O futuro próximo está carregado de incerteza e os desafios que a nossa sociedade enfrenta em todos os domínios - incluindo na prestação dos cuidados de saúde - são imensos.
A humanidade está perante várias ameaças: as alterações climáticas, a degradação ambiental, a sobrepopulação, o esgotamento dos recursos naturais, as armas nucleares, a crise económica, o crescimento dos regimes autocráticos e a iniquidade na distribuição da riqueza, entre outros.
Sabíamos do risco do aparecimento de uma nova pandemia mas, apesar disso, esta emergência evidenciou a falta de preparação do sistema público de saúde e destapou as suas fragilidades, entre as quais se destacam um progressivo de-sinvestimento, a insuficiência de recursos humanos, a falta de funcionamento das redes de cuidados, a falta de comunicação e integração de cuidados, o atraso nos equipamentos e sistemas de informação, a inadequação dos modelos de cuidados e a falta de ciência a acompanhar as decisões políticas.
Todos estes problemas aconteceram no nosso país, mas foram transversais a muitos outros, sendo particularmente graves nos países sem acesso universal e gratuito a cuidados de saúde, onde a iniquidade foi mais manifesta. A saúde física e mental das populações - incluindo a dos profissionais de saúde - deteriorou-se, não só como resultado da infeção por SARS-CoV-2, mas também pelo défice de cuidados aos outros doentes e pelas consequências sociais da pandemia.
Há algumas lições que temos que aprender e aplicar, mas não podemos ignorar as tendências na procura e na oferta de cuidados de saúde - já existentes no período pré-pandémico - que permanecem e se acentuam: do lado da procura, a crescente idade dos doentes, que apresentam mais multimorbilidade, problemas sociais, doenças crónicas e comportamentos de risco, mas também são também cada vez mais informados, mais exigentes e têm mais escolhas; do lado da prestação dos cuidados de saúde assistimos à aceleração do conhecimento médico, que tem gerado uma hiperespecialização crescente e, paralelamente, a necessidade de generalistas, a centralida-de da casa na atividade humana, a jornada cada vez mais híbrida do doente - entre o digital e presencial - o crescimento do sector privado, a entrada das grandes multinacionais digitais na área da saúde e a introdução de novos fármacos que - representando enormes avanços nos cuidados - podem pôr em risco a sustentabilidade dos sistemas de saúde. Para além destes fatores, outras inovações vão impactar radicalmente a prestação de cuidados de saúde: a robótica, a inteligência artificial, o Big Data, a nanotecnologia, as terapias biológicas, a medicina genómica e os avanços nas imagens e nos procedi-mentos médicos e cirúrgicos.
Neste enquadramento há sectores onde existem fortes pressões financeiras sobre os profissionais de saúde, particularmente sobre os médicos, que poderão ameaçar a preser-vação dos valores do profissionalismo médico e o respeito da autonomia dos doentes. Existem também mudanças que não atendem à centralidade do doente no modelo de cuidados e há inovações organizacionais que melhoram a qualidade dos cuidados que prestamos e que tardam a ser implementadas. Os médicos - para além de serem cuidadores - têm também a obrigação ética de serem advogados dos doentes, defender os seus interesses, defender modelos de cuidados mais adequa-dos, com mais qualidade e segurança, sem perderem a noção de que os sistemas de saúde têm que se manter sustentáveis.
Nas alturas de maior instabilidade é necessário voltar a proclamar os valores do profissionalismo médico e a exercer o nosso papel de advogados dos doentes.
Um dos momentos em que tal aconteceu foi em 2002, quando a ABIM Foundation, o American Board of Internal Medicine, a ACP-ASIM Foundation, o American College of Phy-sicians, a American Society of Internal Medicine e a European Federation of Internal Medicine (EFIM) publicaram uma posição conjunta que se intitulava: “Medical professionalism in the new millennium: a physician charter”.1 Este documento surgiu da consciência de que as mudanças nos sistemas de prestação de cuidados de saúde em países de todo o mundo industrializado ameaçavam os valores do profissionalismo. Os princípios que informaram esta declaração foram a primazia do bem-estar e da autonomia do doente e o da justiça social. Os compromissos assumidos nesta publicação foram os da competência profissional, honestidade com os doentes, respeito pela confidencialidade, adequação das relações com os doentes, melhoria do acesso e da qualidade dos cuidados, distribuição justa dos recursos finitos, atualização científica, manutenção da confiança dos doentes através da gestão dos conflitos de interesses e a responsabilidade profissional.
