O estudo retrospetivo “Febre de origem indeterminada num hospital terciário português”, de Mafalda Ferreira et al,1 publicado recentemente na revista da SPMI, constitui um importante contributo para a prática da Medicina Interna, em particular em Portugal. É uma revisão retrospetiva de 55 doentes no biénio 2016-2017, possivelmente pioneira no nosso meio, com metodologia e discussão bastante assertivas. Os autores (AA) defendem o plano básico utilizado na investigação inicial da fever of unknown origin (FUO) e a necessidade de o ajustar ao caso individual, levando em consideração as particularidades epidemiológicas e as manifestações clínicas. Salienta-se a determinação e o dispêndio de tempo necessários para um estudo desta natureza, o que pode explicar a demora na sua conclusão.
Os AA assinalam que os resultados não diferem, no es-sencial, dos de outras séries publicadas ao longo do tempo, desde a famosa publicação de Petersdorf e Beeson.2 Na maioria, as séries referidas no estudo foram publicadas já a partir do ano 2000. Englobando a FUO um conjunto de doenças muito vasto e heterogéneo, em diferentes regiões do mundo, e mesmo da Europa, podem ocorrer diferenças na representação dos grandes grupos de causas entre as diversas séries. Por exemplo, no que respeita a infeções, nos últimos vinte anos apenas duas, ambas do médio oriente, tiveram taxa semelhante à do presente estudo (41,8%). É intrigante a elevada taxa de febre Q, correspondendo a 9,1% do total e a 21,7% do grupo das infeções. Ainda assim, parece questionável a instituição precoce de doxiciclina “em muitos casos “com base numa “história clínica suspeita e com o intuito de melhorar o desfecho clínico”: pode perturbar a investigação e comporta potencial iatrogénico. Outro aspeto que parece excessivo é a realização da serologia da borreliose em 52% dos pacientes.
Os AA não referem a demora média do internamento dos doentes nem o tempo decorrido até ao diagnóstico final da FUO, dados que foram colhidos e teria sido interessante revelar. A FUO pode tornar-se um quebra-cabeças, exige argúcia, atenção ao detalhe, estudo e paciência. Por vezes, feita a investigação aturada sem atingir o diagnóstico, pode ser adequada uma atitude vigilante em ambulatório, sendo fundamental uma relação de confiança entre a equipa clínica e o doente e família, nem sempre fácil de conseguir. Merece destaque a mortalidade de cerca de 20% da série desde a admissão aos 12 meses de follow-up.
Os AA integram a ecografia abdominal na avaliação inicial, mas outros preferem a realização de tomografia com-putorizada abdominopélvica, que tem maior sensibilidade. A disponibilização praticamente imediata deste exame permite esclarecer prontamente casos de febre sem foco aparente que poderiam ser classificados como FUO. Novos meios laboratoriais podem acelerar o diagnóstico. Por exemplo, no caso da mencionada febre Q, a utilização do designado “painel de zoonoses”, de biologia molecular, mais rápida que a serologia convencional.
Os estudos retrospetivos de FUO levantam questões metodológicas importantes. A simples definição utilizada pode fazer variar o número e etiologia de casos elegíveis. Se se for demasiado estrito na aplicação da definição, o período de 3 dias de investigação no hospital é curto. Imagine-se o doente admitido por febre arrastada apirético nos primeiros dias: pode levar a demora na realização de hemoculturas ou no pedido de certos exames. Outro exemplo: num doente com bacteriemia ou endocardite que colha hemoculturas numa quinta-feira: não sendo “lidos” os resultados ao fim de semana, pode um isolamento positivo que durante a semana sairia ao fim de dois dias só estar disponível ao quarto ou quinto dia, levando a considerar impropriamente caso de FUO. O mesmo pode ocorrer com estudos serológicos. Uma metodologia prospetiva seria do maior interesse em futuros estudos nacionais, idealmente multicêntricos.