Introdução
A pandemia COVID-19 teve um impacto inigualável na vida de todos. Os riscos inerentes à infeção pelo SARS-CoV-2 e o receio de rutura dos sistemas de saúde, obrigaram os países a fecharem portas e a implementar rigorosas medidas de contingência. Os serviços foram reorganizados de modo a poderem dar resposta às possíveis consequências da pandemia, o que se traduziu no adiamento de consultas, exames complementares de diagnóstico e cirurgias. Por outro lado, o medo instalou-se e com ele uma redução da procura dos cuidados de saúde e consequente diminuição considerável no número de episódios de urgência.1-3
Neste contexto, importa refletir ainda sobre as consequências desta devastadora pandemia na mortalidade registada no nosso país. De acordo com os dados do Sistema de Informação e Certificado de Óbitos, durante o período de 18 de março a 22 de junho de 2020, foram contabilizados 31 243 óbitos ao nível nacional, 3 952 óbitos acima da média dos últimos 10 anos (2009-2019).4 Este acréscimo de mortalidade não pode ser totalmente explicado pela infeção pelo SARS-CoV-2 e é merecedor de reflexões várias.5
O estudo de Olabi B et al analisou a mortalidade em sete países europeus durante a primeira vaga da pandemia. Concluíram que a taxa de mortalidade por COVID-19 foi reduzida, inferior a 0,2% em todos os grupos etários abaixo dos 80 anos. Em Portugal, as mortes por COVID-19 nos doentes com idade superior a 80 anos representaram 0,2% nos homens e 0,15% nas mulheres.6
Durante este período, por forma a proporcionar melhores cuidados de saúde à população da região Centro, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra dedicou a urgência do Hospital Geral (HG) à COVID-19, procurando aí admitir os doentes que apresentassem sintomatologia suspeita.
Assim, entendeu-se ser oportuno comparar a população de doentes que faleceram durante a permanência no Serviço de Urgência do HG durante o período em que esteve dedicado, em exclusivo, ao atendimento de doentes com suspeita de infeção por SARS-CoV-2, com igual período de 2019. Não obstante a alteração da tipologia da urgência, condicionando necessariamente as admissões, avaliámos o impacto da pandemia na taxa de mortalidade e, dentro do possível, procurámos explicações para as diferenças encontradas.
Material e Métodos
Foi realizado um estudo retrospetivo observacional no Serviço de Urgência (SU) do Hospital Geral do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Foram selecionados os processos de todos os doentes que faleceram durante a permanência no SU no período compreendido entre 18 de março e 22 de junho de 2019 e de 2020 e analisadas as cartas de alta do sistema ALERT de todos os doentes, incluindo dados clínicos e analíticos. Foram excluídos os doentes falecidos em 2019 que não cumpriam os critérios de admissão no SU impostos em 2020. As variáveis estudadas foram: sexo, idade, proveniência, grau de dependência (classificado quanto à realização das atividades de vida diária em autónomo, parcialmente dependente ou totalmente dependente); analisaram-se ainda as comorbilidades: hipertensão arterial (HTA), diabetes mellitus, insuficiência cardíaca (IC), doença renal crónica (DRC), antecedentes de acidente vascular cerebral (AVC), demência, neoplasia, patologia respiratória crónica, para além de alectuamento, presença de sonda nasogástrica e/ou sonda vesical, parâme-tros analíticos (leucócitos, proteína C-reativa, procalcitonina, d-dímeros, creatinina), presença de insuficiência respiratória à admissão, alterações na radiografia do tórax, diagnóstico principal e tempo total de permanência no SU.
O tratamento estatístico dos dados foi efetuado com recurso ao programa da IBM SPSS, versão 26. Realizou-se uma análise descritiva das variáveis, com caracterização da média, mínimo, máximo e desvio-padrão. Para comparação de va-riáveis contínuas foram utilizados testes paramétricos (teste t de Student), para variáveis que apresentavam uma distribui-ção normal, e não paramétricos (teste U de Mann-Whitney), se esta condição não se verificasse. Utilizámos o teste qui-quadrado para comparação de variáveis categóricas. Diferenças entre as variáveis estudadas para valores de p < 0,05 foram consideradas significativas.
