Introdução
Com a idade existem mudanças no ritmo circadiano de várias hormonas que afetam os padrões de sono, assim como o tempo total de sono. Estas alterações diminuem a eficácia do sono noturno, com uma tendência para des-pertares matinais mais cedo, e aumento de sestas durante o dia.1
Em contexto de internamento, a insónia é um problema extremamente frequente, principalmente nos doentes idosos. Estudos apontam que cerca de metade (37% - 47%) dos doentes hospitalizados apresentam insónia/sonolência diurna excessiva.2,3Isto deve-se a uma multiplicidade de fatores, nomeadamente as horas de medicação ou de realização de exames, escassez de quartos individuais, ruído e luminosidade inapropriados, sintomatologia não controlada como dor ou dispneia, ansiedade em relação ao prognóstico, síndromes confusionais agudos, etc.1
A privação ou redução do sono levam a um número crescente de complicações de saúde, tais como - maior uso de medicação hipnótica / sedativa, prolongamento do tempo de internamento, menor capacidade de reabilitação ou recuperação de doença aguda,4 maior risco de comorbilidades, alterações cognitivas, depressão e disfunção emocional - pelo que o seu tratamento é fundamental para a prestação de bons cuidados de saúde.
Neste artigo pretendemos fazer uma revisão das várias possibilidades de intervenção sobre a insónia do doente idoso internado numa enfermaria de agudos.
Além da abordagem não farmacológica, serão analisadas as principais classes de fármacos utilizados na Europa numa perspetiva de aplicabilidade prática.5
TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO
A melhoria dos cuidados prestados aos doentes idosos frágeis passa principalmente pela consciencialização sobre esta temática e implementação de protocolos com foco em medidas não farmacológicas, uma vez que o tratamento farmacológico não é isento de efeitos adversos.6,7Uma das recomendações do programa Choosing Wisely5 é “Evite o uso de hipnóticos como tratamento primário para insónia crónica em adultos; em vez disso, ofereça terapia cognitivo-comportamental e reserve a medicação para tratamento auxiliar quando necessário”, em concordância com o programa “Hospital Elder Life Program”, no qual também é recomendado que as medidas não farmacológicas sejam utilizadas como a primeira linha no tratamento da insónia do idoso hospitalizado.7
Estas medidas, simples e custo-eficazes, sumarizadas na Tabela 1, implicam no entanto pequenas alterações ambientais e comportamentais na rotina habitual duma enfermaria de agudos.6
TRATAMENTO FARMACOLÓGICO
O tratamento farmacológico ideal teria um início de ação rápido, duração de 8 horas e ausência de sedação residual e efeitos adversos.8 Infelizmente este medicamento não existe, pelo que todos os medicamentos apresentados em seguida devem ser utilizados cautelosamente e em segundo plano, como um aditivo ao tratamento não farmacológico.
