioria dos doentes é seguida em consulta de MI há mais de 1 ano (Fig. 1).
SATISFAÇÃO COM AS VÁRIAS DIMENSÕES DA CONSULTA TELEFÓNICA
Qualidade técnica: A maioria dos doentes não teve pro-blemas com as condições técnicas da consulta telefónica tendo 96,3% (n = 78) ouvido o médico de forma clara, sem qualquer interrupção da consulta em 93,8% dos casos (n = 76). Apenas 28 doentes (34,6%) gostariam de ter consulta por vídeo-chamada, apesar de 42 (51,9%) dos inquiridos referir ter possibilidade de acesso à Internet em dispositivo capaz de a realizar. A possibilidade de acesso à Internet não foi fator significativo na vontade de realização de vídeo-chamada (p < 0,01)
Aspetos económico-financeiros: A consulta telefónica foi considerada benéfica em termos económicos para 51 doentes (63,0%) contribuído ainda para evitar ausência do local de trabalho de 13 doentes (44,8% do total de doentes com pro-fissão ativa, n = 29) ou de um familiar que tivesse que acom-panhar o doente em 43,2% dos casos (n = 35).
Comunicação: No que diz respeito à comunicação com o profissional de saúde durante a consulta telefónica 51 doentes (63,0%) concordam e 26 doentes (32,1%) concordam totalmente com o facto de se terem conseguido expressar adequadamente assim como 79 doentes (97,5%) concordam/concordam totalmente que o médico se expressou de forma compreensível.
Tempo com o médico: A maioria dos doentes concorda (48 doentes, 59,3%) que a consulta telefónica teve uma du-ração adequada para resolver os seus problemas de saúde.
Relação interpessoal: Apesar de a maioria dos doentes discordar (n = 48, 59,3%) que a consulta telefónica possa ter impacto negativo na relação médico-doente, vinte e três (28,4%) doentes consideram que este é um potencial risco relacionado com esta tipologia de consulta. Não foi encontrada correlação com o tempo de seguimento em consulta de MI (r = -0,16; p = 0,13).
Privacidade: O receio no compromisso da privacidade não foi um problema levantado pela maioria dos doentes (95,1%).
Semelhança à consulta presencial: Foi obtida a opinião dos inquiridos em relação à semelhança da consulta telefónica com uma consulta presencial (Fig. 2). É importante destacar que dos 51 doentes que concordam com a semelhança entre as duas tipologias de consulta, 23 indivíduos (45%) referiram espontaneamente a importância do exame objetivo, destacando-o como relevante diferença entre a consulta telefónica e presencial.
Satisfação geral: Setenta doentes (86,4%) concordam/concordam totalmente (59,3% e 27,2% respetivamente) que a consulta telefónica permitiu ter os cuidados de saúde que necessitavam. Setenta e dois doentes (88,9%) concordam/concordam totalmente que a consulta telefónica é uma forma aceitável de receber cuidados de saúde.
Em termos de satisfação geral a maioria dos doentes revelou estar satisfeito (n = 60, 74,1%) ou muito satisfeito (n = 10, 12,3%) com a consulta telefónica (Fig. 3).
O cálculo do score de satisfação total revelou uma média de 36,0 pontos (desvio padrão ± 4,1pontos) com um mínimo obtido de 21 pontos e um máximo de 44 pontos.
No que diz respeito à tipologia de consulta que gostariam de ter no futuro, influenciada pela manutenção ou ausência do risco de contágio e das medidas preventivas associadas à pandemia, verificou-se que a manterem-se estas condições a maioria dos doentes preferia ter consulta telefónica no futuro (n = 47, 58,0%). Por outro lado, caso os riscos da pandemia cessassem apenas 11 doentes preferiam ter consulta telefónica. Esta diferença é estatisticamente significativa (p < 0,01) (Fig. 4).
Discussão
A rápida disseminação da infeção por SARS-CoV2 levou a um recurso nunca antes visto à TM para prestação de cuidados aos doentes de ambulatório. Esta alteração de estratégia teve de ser implementada de forma rápida desconhecendo-se o impacto na satisfação dos doentes face a esta tipologia de consulta.6
Em Portugal, na maioria das instituições hospitalares, na qual a nossa se inclui, esta tipologia de consulta não era utilizada de forma transversal.13 Foi adotada a consulta telefónica por ser uma modalidade de fácil utilização e amplamente disponível quer para os doentes quer para os profissionais de saúde.
