Introdução
Mundialmente o número de idosos está a aumentar mais depressa que o número de pessoas em qualquer outra faixa etária. Portugal é o quarto país mais envelhecido do mundo e, de acordo com as projeções, manter-se-á na lista dos países mais envelhecidos do mundo pelo menos até 2050.1 O índice de envelhecimento em Portugal era já de 167 idosos por cada 100 jovens em 2020, estimando-se que atingirá os 300 idosos por cada 100 jovens em 2080.2
Esta mudança demográfica acarreta um impacto significativo na tipologia de doentes internados nos serviços hospitalares. Estudos anteriores mostraram que atualmente os doentes internados nos serviços de Medicina Interna são idosos e muito idosos, com elevado grau de complexidade, sofrendo de multimorbilidade e polifarmácia, o que deve conduzir a uma reflexão profunda sobre o modelo clássico de organização dos serviços e de prestação de cuidados.3,4Ao estudar as características dos doentes idosos internados num Serviço de Medicina Interna e os seus determinantes de outcome, pretendemos com este trabalho contribuir para esta mudança urgente de paradigma.
Material e Métodos
O presente estudo teve um desenho observacional, retrospetivo e longitudinal.
Tratou-se de uma amostra de conveniência, dos doentes com idade igual ou superior a 65 anos internados no Serviço de Medicina Interna do Hospital Garcia de Orta no ano de 2019.
Os critérios de inclusão foram:
Idade igual ou superior a 65 anos;
Internamento no Serviço de Medicina Interna do Hospi-tal Garcia de Orta no ano de 2019.
Os critérios de exclusão foram:
Internamento na Unidade de Hospitalização Domiciliária;
Internamento na Unidade de Cuidados Intermédios;
Internamento na Unidade de Cuidados Intensivos;
Óbito antes da primeira observação pela equipa médica do serviço de Medicina Interna;
Internamento sob responsabilidade de outra especialidade que não a Medicina Interna;
Outros motivos.
O estudo teve por objetivo compreender que fatores podem influenciar o outcome de idosos internados em serviços de Medicina Interna. Para tal, foram consideradas 3 variáveis de outcome: “óbito no internamento”, “reinternamento” e “óbito após a alta” (variáveis categóricas dicotómicas). Estas variáveis de outcome foram cruzadas com variáveis independentes potencialmente preditoras do mesmo: idade, género (feminino/masculino), local de residência (estrutura residencial para idosos/domicílio), dependência para as atividades de vida diária (AVD's) básicas (independência se 6 pontos na Escala de Katz / dependência se 0 a 5 pontos na Escala de Katz), fragilidade (sem fragilidade se 1-4 pontos na Escala de Fragilidade Clínica (EFC) / fragilidade se 5-9 pontos na EFC), demora mediana, número de diagnósticos do internamento, número de comorbilidades, índice de Charlson e CIRS-G.
Para a caracterização da amostra foram utilizadas variá-veis sociodemográficas (género, idade, local de residência), fragilidade (medida pela Escala de Fragilidade Clínica5), dependência para as atividades de vida diária básicas (medida pela Escala de Katz6), número de consultas hospitalares em que foi acompanhado no ano precedente (de qualquer especialidade), número de visitas ao serviço de urgência no ano precedente, número de internamentos no ano precedente (de qualquer especialidade), dados do internamento em estudo (demora mediana, protelamento de alta por motivos sociais, resultado do internamento, diagnósticos do internamento, número de diagnósticos do internamento), comorbilidades (hipertensão arterial, dislipidemia, obesidade, diabetes mellitus, fibrilhação/flutter auricular, cardiopatia valvular, cardiopatia isquémica, insuficiência cardíaca, doença arterial periférica (DAP), doença cerebrovascular, tromboembolismo pulmonar (TEP), doença pulmonar, doença da tiroide, doença renal crónica, doença de Parkinson, síndrome depressiva, síndrome demencial, úlceras de pressão, anemia, quedas com significado clínico, osteoartrose, úlcera péptica, doença hepática crónica, doença neoplásica e VIH), prognóstico (medido pelo índice de Charlson7), carga de comorbilidade (medido pelo índice de CIRS-G8), número total de comorbilidades, número total de fármacos tomados diariamente, dados pós-alta (óbito após a alta, data de óbito, reinternamento no ano seguinte à alta, data de reinternamento, motivo de reinternamento).
