Introdução
A oxigenoterapia (02Tx) é definida pela administração de oxigénio (02) em concentrações superiores às do ar ambiente, sendo amplamente utilizada nos cuidados médicos agudos, anestesiologia e cuidados pós-operatórios. A insuficiência respiratória (IR) é um dos principais determinantes da necessidade de internamento hospitalar, fazendo da 02Tx uma das terapêuticas médicas mais utilizadas em enfermaria. Dados os seus efeitos secundários nos diferentes aparelhos e sistemas, 1·2a sua utilização requer vigilância, de forma a minimizar os seus potenciais malefícios. Este aspeto toma particular importância em casos de acidose respiratória crónica compensada, nos quais o aumento da fração inspiratória de 02 (FiO2) se associa ao aumento da PaCO2 por diversos mecanismos.2
Em 2008, a British Thoracic Society publicou as suas primeiras recomendações acerca da prática de O2Tx no doente agudo, baseando-se em duas premissas: a prescrição de OTx deve ser feita por intervalos-alvo de saturação periférica (IA-SpO2), devendo os doentes sob O2Tx ser monitorizados para se manterem dentro desses alvos.2 Estas recomendações fundamentam-se em auditorias realizadas em diversos hospitais britânicos, nas quais se constatou que a maioria dos doentes não tinham prescrição de fluxo/FiO2 , a prescrição nem sempre era cumprida e havia relatos de casos de eventos fatais causados por erros na administração.3 Os alvos de saturação periférica (SpO2) definidos derivam de estudos populacionais em indivíduos saudáveis, sendo traduzida por uma SpO2 de 94%-98% na maioria das situações - evitando hipoxia na maioria dos doentes e os potenciais efeitos deletérios da hiperóxia. Por outro lado, nos casos de doentes com risco de retenção de CO2 sensível ao oxigénio, o alvo deverá ser inferior, de forma a alcançar um balanço entre SaO/PaO2 e retenção de CO2 desejável e segura, estando assim definido como 88%-92%.2 Desta forma, em doentes com exacerbação de doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), verificou-se uma redução de mortalidade para metade com OTx neste alvo, quando comparado com O2Tx de alta concentração.
Na sua atualização de 2017, a BTS manteve os mesmos alvos de SpO2 (94%-98%).5 Contudo, as recomendações da Thoracic Society of Australia and New Zealand (TSANZ) recomendam um alvo ligeiramente diferente, de 92%-96% em doentes com IR hipoxémica, alegando que 92% é um alvo prático para excluir hipoxemia, não associado a risco de dano hipóxico (SaO2 90% é considerado nadir nos doentes idosos e indivíduos saudáveis durante o sono).6 Desta forma, é possível reduzir a excessiva utilização de oxigenoterapia de alta concentração e, para além disso, um limite superior de 96% evita os riscos potenciais de hiperóxia, permitindo que a melhoria do doente seja reconhecida mais cedo, levando a redução mais precoce da O2Tx.6•7
Uma metanálise realizada em 2018 demonstrou evidência robusta que associa a utilização liberal de O2Tx a um aumento da mortalidade, sem melhorar qualquer outcome clínico em doentes agudos, e que parece tornar-se desfavorável acima de SpO2 94%-96%, resultados que suportam uma administração conservadora de O2Tx.8
Em Portugal, os critérios de O2Tx em ambulatório estão definidos na Norma de Orientação Clínica da Direção Geral de Saúde 018/2011 (atualizada em 11/09/2015). No préhospitalar, a administração de 02 está orientada no Manual de Tripulante de Ambulância de Transporte, onde é referida a importância da administração de oxigénio titulado pelos valores de SpO2, realçando que o intervalo para doentes com DPOC deverá ser 88%-92%, de forma a evitar agravamento da hipercapnia/acidose respiratória.9 A nível hospitalar, não existem orientações específicas e, na ausência de normas de orientação ou recomendações para a O2Tx hospitalar, tornase indispensável a criação de protocolos locais de orientação, recomendações e monitorização.
