Introdução
A Assembleia da República (AR) elaborou e aprovou, em dezembro de 2022, a terceira versão do diploma que “Regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível”,1 depois de o Presidente da República e o Tribunal Constitucional lhe terem devolvido as versões anteriores. Se esse diploma se converter em Lei, cria um ato médico novo: provocar morte a pedido do próprio.
Este procedimento é admissível, no entendimento do legislador, se cumprir de forma cumulativa os seguintes pressupostos: o requerente ser adulto, português ou legalmente residente em Portugal, capaz de exercer a sua autonomia e ter, neste contexto “situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, praticada ou ajudada por profissionais de saúde.1” Esta decisão pode converter-se num “procedimento clínico e legal, correspondendo a uma vontade atual, séria, livre e esclarecida”, sendo que é assegurado que “o pedido pode ser livremente revogado a qualquer momento” e que “ao doente é sempre garantido, querendo, o acesso a cuidados paliativos”.1 Admite ainda, e de forma instrumental, que este procedimento pode decorrer por “suicídio medicamente assistido” ou por “eutanásia”.1 A Tabela 1 apresenta as definições utilizadas no enquadramento legislativo atual.
As versões prévias e a adequação dos termos e conceitos utilizados nestes diplomas já foram comentadas pelos autores.2
Para o procedimento “morte medicamente assistida” (que designaremos por morte provocada a pedido do próprio- MPPP, para clarificação de termos e conceitos) a Lei define vários intervenientes (Tabela 2) com competências diversas (Tabela 3).
Para o procedimento prevê-se a criação de um Registo Clínico Especial que integrará as seis fases do processo:
o pedido de abertura do procedimento clínico efetuado pelo doente, que tem de ser pessoa maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, dirigido ao médico orientador, que é escolhido pelo doente;
a segunda fase do procedimento clínico é o parecer do médico orientador, que emite parecer sobre se o doente cumpre todos os requisitos devendo a decisão do doente ser registada por escrito, datada e assinada;
a terceira fase do procedimento clínico é a confirmação pelo médico especialista na patologia que afeta o doente, se estão ou não reunidas as condições referidas no artigo anterior, o diagnóstico e prognóstico da situação clínica e a natureza incurável da doença ou a condição definitiva da lesão;
quarta fase do procedimento, é facultativa, e consta de avaliação por médico especialista em psiquiatria sempre que ocorra uma das seguintes situações: “o médico orientador e/ou o médico especialista tenham dúvidas sobre a capacidade da pessoa para solicitar a antecipação da morte revelando uma vontade séria, livre e esclarecida; o médico orientador e/ou o médico especialista admitam ser a pessoa portadora de perturbação psíquica que afete a sua capacidade de tomar decisões revelando uma vontade séria, livre e esclarecida;
quinta fase, recolhidos os pareceres favoráveis dos vários médicos intervenientes, e reconfirmada a vontade do doente, o médico orientador solicita parecer sobre o cumprimento dos requisitos das fases anteriores do procedimento à Comissão de Verificação e Avaliação (CVA) do Procedimento Clínico de Antecipação da Morte;
a derradeira fase do procedimento clínico é a concretização da decisão do doente.1 Por vontade do doente, o ato de antecipação da morte pode ser praticado no seu domicílio ou noutro local por ele indicado, desde que o médico orientador considere que o local dispõe de condições adequadas para o efeito.1 Além do mé-dico orientador e de outros profissionais de saúde envolvidos no procedimento que provoca a morte podem estar presentes outras pessoas indicadas pelo doente.1
Assumindo que estamos em presença de uma nova com-petência atribuída a médicos (e a outros profissionais e saúde) auscultamos os Internistas Portugueses no que concerne:
grau de congruência dos Projetos de Lei com o enquadramento jurídico e ético do exercício da especialidade Medicina Interna;
clareza das definições utilizadas para identificar as condições necessárias para aceder à morte provocada a pedido do próprio;
capacitação dos internistas nas competências técnicas necessárias para exercício das funções inerentes ao procedimento de morte provocada a pedido do próprio.
Estes dados ajudarão a perceber a sensibilidade dos Internistas Portugueses neste domínio e poderá ter utilidade no debate sobre o que estes projetos de diploma designam como “morte medicamente assistida”.
TERMOS E CONCEITOS
Em Portugal, 62% das pessoas morrem nos Hospitais,3 ou seja, morrem com assistência médica o que torna equívoca e incorreta a expressão “morte medicamente assistida” utilizada na Lei, para referir a MPPP. Neste inquérito utilizamos, intencionalmente, o termo Morte Provocada a Pedido do Próprio (MPPP)2 porque é a expressão correta para o que se quer referir e porque não se presta a erros de interpretação.2,4
Neste texto e no questionário não utilizamos, propositadamente, o termo “eutanásia”, por ser um termo equívoco, usado na Lei veterinária para referiro abate de animais errantes e nos media para referir o abate de cães, gatos, ratos, morsas, gado no matadouro, vítimas do holocausto nazi,…2,4.
Por outro lado ainda há autores que interpretam o termo incorretamente para descrever “decisão de não reanimar”(DNR), para referir a decisão de não iniciar e/ou suspender suporte artificial de funções vitais (SAFV), …)2,4que nada têm a ver com a Lei da AR que “regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível, e altera o Código Penal 2022”.1 O objeto deste diploma está definido no seu art 2º, ou seja a morte que ocorre no “…exercício do direito fundamental à autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde…”.1 Na discussão de um tema desta sensibilidade e complexidade, optamos por utilizar apenas termos explícitos, claros e com significado preciso.2,4
Material e Métodos
Os autores, membros do Secretariado do Núcleo de Estudos em Bioética (NEBio) da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI) elaboraram um inquérito de opinião que distribuíram por todos os Internistas inscritos na SPMI utilizando os recursos eletrónicos do Secretariado da SPMI. O inquérito foi introduzido através de um textode apoio elaborado para o efeito de enquadrar o problema e o conteúdo do projeto de Lei.