A recolha de dados foi realizada através de consulta do processo clínico eletrónico. A pontuação na Escala de Fragilidade Clínica (EFC) e na Escala de Katz foram extrapoladas a partir dos registos médicos e de enfermagem.
Foi realizada a análise descritiva de todas as variáveis de interesse. A distribuição normal das variáveis contínuas foi verificada pelo método de achatamento e curtose. As variáveis contínuas com distribuição normal foram expressas em médias e desvio-padrão e comparadas com as variáveis categóricas usando o teste T de Student, uma vez confirmada a homogeneidade de variâncias entre grupos através do teste de Levene (amostras independentes). Variáveis contínuas sem distribuição normal foram expressas em mediana e amplitude interquartílica e comparadas com variáveis categóricas através do teste de Mann-Whitney (amostras independentes). Variáveis categóricas foram expressas em frequências, comparadas utilizando o teste qui-quadrado (categorias independentes e mutuamente exclusivas, com <20% das células com contagem esperada <5), e calculados riscos relativos. Foi aplicada uma regressão logística binária para cada uma das variáveis dependentes (óbito no internamento, reinternamento e óbito após a alta). As variáveis independentes consideradas foram o género, idade, local de residência, dependência para as AVD's básicas, fragilidade, demora mediana, número de diagnósticos do internamento, número de comorbilidades, índice de Charlson e CIRS-G (selecionadas as que se mostraram significativas na análise bivariada). Asseguraram-se as assunções: observações independentes, com as categorias da variável dependente e das variáveis independentes mutuamente exclusivas; existência de uma relação linear entre as variáveis independentes contínuas e a transformação logit da variável dependente (procedimento de Box-Tidwell); inexistência de multicolinearidade substancial (considerou-se um valor de variance inflation factors <5). Para avaliar a adequação e capacidade de discriminação dos modelos de regressão logística, foram utilizados os testes Hosmer-Lemeshow e estudo da área sob a curva ROC (AUROC) com intervalos de confiança de 95%. O nível de significância estatística foi definido como p = 0,05. A análise estatística foi realizada através do programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences), versão 26.
O presente estudo é uma subanálise dos dados recolhidos no âmbito da tese de Mestrado em Geriatria intitulada “Perfis e necessidades dos idosos internados num serviço de Medicina Interna”.9 Outras subanálises foram apresentadas em congressos.
O protocolo de estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Hospital Garcia de Orta e pela Comissão de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. A recolha de dados decorreu entre dezembro 2020 e julho 2021.
Resultados
No ano de 2019 foram internados 2841 doentes no ser-viço de Medicina Interna do Hospital Garcia de Orta. Destes, 532 (18,7%) tinham idade inferior a 65 anos e 2309 (81,3%) tinham idade igual ou superior a 65 anos. Dos 2309 doentes com idade igual ou superior a 65 anos, 2133 cumpriam todos os critérios de inclusão e nenhum critério de exclusão, sendo excluídos 176 doentes (68 internados na unidade de hospitalização domiciliária, 18 internados na unidade de cuidados intermédios, 10 internados na unidade de cuidados intensivos, 28 falecidos antes da primeira observação pelos médicos do serviço, 38 internados ao cuidado de ou-tras especialidade, 4 sem informação no processo clínico, 7 internamentos por motivos sociais apenas e 3 internamentos eletivos com duração <24 horas).
Dados sociodemográficos, estado funcional prévio e comorbilidades
A média de idades dos doentes incluídos foi de 80,0 ± 7,8 anos, tendo o doente mais idoso 105 anos. O sexo feminino representou 54,7% da amostra. A maioria dos doentes (81,8%) residia no domicílio, 46,6% eram totalmente independentes para as AVD’s básicas e 54,8% apresentavam algum grau de fragilidade (Tabela 1).
Os idosos internados tinham uma média de 6,1 ± 2,8 comorbilidades e tomavam em média 7,4 ± 3,7 fármacos diariamente. As comorbilidades analisadas, por ordem de-crescente de frequência, foram: hipertensão arterial (85,1%), dislipidemia (60,8%), insuficiência cardíaca (47,5%), anemia (45,1%), diabetes mellitus (36,6%), fibrilhação/flutter auricular (35,7%), doença cerebrovascular (33%), quedas com significado clínico (27,4%), síndrome depressiva (26,2%), síndrome demencial (24,1%), doença pulmonar (23,6%), osteoartrose (22,9%), doença renal crónica (19,1%), cardiopatia isquémica (17,9%), úlceras de pressão (16%), obesidade (15,9%), cardiopatia valvular (13,7%), doença neoplásica (11,5%), doença da tiroide (10%), DAP (9,2%), TEP (8,2%), doença de Parkinson (4,8%), doença hepática crónica (2,4%), úlcera péptica (1,4%), VIH (0,2%). Quando à utilização de recursos hospitalares no ano precedente, verificou-se uma mediana de 1 consulta, 1 vinda ao serviço de urgência e 0 internamentos.
