Introdução
A trombose venosa cerebral (TVC) é um tipo de doença cerebrovascular que afeta os seios durais e veias cerebrais.1 Esta condição contribui com 0,5% do total de casos de acidente vascular cerebral (AVC), tendo maior incidência em adultos jovens, sobretudo do género feminino, numa razão de 3:1.2-5
Apesar de ser uma patologia pouco comum, a sua incidência tem vindo a aumentar. Os avanços nas técnicas de neuroimagiologia permitiram um maior reconhecimento desta doença e possibilitaram um diagnóstico mais precoce e consequentemente um prognóstico mais favorável, com uma taxa de mortalidade abaixo dos 10%. 2·3•6•7Contudo, a sua apresentação variável e sintomatologia inespecífica determinam um desafio diagnóstico e justificam a necessidade de um elevado grau de suspeição clínica, o que contribui para que esta condição esteja ainda subdiagnosticada.2·3·6
As guidelines mais recentes recomendam a anticoagulação como o pilar de tratamento destes doentes, para além do controlo da sintomatologia e da reversão do fator desencadeante quando possível.8•9Embora a maioria (cerca de 80%) dos pacientes com TVC obtenham uma recuperação completa, existe uma percentagem não negligenciável dos mesmos que têm prognóstico desfavorável, independentemente do tratamento, sendo a mortalidade em fase aguda desta doença de cerca de 5%.7·10
Este é o primeiro estudo de série de casos desta patologia realizado na nossa área de incidência. O objetivo deste trabalho é caracterizar a população de doentes internados na Unidade de AVC da nossa instituição com o diagnóstico de TVC entre 2008 e 2018, no que toca às suas características clinicoepidemiológicas.
Métodos
O desenho deste estudo é descritivo e retrospectivo. Para a sua realização, e após aprovação do Gabinete de Investigação e Desenvolvimento e Comissão de Ética para a Saúde, os autores fizeram uma pesquisa na base de dados da plataforma Sclinico para selecionar todos os doentes adultos com este diagnóstico de alta, internados na Unidade de AVC da nossa instituição entre janeiro de 2008 e dezembro de 2018. Foram analisados os processos clínicos e registadas as variáveis demográficas (género, idade), clínicas (apresentação, evolução, tempo de internamento, opção terapêutica), imagiológicas (tipo de exame, localização do evento), dados da investigação etiológica e outcome funcional final (através da Escala de Rankin modificada - mRs).
Relativamente aos dados imagiológicos, os tipos de exame avaliados foram a tomografia computorizada crânio-encefálica (TC-CE), TC-CE contrastada, venoTC e ressonância magnética crânio-encefálica (RM-CE) com angiografia por ressonância magnética (angioRM). Estes foram categorizados relativamente ao grau de suspeita de TVC: exame normal, suspeito, sugestivo ou diagnóstico. Consideraramse como normais aqueles que não tinham achados de relevo para a suspeita diagnóstica de TVC, nomeadamente sem enfarte recente, hemorragia aguda, hiperdensidades espontâneas em topografia dos seios venosos nem ausência de preenchimento por contraste de estruturas venosas superficiais ou profundas. Consideraram-se como suspeitos aqueles que apresentavam hemorragia subaracnoideia (HSA), hematoma em localização atípica para hemorragia hipertensiva e enfartes que não cumpriam um território arterial. Consideraram-se como sugestivos os exames que revelaram hiperdensidade em topografia de seios venosos. Por fim, os exames diagnósticos foram aqueles que revelaram ausência de preenchimento por contraste de estruturas venosas superficiais ou profundas.
Foi utilizada a mRs para categorização do outcome funcional final. De acordo com o estado clínico à data de alta, os doentes foram classificados como tendo atingido recuperação completa (mRs=0), independência (mRs = 1-2), dependência (mRs = 3-5) ou morte (mRs = 6).
O tratamento estatístico dos dados foi feito recorrendo ao Office Excel 2016, sendo apresentada a estatística descritiva com medidas de frequência absoluta e relativa e medidas de sumário. Estas últimas foram selecionadas de acordo com a distribuição dos valores da variável contínua em questão (média e desvio padrão no caso de distribuição normal, mediana e amplitude interquartil no caso de distribuição não normal).
Resultados
Dados Demográficos
Foram incluídos neste estudo um total de 27 doentes, predominando o género feminino com 21 doentes (78%). Os doentes tinham idades compreendidas entre os 19 e os 82 anos, sendo a média de idades de 43,5 anos. A média de idades no género feminino era de 40, 1 anos, mais baixa que a média de idades no género masculino, de 55,5 anos.