Mais recentemente, a Sociedade Alemã de Medicina Interna popôs o “Physicians Codex: Medicine ahead economics”, onde defendeu uma ética profissional resistente a pressões económicas ou sistemas de incentivo financeiro. Este códex foi adotado pelo comité executivo da EFIM, na assembleia geral da EFIM, em 25 de setembro de 2020.2
Esta declaração foi avaliada na cimeira entre as direções da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna e a Sociedade Espanhola de Medicina Interna no Porto, em 2021, onde se considerou que era mais adequada a países com forte medicina privada ou com financiamento baseado em seguros do que a países do sul da Europa, onde predominam serviços nacionais de saúde financiados por impostos. Dessa cimeira surgiu a ideia de publicar o “Compromisso dos internistas portugueses” - mais talhado à nossa realidade - que a direção da SPMI me convidou para redigir. Esse é o documento que se apresenta neste artigo e que representa um compromisso dos internistas portugueses com o público, profissionais de saúde e decisores políticos. Desta versão completa foi extraída uma versão mais curta, dirigida aos cidadãos, que engloba os primeiros 17 pontos, a qual foi divulgada em dezembro, durante o mês da Medicina Interna.
Tem sentido, nesta altura, que os internistas portugueses assumam estes compromissos publicamente. A Medicina In-terna é a especialidade mais prevalente nos hospitais portugue-ses, onde desempenha um papel nuclear, pela sua formação generalista e pela sua versatilidade. Esta capacidade revelou-se fundamental na resposta a esta pandemia: a Medicina Interna foi a especialidade que cuidou, e continua a cuidar, da maior parte dos doentes infetados, o que tem feito com competência e dedicação, mas também com um elevado custo em termos de sobrecarga física e psicológica. A Medicina Interna é também a especialidade melhor preparada para liderar a maior parte das experiências inovadoras na prestação de cuidados.
Este compromisso da Medicina Interna portuguesa tem antecedentes a nível europeu: em 2005, a EFIM, através do Working Group on Professional Issues in Internal Medicine, publicou o artigo “Political issues in internal medicine in Europe. A position paper”,3 e, em 2010, o mesmo grupo publicou um documento estratégico intitulado “How to cope with the future?”, onde propunha uma definição e uma missão para a Medicina Interna.4
É a olhar para o futuro, com a visão sistémica que nos caracteriza e movidos por um sentido ético que nós, internistas portugueses, assumimos o compromisso público de:
Colocar sempre as necessidades e preferências dos nossos doentes como a nossa primeira prioridade, não nos deixando influenciar por interesses económicos, mas mantendo a nossa contribuição para que o sistema de saúde seja sustentável.
Defender a equidade no acesso a cuidados de saúde com qualidade, fazendo com que os doentes não sejam penalizados pela sua situação geográfica, condição social, etnia, sexo, orientação sexual ou religião.
Defender os direitos dos doentes, nomeadamente o direito ao respeito, à autonomia, à propriedade dos seus registos clínicos, ao consentimento informado, à confidencialidade e a morrer com dignidade.
Empenharmo-nos na prevenção das doenças e na promoção da saúde, tendo consciência de que 80% dos casos de diabetes, doença coronária, AVC e 40% dos casos de cancro podiam ser prevenidos com a adoção de estilos de vida saudáveis.
Envolvermo-nos ativamente na defesa do ambiente e na luta contra as alterações climáticas, que já estão a matar os nossos doentes ou a deteriorar a sua saúde.
Defender o fortalecimento dos serviços públicos de saúde e o acesso universal e gratuito a cuidados de saúde de qualidade.
Contribuir para aumentar a literacia dos doentes, a sua capacidade de gerirem a sua saúde, de viverem com as suas doenças e utilizarem adequadamente os serviços de saúde.
Adotar e potenciar todos os avanços das tecnologias de informação e comunicação que beneficiem os nossos doentes e apoiem o nosso trabalho, incluindo avanços na telemedicina, o Big Data e a inteligência artificial.
Envolvermo-nos na melhoria contínua da qualidade dos cuidados que prestamos, garantindo a segurança dos nossos doentes e minimizando os erros e os riscos que correm.