Dados do internamento
Os internamentos tiveram uma demora mediana de 11 [1-21] dias, sendo abordados em mediana 4 [1-7] problemas ativos.
Os diagnósticos de internamento mais frequentes foram: lesão renal aguda/doença renal crónica agudizada (n = 770), infeções respiratórias (n = 611), insuficiência cardíaca descompensada (n = 685), distúrbios iónicos (n = 491), insuficiência respiratória parcial (n = 466), fibrilhação/flutter auricular (n = 368), cistite (n = 365), AVC isquémico/AIT (n = 358), anemia (n = 351), insuficiência respiratória global (n = 263), desidratação (n = 148), derrame pleural (n = 129), hemorragia digestiva (n = 113), DPOC agudizada (n = 103), distúrbios ácido-base (n = 101) Fig. 1). Das causas iatrogénicas, as mais frequentes foram um INR supraterapêutico em doentes a tomar varfarina (n = 46) e a hiponatremia associada a fármacos (n = 31). As úlceras de pressão foram diagnóstico de internamento em 80 doentes.
No decorrer do internamento verificou-se o óbito de 304 doentes (14,3%). As infeções respiratórias e urinárias, foram a causa de óbito mais frequente (142 doentes, 46,7% dos óbitos), seguida da doença cerebrovascular (57 doentes, 18,8% dos óbitos) e da doença crónica (44 doentes, 14,5% dos óbitos, destaque para a insuficiência cardíaca). O índice de Charlson médio dos doentes internados foi de 6,1 ± 2,0, correspondendo a uma probabilidade de sobrevivência a 10 anos de 2%.
Dados após a alta do internamento
Tiveram alta do internamento 1829 (85,7%) doentes. O protelamento de alta por motivos sociais ocorreu em 313 (14,7%) doentes.
No ano seguinte ao internamento inicial, verificou-se o reinternamento de 674 doentes (36,9% dos doentes com alta). O reinternamento ocorreu em mediana 72 [0-217] dias após a data de internamento inicial, por motivos diferentes do primeiro internamento em 392 doentes e por motivos semelhantes ao primeiro internamento em 282 doentes.
Os diagnósticos que mais frequentemente causaram reinternamentos foram as infeções respiratórias (89 doentes, 31,7%) e a insuficiência cardíaca descompensada (58 doentes, 20,6%).
No ano seguinte à alta, 632 doentes faleceram, em mediana 135 [0-431] dias após a alta. O motivo de óbito destes doentes não foi analisado.
Variáveis preditoras de outcome
Os doentes que faleceram no internamento eram mais ido-sos, mais frágeis e dependentes, com maior carga de comorbilidade (CIRS-G) e pior prognóstico (índice Charlson). O mesmo se verificou para os óbitos após o internamento (Tabela 2).
A idade, a carga de comorbilidade, dependência para as AVD's e residência em ERPI não parecem ter influência nos outcomes estudados, após aplicação do modelo de ajustamento. Já a fragilidade, destacou-se como preditor dos 3 outcomes em estudo, mantendo significância estatística nos modelos de ajustamento: doentes com algum grau de fragilidade (pontuação igual ou superior a 5 na escala de fragilidade clínica), tiveram maior risco relativo de morte no internamento (RR = 3,1) e no pós-alta (RR = 2), apresentando OR ajustados de 2,19 (óbito no internamento) e 2,04 (óbito após o internamento).
O índice de Charlson também se associou aos 3 outcomes, com OR a variar entre 1,10 e 1,33. O género masculino associou-se a reinternamentos e óbito após a alta, mesmo ajustando para os restantes fatores.
Apenas o modelo de regressão logística para o outcome "reinternamento" mostrou problemas de adequação (teste de Hosmer-Lemeshow p = 0,04) e capacidade discriminativa (AUROC 0,64 (0,62-0,67). Os modelos para os outcomes "óbito no internamento" e "óbitos após a alta" parecem ter uma capacidade discriminativa aceitável com uma AUROC 0,69 (0,66-0,72) e AUROC 0,73 (0,70-0,75) respetivamente.