Resultados
No ano de 2019, foram contabilizados 9716 episódios de urgência durante o período temporal selecionado. Destes, 33 doentes faleceram durante a permanência no SU, o que corresponde a uma taxa de mortalidade de 0,34%. No mesmo período do ano de 2020, foram contabilizados 5233 episódios, tendo falecido 99 doentes, correspondendo a 1,89% de taxa de mortalidade.
Os dados demográficos e clínicos dos doentes podem ser consultados na Tabela 1.
Verificou-se um predomínio de doentes do sexo feminino em ambos os anos (57,6% em 2019 e 56,6% em 2020, p = 0,92). A idade média dos doentes foi de 86,7 (min 51, máx 98, dp ±10,55) em 2019 e 85,34 (min 52, máx 103, dp ± 8,83) em 2020, não se verificando diferença estatisticamente significativa neste parâmetro (p = 0,12) (Fig. 1).
Quanto ao grau de dependência, verificou-se que em 2019, 14,8% dos doentes eram autónomos, 25,9% parcialmente dependentes e 59,3% totalmente dependentes. Em 2020, apenas 9,6% dos doentes eram autónomos, 17% eram parcialmente dependentes e a grande maioria (73,4%) eram totalmente dependentes. No entanto, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os grupos correspondente a cada ano analisado (p = 0,37).
Relativamente à proveniência dos doentes, também não foram encontradas diferenças relevantes. Em 2019, 36,7% provieram do domicílio e 63,3% de lar. Em 2020, 46,5% dos doentes provieram de domicílio, 47,5% de lar e 6,1% de unidades de cuidados continuados.
Quanto à presença de comorbilidades, comparando os anos de 2019 e 2020, não foram encontradas diferenças em relação à presença de HTA (66,7 % vs 67,4%, p = 0,94), diabetes mellitus (27,3% vs 38,5%, p = 0,24), insuficiência cardíaca (33,3% vs 46,9%, p = 0,18), DRC (21,2% vs 17,7%, p = 0,65), antecedentes de AVC (27,3% vs 26%, p = 0,89), antecedentes de neoplasia (33,3% vs 32,3%, p = 0,84), antecedentes de patologia respiratória (33,3% vs 21,9%, p = 0,19), ser portador de sonda vesical (22,2% vs 18,3, p = 0,15) e ser portador de sonda nasogástrica (10,7% vs 26,4%, p = 0,18) (Fig. 2).
O teste qui-quadrado mostrou diferença entre os dois anos quanto à presença de demência (30,3% em 2019 vs 52,1% em 2020, p = 0,03) e alectuamento (48,1% em 2019 vs 69,6% em 2020, p = 0,04).
Relativamente à presença de insuficiência respiratória à admissão no SU, constatou-se diferença estatisticamente significativa entre os dois anos (p = 0,001) com 75,9% dos doentes em 2019 e 95,7% em 2020. No entanto, não se verificou diferença na presença de alterações na radiografia do tórax (75,8 % em 2019 vs 70,4% em 2020, p = 0,91).
Também não foram encontradas diferenças significativas nos parâmetros analíticos avaliados. De notar que, embora se tratem de variáveis relevantes, devido à inexistência de dados relativos a valores de procalcitonina e d-dímeros em 2019 (dado que estes parâmetros não eram pedidos de forma sistemática a essa data), não foi possível tal comparação.
Em 2020, a grande maioria dos doentes falecidos realizou a zaragatoa de pesquisa do vírus SARS-CoV-2 (n = 92, 92,2%). Destes, apenas quatro doentes apresentaram resultado positivo (4,3%).
Quanto ao tempo de permanência no SU, ou seja, ao tempo decorrido entre a admissão do doente e o seu falecimento, verificou-se diferença significativa entre os dois grupos (p < 0.01), com tempo médio de permanência de 56h58 min (dp ±55h53) em 2019 e de 11h54 min (dp ±9H52) em 2020 (Fig. 3).
O diagnóstico mais prevalente em 2019 foi a sépsis e o choque séptico (36,4%), seguido das infeções respiratórias (18,2%) e doenças do foro cardiovascular (18,2%). Já em 2020 o diagnóstico mais frequente foi a infeção respiratória (41,4%), seguido de paragem cardiorrespiratória (17,2%) e neoplasia (8,1%), suspeita de infeção COVID-19 (8,2%) e sépsis e choque séptico (8,2%) (Fig. 4).