Defender hospitais mais flexíveis, escaláveis, com camas e recursos humanos suficientes e preocupados em proporcionar condições do ambiente que ajudem na recuperação dos doentes.
Mudar o paradigma do apoio aos serviços cirúrgicos, que geralmente é reativo e tardio, para programas de cogestão, que proporcionem cuidados preventivos e atempados, através de equipas que acompanham os doentes desde a entrada até à alta hospitalar.
Promover a progressiva ambulatorização dos cuidados hospitalares, assegurar a sua qualidade e segurança, e expandir a hospitalização domiciliária como uma alternativa válida ao internamento hospitalar.
Defender a existência de um internista de referência que apoie os doentes, os cuidadores, os médicos de família e assegure a continuidade dos cuidados nos múltiplos contactos que os doentes têm com o hospital.
Garantir cuidados paliativos a todos os doentes que deles necessitem.
Envolvermo-nos em novas formas assistenciais que melho-rem os cuidados aos doentes crónicos complexos, como sejam programas de gestão de caso.
Combater o sobrerastreio, sobrediagnóstico e sobretratamento que levam a que muitos doentes se sujeitem a exames e procedimentos desnecessários, que lhes trazem prejuízos e não os beneficiam.
Defender a integração da saúde com a assistência social, sabendo que é cada vez mais difícil separar os problemas de saúde dos problemas sociais.
Relacionarmo-nos com os nossos doentes de forma empática, estabelecer uma comunicação adequada, fornecer-lhes informação necessária, garantir a sua compreen-são e envolvê-los nas decisões que lhes dizem respeito, tendo sempre presentes as suas prioridades e os seus objetivos vitais.
Atualizarmo-nos permanentemente, aplicando a melhor evidência das boas práticas clínicas e fazermos formação sobre novas competências necessárias para a prática de uma medicina moderna.
Garantir que temos a capacidade para tratar as condições de que os nossos doentes sofrem e que os referenciaremos sempre que tal não acontecer.
Defender o funcionamento em rede dos hospitais, por forma a responder melhor às variações da procura e utilizar melhor a capacidade instalada.
Advogar a mudança do modelo de divisão dos hospitais, em silos dedicados a órgãos ou sistemas-onde é cada vez mais difícil colocar os nossos doentes idosos e com multimorbilidade-para uma organização mais matricial, com departamentos dedicados a áreas de cuidados e focados em processos assistenciais.
23. Implementar soluções organizativas que proporcionem os melhores resultados, tais como unidades diferenciadas de-dicadas a patologias e unidades adequadas às diferentes necessidades de monitorização.
Assegurar nos hospitais uma assistência com qualidade 24 horas por dia, sete dias por semana.
Contribuir para uma melhor coordenação dos cuidados ao doente crítico de forma a diminuir o recurso inadequado às urgências hospitalares.
Garantir uma transição de cuidados segura do hospital para casa.
Defender centros de cuidados integrados, que proporcionem cuidados diferenciados na proximidade das comunidades, em articulação com os médicos de família.
Defender centros hospitalares racionais, que concentrem o internamento e descentralizem o ambulatório, em vez de dispersar serviços por localidades distantes, dificultando o acesso das populações a cuidados hospitalares.
Defender sistemas locais de saúde em que haja uma coor-denação formal entre os vários níveis de cuidados, que garantam a gestão comum de recursos, a continuidade de cuidados e um planeamento estratégico conjunto.
Pugnar pela criação de um registo de saúde eletrónico único para cada doente
Contribuir para a transparência da nossa atividade.
Investir na investigação clínica como forma de contribuirmos para o avanço do conhecimento sobre os cuidados de saúde.
Dar a nossa contribuição para estarmos preparados para eventos inesperados como sejam catástrofes ou novas pandemias.
Exigir um número de profissionais suficientes e condições de trabalho que nos permitam o desempenho digno e com qualidade da nossa atividade e o nosso desenvolvimento pessoal, com preservação do balanço entre o trabalho e a vida pessoal, com uma remuneração adequada, que torne igualmente atrativo trabalhar nos sectores público ou privado.
Exigir a nossa participação nas decisões sobre estruturas e organização do sistema de saúde, com a consciência que estas decisões têm impacte na saúde dos nossos doentes