Benzodiazepinas
As benzodiazepinas (BZDs) são a classe de hipnóticos mais prescrita em ambiente hospitalar.9 São fármacos depressores seletivos do sistema nervoso central, atuando sob os recetores GABAa.10 Melhoram a insónia reduzindo o sono REM, diminuindo a latência do sono e os despertares noturnos.11 A sua absorção não é afetada com o envelhecimento, mas a diminuição da massa magra e aumento da massa gorda corporal observado nos indivíduos mais velhos, bem como a redução das proteínas plasmáticas, resulta num aumento da concentração do fármaco livre e aumento do tempo de semivida.11Inicialmente são muito eficazes em induzir e prolongar o sono, contudo, a tolerância desenvolve-se rapidamente com a administração repetida.12 Para além do ganho de tolerâncias outros efeitos secundários possíveis são a dependência, sonolência diurna, amnésia anterógrada, aumento das quedas e fraturas, e a depressão do sistema respiratório.13
As BZDs com semivida longa como o flurazepam ou lorazepam devem ser evitados porque apresentam maior risco de causar sonolência diurna. Agentes com semivida curta como o triazolam ou alprazolam não devem ser usados a longo prazo por maior risco de dependência, tolerância e síndrome de abstinência. Os agentes com início de ação rápido a moderado e uma duração de ação moderada, como o estazolam ou o temazepam parecem ser as BZDs mais adequadas para uso na insónia em ambiente hospitalar.9
É importante que o médico tenha perceção que os fármacos hipnóticos podem influenciar outras comorbilidades nos doentes hospitalizados. Por exemplo Sato et al compararam o uso de BZDs e fármacos benzodiazepínicos-like, em doentes com insuficiência cardíaca (IC) e concluíram que doentes com IC e insónia medicados com BZDs têm maior risco reinternamentos por descompensação da IC e de morte súbita cardíaca em comparação com doentes a tomar fármacos não benzodiazepinicos.10 Pensa-se que o mecanismo esteja relacionado com a ativação do sistema nervoso simpático, eixo hipotálamo hipófisário e sistema renina-angiotensina-aldosterona.14
A Agência Europeia de Medicamentos recomenda que, se necessário, o tratamento com BZDs seja de curta duração devido ao elevado risco de dependência, tolerância e consequências psicomotoras. O mais aconselhado seria não ultrapassar as 4 semanas de tratamento, nas quais estão incluídas o período de descontinuação gradual do fármaco. A sua prescrição está contraindicada em algumas situações, nomeadamente: abuso de álcool ou outras subs-tâncias, miastenia gravis, insuficiência respiratória grave, apneia do sono e insuficiência hepática grave.15
Benzodiazepina-like
Os fármacos conhecidos como benzodiazepina-like ou não-benzodiazepínicos são fármacos que atuam no receptor GABA, na subunidade alfa-1. São considerados mais seguros que as benzodiazepinas, tendo em conta o menor risco de dependência e tempo de semivida mais curto, apesar de estarem descritos casos de abuso crónico.16
O mais utilizado e mais bem estudado é o zolpidem.17 Apresenta um tempo de semivida curto (2-3 horas) com menor risco potencial de eventos adversos diurnos,18 sendo bem tolerado pelos idosos (Tabela 2).13 Tendo em conta este tempo de semivida curto, o zolpidem é bastante eficaz na indução do sono, mas não na manutenção.18
Princípio activo | Nome comercial | Dose recomendada | Comentário |
---|---|---|---|
Zolpidem | Cymerion® Stilnox® | 5 mg | Risco de sonolência diurna, náuseas, tonturas |
Trazodona | Triticum® Trazone® | 50 a 100 mg | Utilização off-label na insónia Risco de cefaleias, xerostomia, náuseas, hipotensão ortostática e arritmias cardíaca |
Mirtazapina | Remeron® | 7,5 a 15 mg | Utilização off-label na insónia Adequado quando há previsão de tratamento prolongado e não há risco de aumento de peso |