Discussão
Os doentes internados no serviço de Medicina Interna são muito idosos e complexos, sofrendo de mulimorbilidade, polifarmácia e graus variáveis de funcionalidade e fragilidade.
Verificou-se uma desproporção marcada entre o número de internamentos de doentes com idade igual ou superior a 65 anos (2309 doentes) e o número de doentes com idade inferior a 65 anos (532 doentes). Estes resultados estão de acordo com o que já tinha sido demonstrado previamente em outros serviços de Medicina Interna nacionais,3,4consolidando a hipótese de generalização dos resultados obtidos.
A heterogeneidade do grupo dos idosos é algo que não é visto noutras faixas etárias.
Como exemplo, para os mesmos 70 anos, num extremo do espetro temos idosos robustos, independentes para as AVD’s, física e cognitivamente ativos, e no outro extremo temos idosos com multimorbilidade, fragilidade grave, totalmente dependentes para as AVD’s e sem vida de relação. Entre estes dois extremos do espetro existe toda uma variabilidade individual de comorbilidade, funcionalidade e fragilidade que requer cuidados e seguimentos diferenciados. O presente estudo reforça a necessidade de fazer uma avaliação sistematizada de fragilidade a todos os doentes idosos internados em Medicina Interna, uma vez que esta variável mostra uma associação forte com reinternamentos e óbito no internamento e no pós-alta. A Avaliação Geriátrica Global é o método ideal para fazer esta avaliação holística,10 permitindo a elaboração de um plano de cuidados individualizado que estabelece objetivos realistas para o indivíduo, tem em conta as suas preferências e prioriza a sua qualidade de vida. Torna-se evidente que numa população com uma elevada prevalência de incapacidade e fragilidade, uma equipa interdisciplinar com formação em geriatria e cui-dados paliativos é essencial (Fig. 2). A equipa hospitalar deve manter uma estreita relação com a equipa comunitária para que a transição de cuidados seja eficaz, melhorando a qualida-de dos cuidados prestados.
Alguns diagnósticos de internamento foram particularmente prevalentes nesta população com destaque para as infeções respiratória e urinária, as doenças crónicas agudizadas e a doença cerebrovascular. Foram também estes os principais motivos de óbito no internamento. As infeções respiratórias e as doenças crónicas foram motivo frequente de reinternamento, o que deve levar a uma reflexão sobre medidas de preven-ção de reinternamento nos doentes com estes diagnósticos (Figs. 3 e 4).
Este estudo tem várias limitações, nomeadamente o seu desenho retrospetivo e unicêntrico. A colheita de dados foi limitada pela fragmentação de registos (apenas foi possível considerar óbitos e reinternamentos ocorridos no Hospital Garcia de Orta) e pela informação registada que é muitas vezes parca (Escalas de Fragilidade Clínica e Escala de Katz foram inferidas e não aplicadas diretamente aquando do internamento).
Também quanto aos resultados, só foram analisados óbitos e reinternamentos, mas variáveis como incapacidade, fragilidade e qualidade de vida após o internamento seriam tão ou mais importantes de analisar. O desenho longitudinal, com uma amostra de grandes dimensões são pontos fortes do presente estudo, indo de encontro ao seu objetivo de sensibilizar para a urgência da mudança de paradigma nos Serviços de Medicina Interna. A replicação do estudo noutros serviços permitiria a confirmação dos seus resultados e conclusões.
Conclusão
A melhoria das condições de vida e os avanços da medicina permitiram o aumento da esperança média de vida a que se tem assistido nas últimas décadas. A Medicina Interna não pode ficar alheia a esta alteração sociodemográfica, uma vez que atualmente os idosos são os principais destinatários dos seus cuidados, sofrendo de multimorbilidade e diferentes graus de fragilidade. No entanto os nossos serviços não estão a evoluir ao mesmo ritmo que esta mudança populacional, e como tal o nosso sistema de saúde atual é ainda fragmentado, focado na cura e sem a adequada articulação com o sistema social.
Sabemos que no cuidado da pessoa idosa não pode ser tido em conta apenas o binómio saúde/doença mas também aspetos como a fragilidade, funcionalidade, resiliência, reserva fisiológica, entre outros, o que torna essencial o cuidado multidimensional e multidisciplinar. Necessitamos de adaptar os nossos serviços de Medicina Interna à população que tratamos, com adequação das infraestruturas e protocolos de atuação, bem como formação e sensibilização das equipas para as particularidades do cuidado dos mais idosos.