Dados Clínicos
A forma de apresentação mais prevalente foi a cefaleia, em 96,3% dos casos (apenas 1 doente não apresentou cefaleia à admissão). Destes, em 15,4% dos casos (4 doentes) a cefaleia surgiu como manifestação clínica isolada. Os sinais neurológicos focais foram também prevalentes em 14 doentes, nomeadamente sintomas motores (n = 9; 33,3%), afasia (n = 5; 18,5%), sintomas sensitivos (n = 1; 3, 7%), ou outro défice focal, como as alterações auditivas ou parésia do VI par craniano (n = 2;7,4%). As náuseas e vómitos estiveram presentes em 9 doentes, representando um terço dos doentes com TVC. Por ordem de frequência seguiram-se as alterações visuais e crises convulsivas (4 doentes cada) e, por fim, a alteração do estado de consciência (3 doentes).
Dois terços dos doentes teve uma evolução subaguda, com duração dos sintomas até ao diagnóstico de entre 48 horas a 30 dias e cerca de 18% foram admitidos de forma aguda, com sintomatologia nas 48 horas anteriores. Nenhum doente teve apresentação com sintomas com mais de 30 dias de evolução previamente ao diagnóstico. Em 4 doentes foi impossível caracterizar a evolução por indisponibilidade destes dados no seu processo clínico, pois tratou-se de doentes diagnosticados previamente à informatização de todos os processos clínicos no Hospital.
Quanto à duração do internamento, este teve uma mediana de 9 dias, variando entre 1 e 24 dias. A mediana do tempo de internamento das mulheres (9 dias) foi maior do que a dos homens (5,5 dias).
Em relação ao tratamento, todos os doentes realizaram anticoagulação em fase aguda, tendo sido administrada heparina de baixo peso molecular em 19 doentes e heparina não fraccionada em oito doentes. Em 25 doentes foi feito switch para antagonista da vitamina K à data de alta. Um doente suspendeu anticoagulação por complicação hemorrágica e outro doente manteve heparina de baixo peso molecular. Nenhum foi submetido a intervenção endovascular nem craniectomia descompressiva.
O resumo dos dados demográficos e clínicos é apresentado na Tabela 1.
Dados lmagiológicos
A TC-CE foi o exame inicial em 23 doentes (85,2%). O seu resultado foi normal em 3 (13,0%); 7 (30,4%) apresentaram características imagiológicas suspeitas, nomeadamente 3 (13,0%) casos de hematoma lobar, 2 (8, 7%) de enfarte venoso, 1 (4,3%) de HSA e 1 (4,3%) de hemorragia subdural. Por outro lado, 13 (56,5%) tiveram características imagiológicas sugestivas de 1VC, nomeadamente hiperdensidade em topografia de estruturas venosas cerebrais. Um doente fez TC-CE contrastada, sugestiva de 1VC. Posteriormente, foram realizadas venoTC e/ou RM-CE para confirmação do diagnóstico. Foi realizada venoTC em 5 doentes (18,5%), que confirmou 1VC em todos os casos. Já a RM-CE foi o exame inicial em 3 (11, 1 %) dos 24 (88,9%) doentes que fizeram RM-CE, com confirmação do diagnóstico em todos.
Em termos de localização da trombose venosa (Tabela 2), 13 casos (48, 1 %) tinham envolvimento apenas de uma estrutura e 14 (51,9%) tinham envolvimento de duas ou mais estruturas venosas profundas e/ou superficiais. O seio lateral foi o mais frequentemente afetado, com 15 (55,5%) casos, seguido do seio longitudinal superior, com 13 casos (48, 1 %); 8 casos (29,6%) tiveram trombose do seio sigmóide, 6 casos (22,2%) da veia jugular interna, 4 casos (14,8%) do seio transverso, 2 casos (7,4%) do seio reto e, por fim, 1 caso cada (3,7%) teve trombose da tórcula, de uma veia cortical rolândica e do golfo da jugular.
Investigação Etiológica
As causas etiológicas mais frequentemente associadas a 1VC foram identificadas e distribuídas por categoria como detalhado na Tabela 3. Mais de 40% dos doentes apresentaram como etiologia o uso de contracetivos orais (12 das 21 doentes do género feminino do estudo), sendo este o fator de risco mais prevalente. Nomeadamente, este foi o único fator identificado em oito das 12 doentes incluídas.
Em cinco doentes (18,5%) foram encontrados mais do que um fator de risco para 1VC. Quatro pacientes eram do género feminino e, para além do contracetivo oral tinham outro fator predisponente (respetivamente o SAAF, o LES, a hiperhomocisteinémia e a drepanocitose). O último era um homem com neoplasia pulmonar e mutação do gene da protrombina concomitante.