No doente idoso a dose recomendada pelo Infarmed é de 5 mg, e ainda assim pode haver sonolência diurna associada à toma deste medicamento, pelo que é aconselhada a toma do medicamento imediatamente antes de ir para a cama, sendo ideal um intervalo de pelo menos 8 horas entre a toma de zolpidem e a realização de atividades que careçam de atenção (ex: conduzir).19 Os efeitos secundários mais comuns incluem náuseas, tonturas e sonolência13, podendo apresentar de forma rara, um risco aumentado para parassónias como sonambulismo.20 Contudo, apesar de existirem alguns estudos contraditórios no que concerne a performance neurocognitiva com o uso do fármaco, a sistematização da evidência aponta para efeitos deletérios em termos de atenção, memória verbal e velocidade psicomotora21, bem como um aumento do risco de fratura da anca e traumatismo cranioencefálico em idosos.22 Foi também descrita uma associação entre o zolpidem e a ideação suicida.23
Finalmente, os idosos com insónia que usam cronicamente hipnóticos benzodiazepínicos ou benzodiazepina-like têm significativamente maior prevalência de asma, doenças cérebro vascular, doença coronária, insuficiência cardíaca, hipertensão arterial, doença renal, doença pulmonar obstrutiva, diabetes, refluxo esofágico e doença vascular periférica. Na componente prospetiva do estudo ao longo de 5 anos foi encontrado uma relação entre uso de hipnóticos e incidência de cancro e morte mais precoce, estando o risco diretamente relacionado com a dose da toma.24
Antidepressivos
No passado foram utilizados antidepressivos tricíclicos no tratamento da insónia, no entanto atualmente sabe-se que os efeitos adversos são superiores ao benefício.8
De entre os inibidores da recaptação da serotonina (SSRI), alguns têm também sido utilizados pelo seu efeito hipnótico. A trazodona é um modulador da serotonina e um dos efeitos secundários é a sedação, motivo pelo qual é muito frequentemente utilizado no tratamento da insónia. Tem um início de ação rápido (30-60 minutos) e semivida de 5-9 horas (Tabela 2).8 Estudos comparativos com placebo mostraram melhoria da latência e duração do sono, sendo que, em comparação com outro hipnótico (ex: zolpidem), mostrou ser menos eficaz. Tem a vantagem de não estar associado a dependência e ser bem tolerado. Os efeitos secundários mais frequentes são cefaleias, xerostomia e náuseas. Apesar de não ser frequente, pode também estar associado a hipotensão ortostática e raramente a arritmias cardíacas. A dose inicial deve ser baixa (50 mg ao deitar) e no doente idoso não deve exceder os 100 mg.8,25,26Ao fim de 2 semanas pode haver tolerância às propriedades sedativas, pelo que não será adequado para tratamento prolongado.25 Outro antidepressivo com efeito sedativo é mirtazapina (Tabela 2). Curiosamente o seu efeito antidepressivo é maior com doses menores (5-15 mg) do que com doses maiores, em que pode ter efeito inverso. Apesar do pico de concentração máxima ser atingido ao fim de 90 minutos, o efeito sedativo pode só ser objetivável ao fim das primeiras semanas, pelo que pode ser considerada quando há previsão de tratamento prolongado.25,27Um efeito acessório frequente da mirtazapina é o aumento de apetite e peso, pelo que não está indicada nos doentes com excesso de peso, diabetes e apneia do sono.
A agomelatina é um antidepressivo que actua como agonista do receptor MT1 e MT2 da melatonina, tendo também demonstrado um efeito positivo na latência e eficácia do sono. A segurança e eficácia da agomelatina (25 a 50 mg/dia) foram apenas estabelecidas em doentes idosos deprimidos abaixo dos 75 anos.25 No entanto, casos clínicos publicados sugerem potencial benefício mesmo em doentes mais idosos.28 É recomendada a avaliação das transaminases antes do início do tratamento, não devendo ser iniciado se estas forem 3 vezes superiores ao limite superior do normal.29
Melatonina
Melatonina é uma hormona cuja produção se reduz com o envelhecimento. Funciona como hipnótico e como cro-nobiótico, sendo bem tolerada e pode ajudar a regular o ritmo circadiano nos doentes com insónia primária. Os seus poucos efeitos secundários tornam-na uma opção terapêutica atrativa, embora seja comercializado como suplemento alimentar.30 Em Portugal, com controlo pelo Infarmed apenas se encontra disponível a sua formulação com libertação prolongada (Circadin®), que exige receita médica e não sendo comparticipado o seu preço torna-se uma limitação à sua utilização. A dose habitual é de 2 mg ao deitar.31