Este artigo apresenta uma proposta de um novo questionário de satisfação que foi criado para se adaptar o melhor possível à realidade existente no nosso país e que revelou ter uma boa fiabilidade podendo ser uma importante ferramenta para avaliação da satisfação no futuro. Seria relevante a sua implementação numa população mais numerosa e em diversas instituições hospitalares.
Na avaliação das condições técnicas verificamos a ausência de problemas com a utilização de chamadas telefónicas permitindo ao doente ouvir o médico de forma clara e utilizar a consulta telefónica de forma eficaz para esclarecer os seus problemas de saúde destacando uma comunicação adequada e compreensível entre os interlocutores.
Contrariamente ao que seria esperado pelos autores, apenas cerca de um terço dos doentes gostaria de poder realizar a consulta através de vídeo-chamada, independentemente da possibilidade de acesso à Internet.
A consulta telefónica foi benéfica não só em termos económicos por ausência de custos de deslocação e parqueamento, mas também pela possibilidade de redução do número de horas de abstenção do local de trabalho dos doentes ou dos seus familiares/cuidadores.
A MI é classicamente uma especialidade generalista, multidisciplinar, tendencialmente complexa e que privilegia a proximidade com o doente reconhecendo a importância deste contacto na colheita da história clínica e dados semiológicos, aspetos fulcrais para uma adequada marcha diagnóstica.7 De uma forma geral os inquiridos concordam com a semelhança entre os cuidados prestados por consulta telefónica ou na consulta presencial, contudo os autores consideram relevante destacar que para muitos doentes o exame objetivo é apontado de forma espontânea como um ponto muito importante da consulta médica. Os autores consideram que este fator deve ser tido em conta na implementação continuada da TM, podendo o seu impacto ser minimizado com a alternância entre consultas presenciais e consultas à distância.
Aspetos muitas vezes identificados como problemáticos na aplicação da TM como um possível compromisso quer da privacidade quer da relação médico-doente não foram particularmente relevantes para os indivíduos em estudo. Os autores levantam a hipótese de que a salvaguarda da existência de pelo menos uma consulta presencial antes da implementação de consulta telefónica possa ter contribuído para diminuir o potencial efeito deletério da consulta à distância.
De uma forma global os doentes mostraram-se satisfeitos com a consulta telefónica, traduzindo-se em altos scores totais de satisfação e na aceitação da consulta telefónica como forma alternativa de receber cuidados de saúde.
Importa destacar que, quando questionados em relação à vontade de manutenção desta modalidade no futuro, a resposta está significativamente relacionada com a manutenção das medidas de contenção de infeção adotadas durante a pandemia bem como do risco de contágio.
Assim os autores levantam a hipótese de que a satisfação global demonstrada e o facto da maioria dos doentes pretender manter consulta telefónica caso se mantenham os riscos associados à pandemia poderão prender-se não só com uma boa experiência com a tipologia de consulta, mas também com a renitência em criticar um serviço considerado necessário para manter os cuidados de saúde em contexto pandémico. Estas questões carecem de investigação mais detalhada no futuro.
Como principal limitação destacamos a pequena dimensão da amostra para o estudo de um tema tão importante para a reorganização do SNS. Esta dimensão poderá ter sido reduzida pelo período do estudo (Setembro de 2020) em que após um abrandamento do número médio de novos casos diários durante os meses de verão poderá ter levado a que os clínicos optassem por um maior número de consultas presenciais. Por sua vez, a realização do questionário em Novembro de 2020, mês em que se verificou um aumento do número de casos de infeção por SARS-CoV-2,26 poderá ter tido impacto na escolha da tipologia de consulta no futuro.
Conclusão
A implementação da TM na consulta de Medicina Inter-na durante a atual pandemia permite manter os cuidados de saúde dos doentes crónicos. O estudo mostra uma elevada satisfação por parte dos doentes em relação aos cuidados prestados por consulta telefónica, parecendo ser uma estratégia promissora.
A manutenção da satisfação com a TM após o término ou amenização dos riscos de pandemia deverá ser estudado no futuro.