Para além dos fatores hormonais, também as trombofilias hereditárias e adquiridas contribuíram como causas de TVC (n = 4; 14,8%), logo seguidas pelas doenças inflamatórias (n = 3; 11, 1 %) ou as neoplasias e outras condições hematológicas (cada um n = 2; 7,4%).
Em seis doentes (22,2%) não foi encontrado nenhum fator etiológico. Em relação a esta percentagem elevada de doentes sem etiologia identificada, verificámos que apenas quatro dos seis doentes completaram seguimento em consulta de Neurologia, com estudo negativo para fatores predisponentes de TVC. Os outros dois doentes abandonaram o seguimento em consulta antes de concluído o estudo.
Outcome Final
Neste período, dos 27 pacientes internados por TVC, a grande maioria alcançou a recuperação completa (n = 10,37%) ou independência (n = 15, 55,5%) à data de alta. Apenas dois doentes, (um do género masculino e um do género feminino) tiveram um mRs 3 (dependentes). Não foi registado nenhum óbito.
Todos os doentes foram posteriormente acompanhados em consulta de Neurologia e pudémos verificar que para além dos 10 doentes que tiveram alta com recuperação completa, mais oito doentes obtiveram recuperação sem sequelas do evento trombótico. Dos restantes, quatro mantiveram défices motores ligeiros, três mantiveram cefaleia persistente e dois desenvolveram epilepsia secundária.
Discussão
A trombose venosa cerebral é um subtipo raro de AVC. No nosso Hospital distrital foram realizados, entre 2008 e 2018, um total de 6059 diagnósticos de AVC (quer isquémico, quer hemorrágico), sendo que os doentes com diagnóstico de TVC internados na Unidade de AVC perfizeram 0,44% do total de casos de AVC do Hospital, o que vai de encontro à prevalência de cerca de 0,5% desta doença, referida nos estudos multinacionais.4 Apesar de ser prática habitual o internamento dos casos de TVC na Unidade de AVC, não foi possível excluir totalmente a existência de casos admitidos sem internamento na nossa Unidade, pelo que esta comparação tem de ser interpretada com as devidas limitações.
Comparando os dados demográficos dos nossos pacientes com os do lnternational Study on Cerebral Vein and Durai Sinus Thrombosis (ISCVT), a idade média que obtivémos foi mais elevada (43,5 vs 37 anos). No ISCVT, 8% dos pacientes tinham mais de 65 anos, enquanto no nosso estudo a percentagem destes doentes foi de 11 %. À semelhança do que acontece noutros países, a idade das nossas pacientes do género feminino era significativamente inferior à idade dos pacientes do género masculino.
Pensa-se que esta patologia está subdiagnosticada e o seu diagnóstico pode ser dificultado pelas características variáveis e inespecíficas da sua apresentação. Esta pode ser aguda, subaguda ou crónica, sendo a cefaleia a manifestação mais comum, presente em mais de 90% dos casos, podendo surgir isolada ou coexistir com outros sintomas.11•12 Entre as outras manifestações mais relevantes encontram-se as crises epiléticas, os défices neurológicos focais, a alteração do estado de consciência e o papiledema.2·13
Assim, como verificámos neste estudo, o atraso no diagnóstico pode dever-se ao facto de a cefaleia poder ser a única manifestação inicial de TVC, ser um sintoma bastante comum na população geral e ter várias etiologias possíveis, sendo por isso uma queixa frequentemente desvalorizada. Contudo, é incomportável a realização de exames neuroimagiológicos a todos os pacientes que se apresentam com cefaleia, pelo que Santos, em 2011,3 referiu a importância de se definirem os doentes em que esta abordagem deverá ser feita e, assim, propôs a realização de estudo imagiológico para exclusão de TVC em doentes com queixas de cefaleia com vários dias de evolução, resistente à terapêutica, quando associada a alterações no exame neurológico e, de particular importância, se houver fatores de risco conhecidos para eventos trombóticos.