O Estudo Multicêntrico de Oxigenoterapia, publicado em 2012, contou com a participação de 24 serviços de Medicina Interna de hospitais portugueses, sendo que nenhum deles tinha recomendações locais sobre O2Tx.10 Verificou-se que cerca de metade dos doentes internados se encontrava sob O2Tx, sendo que a maioria das prescrições era feita por dose fixa (82,4%), mas apenas 11,6% dessas definiam todos os parâmetros necessários. Em doentes com prescrição por dose fixa, a O2Tx apenas foi administrada em 77,0% dos casos. Dos 127 doentes com prescrição de O2Tx por IA-SpO2, 82,7% encontravam-se no intervalo prescrito. Concluiu-se que a prescrição por IA-SpO2 teve melhores resultados, comparativamente à prescrição por dose fixa, sendo, no entanto, pouco utilizada.
Antes de iniciar o presente estudo, foi realizada uma auditoria piloto no Serviço de Medicina Interna (SMI), no último trimestre de 2016, verificando-se que, dos 57 doentes avaliados, 77,2% (n = 44) tinham O2Tx prescrita, dos quais 72,7% (n = 32) por IA-SpO2 e 31,3% (n = 10) com alvo adequado; 12,3% (n = 7) dos doentes estavam classificados como tendo risco de insuficiência respiratória hipercápnica ou tipo 2 (IR2), e que 84,4% (n = 27) estavam dentro do alvo prescrito independentemente da adequação da prescrição (12,5% acima do alvo e 3, 1 % abaixo do alvo). Nenhum dos doentes com O Tx por débito fixo se encontrava a cumprir a prescrição.
Desta forma, considerou-se importante o desenvolvimento de normas de prescrição e monitorização de O2Tx, tendo sido elaborado um protocolo de atuação com base nas normas da BTS, bem como um plano de auditoria da sua implementação, enquanto índice de qualidade do Serviço.
Este estudo teve como objetivos: avaliar o impacto e resultados da aplicação do protocolo de O2Tx; determinar o número de doentes internados sob O2Tx; avaliar a adequação da prescrição; determinar a proporção de doentes sob O2Tx classificados como tendo risco de insuficiência respiratória hipercápnica; avaliar a monitorização de SpO2 e se a O2Tx foi validada nos turnos de enfermagem; avaliar se a SpO2 estava dentro, acima ou abaixo do alvo prescrito; avaliar se a administração cumpria o determinado na prescrição.
Métodos
Estudo prospetivo unicêntrico realizado após elaboração e implementação de um protocolo de prescrição de O2Tx por IA-SpO2 no SMI, seguida da formação da equipa médica e de enfermagem. O protocolo incluía um algoritmo de prescrição (Fig. 1), bem como recomendações para o aumento ou redução de FiO2 até sua suspensão.
Tendo como base o número de doentes que estiveram sob O2Tx durante o ano de 2015 no SMI (n = 1392, 31 %) no total de 4345 de doentes hospitalizados, calculou-se uma amostra de pelo menos 306 doentes por ano a monitorizar, de forma a obter uma amostra representativa da população, com uma margem de erro de 5% e intervalo de confiança de 95%.
A auditoria ao cumprimento do protocolo de prescrição ocorreu através da avaliação mensal de todos os doentes internados no SMI (num dia por mês, selecionado de forma aleatória e sem aviso prévio). A auditoria assentou em duas vertentes:
verificação no processo clínico da prescrição, validação da prescrição e monitorização pela equipa de enfermagem no sistema informático;
na enfermaria, pela avaliação da presença de dispositivos de O2Tx (cânula nasal, máscara facial, máscara de Venturi, máscara de alta concentração, associada a ventilação não invasiva), e identificação doentes sob O2Tx não prescrita; nos doentes com prescrição, se o administrado correspondia ao prescrito e se se encontrava no IA-SpO2 (em caso de prescrição por alvo). Admitiu-se um desvio de 2% do alvo (superior ou inferior), desde que reavaliado em breve ou corrigido na avaliação seguinte.