No entanto, a heterogeneidade dos estudos disponíveis torna complexo discernir o verdadeiro impacto clinico do uso da melatonina em doentes hospitalizados.32-34Adicio-nalmente, este fármaco não se encontra habitualmente dis-ponível em meio hospitalar em Portugal.35
Anti-histamínicos
Os anti-histamínicos, sobretudo os de primeira geração, possuem efeito sedativo devido à antagonização dos recetores 1 da histamina, ao nível do sistema nervoso central. Os fármacos mais utilizados off-label pelo seu efeito adverso sedativo são a hidroxizina e difenidramina. No entanto, o seu uso não é recomendado, sobretudo no idoso, pelos seus efeitos adversos anticolinérgicos, nomeadamente retenção urinária, secura das mucosas, tonturas, aumento risco de quedas,36-38bem como a tolerância que se desenvolve rapidamente.5,39
Antagonistas receptores orexina
A orexina é uma molécula que foi identificada em 1998, também designada de hipocretina, e tem um papel preponderante na manutenção da vigília,40 e outras funções como memória, emoções, motivação, atenção, controlo autonómico e fome.41 Tendo um efeito excitatório no sistema nervoso central, foram produzidas moléculas que antagonizam os seus recetores atuando como indutores do sono. O suvorexant foi aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) para o tratamento da insónia. No entanto, este fármaco não se encontra ainda disponível em Portugal. Estudos comparativos com placebo demonstram que nas doses de 10 e 20 mg, o suvorexant demonstra redução significativa de despertares durante a noite, e diminuição do tempo para adormecer.17 A frequência dos efeitos adversos não foi superior em relação ao placebo, nem apresenta sintomas diurnos residuais ou de abstinência.17 Contudo nas doses mais elevadas de 40 e 80 mg, os efeitos adversos mais comuns foram cefaleias, sonhos anormais, tonturas, infeção do trato respiratório superior e infeção urinária.42 O custo deste fármaco pode vir a ser uma limitação à sua utilização.41
Recentemente em Janeiro de 2022 um novo fármaco desta classe farmacológica, daridorexant, foi aprovado pela FDA nas doses de 25 mg e 50 mg. O estudo publicado no jornal The Lancet Neurology demonstrou que uma dose de 50 mg de daridorexant reduz o tempo necessário para adormecer em 11,7 minutos ao fim de 3 meses de uso estando também associado a uma melhoria no funcionamento cognitivo durante o dia. Os principais efeitos adversos detetados foram cefaleias, sonolência e fadiga. O fármaco também pode causar alucinações, agravamento de depressão ou ideação suicida.43
Estes fármacos acabam por ser mais uma opção terapêutica a considerar no tratamento da insónia no idoso. Parecem não perturbar as funções cognitivas ao contrário das BZDs e isto poderá estar relacionado com o facto do seu mecanismo de ação ser mais direcionado ao sono e não serem depressores do sistema nervoso central. No entanto, os estudos ainda são limitados, e ainda não estão disponíveis em Portugal.44
CUIDADOS À DATA DA ALTA
Nos casos em que se tenha optado por iniciar medicação hipnótica, é importante ter noção que, a eficácia da maioria dos hipnóticos está limitada a 2-3 semanas,45 e desta forma a sua utilização deve ser restrita ao período mínimo necessário. Será importante a referenciação à data da alta para o médico assistente para que haja acompanhamento no seu desmame, que deve ser gradual e com diminuição lenta das doses.
Conclusão
No tratamento da insónia do doente idoso hospitalizado deve ser dada primazia à abordagem não farmacológica. O conjunto de medidas proposto, mesmo que implementado de forma parcial, será benéfico para a qualidade do sono e consequentemente para o bem-estar dos doentes. A implementação de protocolos de silêncio noturno deve fazer parte dos critérios de qualidade de um serviço de internamento hospitalar.
Relativamente ao tratamento farmacológico, este deve ser adaptado ao doente em causa, e considerado um “mal-menor”, uma vez que nenhum fármaco é isento de efeitos adversos.
Mais do que salientar os fármacos menos prejudiciais, é importante que fármacos como benzodiazepinas de longa ação e anti-histamínicos saiam da lista de medicamentos a considerar nesta população idosa e frágil.