Na maioria dos casos de TVC a avaliação imagiológica inicial é feita através da tomografia computorizada crânio-encefálica (TC-CE), exame bastante acessível e que permite a exclusão de várias outras patologias. No entanto, nos doentes com TVC, a TC-CE pode ser normal em até um quarto dos casos.2•3•14Atualmente, o gold standard para o diagnóstico desta patologia é a ressonância magnética crânio-encefálica (RM-CE) em combinação com a angiografia por ressonância magnética (angio-RM).2•3Este tipo de exame, de grande sensibilidade e especificidade, tem como desvantagens em relação à TC-CE o facto de não estar disponível em todos os Serviços de Urgência e de ser um exame mais demorado, exigindo a colaboração do paciente quando não sedado. Assim, como alternativa, pode ser utilizada, de forma mais rápida e igualmente fiável, a angioTC em fase venosa (venoTC) cerebral, uma TC com contraste realizada de forma a maximizar a quantidade do mesmo no sistema venoso cerebral.1·3
Neste contexto consideramos de primordial relevância a informação clínica que é incluída no pedido de imagem crânio-encefálica. A grande maioria dos relatórios de TC-CE não referem os seios venosos cerebrais, pelo que é de extrema importância que, perante a suspeita de TVC, esta seja incluída no pedido do exame, de forma a guiar o neurorradiologista a excluir ou reforçar a suspeita deste diagnóstico.
Devemos também ter presente que grande parte das tromboses venosas cerebrais diagnosticadas estão já localizadas em mais do que um seio venoso, como se verificou em mais de metade dos pacientes deste estudo. Crê-se que a trombose venosa isolada de um seio durai pode ser assintomática, devido à enorme capacidade de adaptação do sistema venoso cerebral a um processo de trombose, pelo que pode ser apenas detetada quando esse processo trombótico é já extenso.3
A etiologia da TVC é tipicamente multifatorial, motivo pelo qual a identificação de uma causa não deve excluir a investigação de outras.2 A Em mais de 85% dos doentes com TVC é identificada pelo menos uma causa, geralmente uma condição pró-trombótica.4Na literatura as causas mais frequentes são os distúrbios pró-trombóticos congénitos ou adquiridos, contraceção oral, gravidez e puerpério, cancro, infeções, trauma do sistema nervoso central, procedimentos médicos como punção lombar ou neurocirurgia e vasculites ou outras doenças autoimunes.1·2.4Muitos estudos referem a toma de contracetivos orais como o fator de risco mais prevalente no sexo feminino.15-17Em alguns casos a etiologia permanece desconhecida, variando entre 10% em adultos jovens e até 37% em doentes com mais de 65 anos.18
Nos nossos doentes encontrámos dados similares, confirmando-se o papel preponderante dos fatores hormonais (contraceção, gravidez e puerpério), o que pode ser uma parte importante da explicação para a maior incidência deste tipo de tromboses em adultos jovens do sexo feminino. Em relação à hiperhomocisteinémia, a sua associação a TVC não está de todo esclarecida, havendo estudos em que não foi encontrada associação entre esta condição e a predisposição para TVC. Por outro lado, uma revisão publicada na revista Stroke em 2011 verificou associação estatisticamente significativa entre estas duas entidades.19 Não obstante esta controvérsia, este fator foi por nós considerado, embora não como fator isolado, uma vez que a doente em questão tinha como fator concomitante o uso de contraceção oral combinada.
Como maior limitação neste estudo destacamos a falta de informação dos processos clínicos dos pacientes, sobretudo no que se refere à descrição do quadro clínico à apresentação, e ao estado do paciente na altura da alta. Ainda, dado que a cefaleia foi um sintoma quase universal, seria útil fazer uma caracterização mais detalhada da cefaleia no que diz respeito à presença de sinais de alarme como: agravamento da intensidade da cefaleia em decúbito; despertares noturnos provocados pela cefaleia; agravamento com manobras de Valsalva e/ou com esforço físico; início explosivo ou agudo; localização estritamente unilateral; agravamento progressivo. Esta dificuldade foi ainda maior nos doentes internados antes de 2010, quando ainda não se realizavam registos informatizados em internamento.
Conclusão
A trombose venosa cerebral é uma condição rara, mas com crescente importância e prevalência. Entre 2008 e 2018 na Unidade de AVC do nosso Hospital surgiram 27 casos desta patologia, os quais, em muitos dos aspetos analisados, foram de encontro ao já referido na literatura.
A população era maioritariamente constituída por adultos jovens, de média de idades de 43,5 anos e com predomínio do género feminino (78%). A apresentação mais comum na admissão foi a cefaleia, presente em mais de 95% dos pacientes incluídos no estudo.
Com este estudo pretende-se que os clínicos estejam mais sensibilizados para a suspeição desta patologia que está subdiagnosticada, tem incidência crescente e pode ser causa de grande morbilidade em doentes jovens.
Os achados aqui descritos confirmam que fatores de risco como a contraceção oral, a gravidez e o puerpério e as trombofilias são fatores predisponentes importantes para o desenvolvimento de TVC. A contraceção oral foi o fator predominante, pelo que cada vez mais se torna essencial a sensibilização das mulheres em relação ao risco de eventos trombóticos desta terapêutica, especialmente naquelas com outros fatores de risco associados.