Introdução
Apresentamos o caso de uma doente de 22 anos de idade que recorreu ao Serviço de Urgência (SU) em 08/2018 por dor lombar esquerda muito intensa.
Tinha como antecedentes relevantes: apendicectomia laparoscópica e menarca aos 11 anos; interrupção voluntária de gravidez aos 21 anos. Sem antecedentes de doenças crónicas, de litíase renal ou alterações anatómicas estruturais/funcionais do trato genito-urinário conhecidas. Sob contraceção oral com progestativo.
A jovem referia dor lombar esquerda de intensidade segundo escala numérica de 8/10, refratária apenas aliviada com recurso a opióides, de início súbito e intensidade crescente, associada a febre elevada (>39ºC), náuseas e anorexia, geralmente a preceder a fase pré-menstrual. A dor agravava com a micção, movimento e com o ortostatismo, aliviando parcialmente em decúbito. Referia por vezes sintomas genitourinários tais como disúria, poliaquiúria, urgência miccional, dor pélvica e dispareunia. Negava alterações do trânsito gastrointestinal e sintomas constitucionais.
Ao exame físico, apresentava Murphy renal positivo à esquerda, sem irradiação de dor, palpação abdominal indolor, sem organomegalias, irritação peritoneal ou ascite. O exame ginecológico foi descrito como: toque vaginal não doloroso, áreas anexiais livres e não dolorosas. Restante exame físico sem alterações. O estudo analítico apresentava hemograma, função renal e ionograma sem alterações, β-HCG negativa, parâmetros inflamatórios limítrofes para infeção esedimento urinário sem achados sugestivos de infeção ou hematúria. Realizou uma ecografia transvaginal evidenciando útero anterovertido de dimensões normais, endométrio linear e ovários esquerdo e direito sem alterações
Analisamos a história pregressa da doente e verificamos múltiplas vindas ao SU desde os 11 anos, com clínica sobreponível, em agravamento, sobretudo entre 2017-2018, com vindas praticamente mensais. Os diagnósticos prévios apontavam para cólicas renais, pielonefrites e cistites agudas, dado a semelhança de apresentação clínica. A doente foi submetida a diferentes ciclos de antibioterapia, apesar de, analiticamente, não se observar elevação de parâmetros inflamatórios, litíase renal em imagem ou sedimento urinário/uroculturas positivas. A periodicidade da dor tinha relação com fase perimenstrual, ficando assintomática dias após a menstruação e durante parte do novo ciclo. Foi observada por Ginecologia diversas vezes que excluía causa ginecológica que justificasse a clínica, com exame físico e ecografias transvaginais descritas como normais.
A doente foi admitida a internamento no Serviço de Medicina Interna para controlo álgico e investigação subsequente. Realizamos uma angiografia por tomografia computadorizada abdominopélvica (Fig. 1) e angiografia por ressonância magnética pélvica subsequente (Fig. 2), com referência a alterações nos vasos pélvicos à esquerda, que confirmaram o diagnóstico clínico de síndrome de congestão pélvica secundário a síndrome de nutcracker, tendo sido referenciada para consulta de Cirurgia Vas-cular. Iniciou terapêutica médica com bioflavonoides em altas doses para controlo da congestão venosa, com efeito parcial no alívio dos sintomas até intervenção cirúrgica, motivo pela qual não foi realizado ecografia com Doppler (ECO-Doppler) dos vasos abdominopélvicos, dada a indicação cirúrgica inequívoca que a doente apresentava quer pela clínica, quer pelos achados imagiológicos já obtidos.
Foi submetida a embolização da veia gonadal esquer-da por angioplastia da veia renal esquerda, realizada a 06/08/2019 com reintervenção a 02/03/2020. Permaneceu assintomática até 06/2020 quando, por novos episó-dios de dor lombar, foi necessário um autotransplante renal com reinserção na fossa ilíaca esquerda, dado evidência de divisão anómala da veia renal esquerda com inserção ao polo inferior do rim homolateral, a provocar disfunção de órgão, constatada no perioperatório por venografia e descrita no relato cirúrgico (imagens não disponíveis). Por complicações associadas ao pós-operatório, a doente mantém seguimento em Cirurgia Vascular e Urologia, mas sem dor lombar desde a cirurgia.
Discussão
A dor lombar esquerda e o varicocelo são achados típi-cos do SN, descritos em 38% e 35,7%, respectivamente, induzidos pela hipertensão renal resultante e relacionados com o desenvolvimento de circulação colateral.2,5-7Ao caso clínico, acresce a existência da congestão pélvica que con-tribuía para o agravamento na fase perimenstrual e a intolerância ao ortostatismo.
A história clínica e o exame físico levaram-nos a diagnósticos diferenciais que incidiam em focos infeciosos ou litiásicos, dada a sintomatologia altamente sugestiva, com náuseas, febre e dor lombar de elevada intensidade. A pouca frequência de sintomas urinários inferiores e a associação da dor com o ciclo menstrual pela provável ingur-gitação das veias gonadais, fez-nos incluir diagnósticos do foro ginecológico com as imagens resultantes a demonstrar anomalias nos vasos pélvicos. A história natural desta síndrome permanece por esclarecer. Inferimos que no caso apresentado, esta patologia já apresentasse anos de evolução, face às múltiplas vindas ao longo do tempo.
A abordagem diagnóstica carece de critérios específicos, dificultada pela sobreposição com outras patologias. São usa-dos exames de imagem como ECO-Doppler, tomografia computorizada e ressonância magnética abdominal e venografia retrógrada.1,4,8,9Para além das alterações imagiológicas mais comuns nesta síndrome, neste caso a SN anterior (Fig. 3), a doente apresentava ainda uma variante com a duplicação da veia renal esquerda e inserção de uma das suas confluentes no polo inferior do rim esquerdo condicionando o funcionamento deste e o insucesso das angioplastias efetuadas. O tratamento é variável mediante a apresentação e gravidade do doente.1-3,8,9A interdisciplinaridade foi importante, pois estes doentes são observados por especialidades médicas devido aos diagnósticos mais prováveis e é necessário um elevado nível de suspeição para evitar diagnósticos tardios e consequências na qualidade de vida do doente.
Conclusão
A síndrome de nutcracker é uma anomalia anatómica rara, mas com sintomas muito frequentes noutras entidades médicas. A ausência de resposta ao tratamento conservador e a recorrência dos sintomas sem achados imagiológicos a sugerir outras patologias, deve levar o clínico a considerar não só a exploração das patologias mais comuns, mas também do território vascular subjacente.