Os IA-SpO2 definidos no protocolo foram os mesmos das recomendações da BTS: doentes com insuficiência respiratória tipo 1 (IR1) (PaO2 <60 mmHg em ar ambiente ou PaO/ FiO2 <300 + PaCO2 <45 mmHg) com indicação de IA-SpO2 de 94%-98%, e doentes com insuficiência respiratória tipo 2 (PaO2 <60 mmHg + PaCO2 >45 mmHg) com indicação de IA-SpO2 de 88%-92%.
Foram ainda considerados como tendo indicação para IA-SpO2 de 88%-92% doentes com risco de hipercapnia, nomeadamente os casos de DPOC moderada a grave, história de necessidade de ventilação não invasiva, doenças neuromusculares, deformidades da parede torácica, obesidade mórbida, sob terapêutica depressora do sistema nervoso central (ou casos de intoxicação), fibrose quística ou com bronquiectasias não-fibrose quística. Excetuam-se desta indicação doentes com hipercapnia compensatória de alcalose metabólica. A Fig. 1 apresenta o fluxograma de prescrição de O2Tx.
A escolha da interface teve em consideração as características, estado clínico e conforto do doente, sendo recomendada a utilização de máscara de alta concentração com reservatório em doentes instáveis e máscara de Venturi em casos de IR2, em especial nas primeiras horas de avaliação, dada a FiO2 mais fidedigna.
A equipa de enfermagem tinha autonomia para adaptar o dispositivo e débito de 02 de forma a manter SpO2 no alvo prescrito, sendo que a indicação para redução de FiO2 e eventual suspensão de O2Tx foi considerada em casos de estabilidade clínica, com frequência respiratória estável, acompanhando a melhoria global do doente. Pelo contrário, uma necessidade crescente de FiO2 superior a 4% para manter o doente no alvo deveria despoletar avaliação médica.
Nas auditorias foi utilizado um oxímetro da marca Northern Meditec Limited, modelo Aquarius, com precauções de desinfeção entre doentes. Para verificação da SpO2, aguardou-se pela estabilização da curva de fluxo e registou-se o respetivo valor após 30 segundos de sinal estável. Foram excluídos da auditoria doentes em situações especiais, quando julgado adequado pelos investigadores (ex. doentes terminais com familiares presentes).
No que diz respeito à análise estatística, foram analisadas variáveis demográficas, tipo de prescrição, identificação de doentes em risco de IR2, cumprimento da prescrição e falhas na administração. A normalidade das variáveis contínuas em estudo foi avaliada através do teste de Shapiro-Wilk e, dado que nenhuma apresentava distribuição normal, procedeu-se à sua descrição através da mediana e amplitude interquartil.
Quanto à avaliação da diferença entre contínuas sem distribuição normal foi aplicado o teste não paramétrico de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis quando adequado. As variáveis categóricas foram apresentadas como frequência absoluta e percentagem (%), tendo sido comparadas usando o teste de Qui-quadrado, após verificação das condições da aplicação do teste, nomeadamente independência das variáveis e ausência de células da tabela de contingência com valor esperado inferior a 5. Considerou-se estatisticamente significativo p < 0,05. A análise dos dados foi feita através dos programas Excel® e IBM SPSS, versão 20.0®.
A apresentação dos resultados foi aprovada pela Comissão de Ética do Centro Hospitalar.
Resultados
Durante os anos 2017 e 2018, foram avaliados 781 doentes (n = 382 em 2017 e n = 399 em 2018), dos quais 52,2% (n = 408) pertenciam ao sexo feminino. A mediana de idades foi de 79 (17) anos e a demora mediana em internamento foi de 5 (6) dias.
No que diz respeito aos diagnósticos mais frequentes, verificou-se que em 44,2% dos casos (n = 345) o diagnóstico principal pertencia a patologia do aparelho respiratório, sendo a infeção respiratória baixa (30, 1 %, n = 235) e a DPOC agudizada (9,5%, n = 74) os diagnósticos mais frequentes. As patologias do aparelho circulatório estiveram presentes em 28,2% dos casos (n = 220), sendo a insuficiência cardíaca o diagnóstico presente na maioria destes (17,2%, n = 134).