Discussão
De acordo com os resultados obtidos, há uma redução para quase metade nos episódios de urgência em 2020. Esta diminuição é consistente com dados nacionais que revelam uma redução de 45% no número de episódios de urgência no mês de março, comparativamente com o ano anterior.1 Isto pode ser explicado pela relutância dos doentes em recorrer ao SU por receio de contrair a infeção pelo SARS-CoV-2, pela consciência moral de não sobrecarregar os serviços que estão concentrados na resposta à pandemia e/ou por limitações de deslocação.1
Importa salientar que, no nosso estudo, a tipologia do SU foi diferente nos dois anos comparados. Em 2019, este SU dispunha de um atendimento a doentes médicos e cirúrgicos e contava com equipa de Medicina Interna, Cirurgia Geral e Ortopedia. Em 2020, houve uma reorganização da equipa e do espaço físico da Urgência de modo a prestar melhores cuidados aos doentes com suspeita de infeção por COVID-19. Deste modo, deixaram de estar disponíveis as valências cirúrgicas e passaram a ser apenas admitidos doentes com febre ou sintomatologia respiratória. No entanto, de modo a uniformizar os grupos estudados, permitindo a sua comparação, foram excluídos todos os doentes falecidos em 2019 que não cumpriam os critérios de admissão ao SU impostos em 2020.
Apesar da referida menor afluência ao SU, não foram encontradas diferenças significativas nas variáveis de caracterização (sexo, idade, proveniência, grau de dependência), tornando, assim, os grupos comparáveis.
Não obstante, a taxa de mortalidade observada em 2020 foi mais de 4 vezes superior à registada no mesmo perío-do de 2019. Sem dúvida que, comparando as duas amostras de doentes no que diz respeito às respetivas patologias crónicas, o grau de dependência e alectuamento são os critérios mais preponderantes na tentativa de justificar esta diferença de mortalidade. De facto, foram mais de 70% os doentes admitidos no SU em 2020 com total dependência para as atividades de vida diária, a maioria confinados ao leito, o que, necessariamente, denuncia o seu maior grau de fragilidade e a escassa reserva funcional para enfrentar intercorrências agudas.
Nesta sequência, e ainda que sem tradução imagiológica importante, quando comparados os dois anos, a esmagadora maioria dos doentes admitidos em 2020 no SU (95,7%), apresentavam insuficiência respiratória com necessidade de oxigenoterapia suplementar à admissão.
Para além desta constatação relevante, outro aspeto a merecer apreciação é o muito menor intervalo de tempo entre a admissão e o falecimento dos doentes admitidos durante a pandemia em 2020, quando comparado com os do ano anterior o poderá traduzir, uma vez mais, a extrema gravidade dos quadros aquando da admissão hospitalar.
Da totalidade de zaragatoas efetuadas aos doentes falecidos durante a permanência em SU, cumprindo as recomendações da DGS vigentes àquela data (DGS - Norma nº 004/2020 de 23/03/2020),7apenas cerca de 4% apresentaram teste positivo, todos estes com quadros respiratórios graves. Naqueles falecidos com teste negativo, a causa de morte mais prevalente foi, igualmente, a infeção respiratória, por vezes complicada com sépsis e choque séptico.
Conclusão
Os óbitos verificados em 2020 no SU ocorreram em doentes mais vulneráveis e com doença mais grave. Admite-se que tenha sido a procura mais tardia por cuidados hospitalares, particularmente na agudização de doenças crónicas, a condicionar, de forma irreversível, este desfecho. O número de mortes passível de ser atribuído à COVID-19 é ínfimo, merecendo reflexão e readaptação de boas práticas que assegurem que os doentes sejam admitidos nos SU dentro dos tempos preconizados e levando em considera-ção as suas patologias crónicas.
Não obstante as conclusões que emergem do estudo que agora se apresenta, importa ressalvar que são necessários outros estudos, particularmente de índole comparativa, envolvendo vários SU dos diversos centros hospitalares intervenientes no combate a esta pandemia. Só assim serão alcançadas justificações mais rigorosas e robustas para as diferenças de mortalidade apuradas neste trabalho, permitindo que eventuais lacunas nas abordagens sejam colmatadas em situações futuras, beneficiando todos os intervenientes, profissionais de saúde, e acima de tudo, os doentes.