Do total de doentes avaliados em 2017-2018, 7 4,6% (n =583) tinham O2Tx prescrita, sendo que 98,3% (n = 573) das quais por IA-SpO2. Dos doentes com alvo prescrito, 39,8%(n = 228) apresentavam prescrição para 88%-92%, 48% (n = 275) para alvo 94%-98% e 12,2% (n = 70) outro alvo não contemplado no protocolo. No momento da auditoria, 77,5%(n = 390) dos 503 doentes com prescrição adequada por IASpO2 encontravam-se no alvo pretendido. Dos doentes com alvo prescrito 88%-92%, 39 (17, 1 %) encontravam-se com saturação periférica acima do alvo pretendido, enquanto 8 (3,5%) se encontravam a saturar abaixo do alvo. No que diz respeito aos doentes com alvo 94-98% (n = 275), 18 (6,5%) estavam abaixo do alvo pretendido.
Identificaram-se 235 (30, 1 %) doentes com risco de IR2, tendo-se verificado um aumento na identificação destes em 2018 em relação ao ano anterior [133 (33,3%) vs 102 (26, 7%), p = 0,043] (Tabela 1 ).
Foram identificados 18 (2,3%, 9 em 2017 e 9 em 2018) doentes sob O2Tx sem prescrição médica [vs 1 (1,8%) dos 57 doentes incluídos na auditoria piloto].
Comparando com a auditoria piloto, verificou-se um aumento na prescrição por IA-SpO2 [32 (72,7%) vs 277 (99,6%) em 2017 e 296 (97%) em 2018, p = 0,017], e na identificação de doentes em risco de IR2 [7 (12,3%) vs 102 (26,7%) em 2017 e 133 (33,3%) em 2018, p = 0,002]. Apesar da melhoria na adequação da prescrição do alvo relativamente à auditoria piloto [10 (31,3%) vs 235 (84,8%) em 2017 e 268 (90,5%) em 2018, p < 0,001], não houve diferença entre os anos em análise (p = O, 175). A implementação do protocolo teve um impacto significativo ao nível da prescrição por IA-SpO2, adequação do alvo, concordância entre a prescrição do alvo adequado e a saturação observada na auditoria e na identificação de doentes em risco de IR tipo 2 (Tabela 1).
Discussão e Conclusão
O principal objetivo do protocolo foi uniformizar a prescrição de O2Tx, através da prescrição por IA-SpO2 adequados, conforme as recomendações internacionais disponíveis.
A criação do protocolo de 02Tx e a formação das equipas médica e de enfermagem permitiu melhorar os cuidados aos doentes internados, através de um aumento significativo da prescrição por IA-Sp02 e da identificação de doentes em risco de IR2, algo que foi rapidamente alcançado nas primeiras auditorias após implementação do protocolo e que se manteve no tempo.
Por outro lado, a avaliação sistemática da validade da prescrição e administração permitiu consciencializar as equipas de enfermagem dos riscos da 02Tx excessiva e dos efeitos deletérios da hiperóxia. Apesar de não ter sido especificamente avaliado esse parâmetro, notou-se satisfação dos profissionais de enfermagem por uma maior autonomia na administração de O2.
O estudo tem algumas limitações, nomeadamente não ter avaliado outcomes clínicos, não sendo assim possível verificar se a prescrição por IA-Spo2 de facto teve esse efeito; por outro lado, no que diz respeito à utilização de IA-Sp02 94%-98% nos doentes mais idosos, parece tornar mais difícil o alcance desse alvo e atrasar a diminuição da Fio2 .
Atendendo aos estudos mais recentes, poderá ser necessária uma reestruturação do protocolo, uma vez que o alvo de 92-96% será o mais adequado para indivíduos com IR1.
Existem ainda pontos a otimizar, nomeadamente administração e monitorização da Sp02, em especial em casos de IR2, de modo a melhorar a taxa de cumprimento e o tempo dentro do alvo prescrito, bem como a criação de um sistema de alarme de identificação futura para estes doentes.