A caracterização da amostra incluiu género (frequência absoluta e relativa) e idade (média; mínimo e máximo). Solicitamos que se estimasse o número doentes em fim de vida avaliados pelos respondentes, por ano, discriminados em quatro grupos (< 10 / 10-30 / 31-50 / >50 doentes).
Solicitámos aos respondentes que valorizassem o grau de concordância com 24 asserções, recorrendo a uma escala de Lickert com cinco níveis (discordo totalmente; discordo; sem opinião; concordo; concordo totalmente) (Anexo 1). A resposta ao questionário, em suporte de software específico e exclusivo para este fim, foi voluntária e anonimizada. Os dados apresentados correspondem às respostas coletadas entre agosto e fim de outubro de 2022. Consideramos não haver necessidade de apreciação por Comissão de Ética para os cuidados de saúde, uma vez que há anonimização completa e nenhuma intervenção ou repercussão clínica sobre os intervenientes ou seus doentes. Considerou-se o caráter voluntário da resposta a expressão do consentimento dos respondentes.
Resultados
Obtiveram-se 168 respostas válidas, 94 (55,9%) de sócios da SPMI do género feminino e com média de idades (máximo e mínimo) de 45,5 (26-78) anos. Quase metade da amostra (47,0%) disse avaliar anualmente mais de 50 doentes em fim de vida (Tabela 4).
Do ponto de vista da disponibilidade para se envolverem no processo de MPPP, 51,8% dos respondentes declaram-se indisponíveis para qualquer função no processo de MPPP (Tabela 4). Dos que se declararam disponíveis, a maioria (90%) disponibilizou-se para exercer mais de uma função, incluindo 65% como “médicos orientadores”, 70% para integrar a Comissão de Verificação e Avaliação (CVA) e 56 % para serem “médicos especialistas” (Tabela 4).
Quando inquiridos sobre as condições necessárias para participar no processo de prescrição da medicação inerente ao processo de MPPP, 10% da população, inicialmente indisponível para participar em qualquer uma das tarefas, reconsideraria a sua posição, reduzindo para 42% a taxa de indisponibilidade total para tarefas relacionadas com a MPPP. As necessidades identificadas pelos médicos incidiram em mais treino prático e formação (52%), dispor de um interlocutor para dissipar todas as suas dúvidas (39%), aumentar as condições de segurança para o doente (26%) e 2,4% pretende ter mais garantias contra procedimentos criminais.
No que se refere ao enquadramento jurídico em contexto de doença avançada ou em fim de vida, 52,3% (88) dos inquiridos declararam conhecer o conteúdo da Lei nº 31/2018 que reconhece os “Direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida”, cerca de um quarto (26,7%) considera-a compatível com a Lei que regulamenta a MPPP, mas 44,6% (75) declararam não ter opinião formada. A Lei de Bases dos Cuidados Paliativos é do conhecimento de 59,5% (100) dos médicos Internistas respondentes e 40 (23,8%) considera-a compatível com a Lei da MPPP; também aqui 41,6% (70) da amostra não tem opinião formada (Tabela 5).
A maioria dos respondentes considera haver dissonância entre a presente Lei da MPPP e a Constituição portuguesa, na asserção da inviolabilidade do direito à vida (42,8% são de opinião que são compatíveis) e da inviolabilidade da integridade física e moral (48,8% aceitam haver concordância entre essas leis) (Tabela 5). Já sobre Código Deontológico da Ordem dos Médicos (CD da OM),5 setenta e dois (42,8%) dos responden-tes consideraram o enquadramento da Lei incompatível com o dever de guardar respeito pela vida humana desde o seu início. Um número aproximado (n = 69) considera não haver incompatibilidade nestes dois tópicos, com 16,0% declararem-se sem opinião. A redação atual do CD da OM5 estabelece que é “vedada [ao médico] a ajuda ao suicídio, eutanásia” e 60,1% dos respondentes acha esta asserção incompatível com a proposta legislativa sobre a MPPP. Quando a pergunta se refere ao “uso de meios extraordinários de manutenção de vida e se devem ser interrompidos nos casos irrecuperáveis de prognóstico seguramente fatal e próximo, quando da continuação de tais terapêuticas não resulte benefício para o doente”,5 artigo 67º do CD da OM, 70,2% dos respondentes consideraram-no compatível com o diploma da AR sobre a MPPP.
A atual Lei define as condições clínicas exigíveis para acesso à MPPP, definindo “lesão definitiva de gravidade extrema”, “lesão grave ou incurável” e “sofrimento de grande intensidade”, que os respondentes consideraram não ser garante de segurança no enquadramento do procedimento em questão em 52,9%, 55,9% e 59,5% dos casos, respetivamente. A estes juntam-se 25,0%, 20,2% e 20,8%, de respondentes que sobre as mesmas questões se declaram “sem opinião” (Tabela 5).
Apenas 15,5% (26) dos respondentes consideraram que Portugal providencia bons cuidados de fim de vida e 91,1% (153) considerou que o acesso a Cuidados Paliativos no nosso país não é fácil. Quando a questão colocada foi a legitimidade de priorizar o acesso a Cuidados Paliativos aos requerentes de MPPP, para que se possam cumprir os pra-zos estipulados no mecanismo processual da MPPP, 66,1%dos respondentes discordaram dessa opção.
A sedação paliativa foi considerada uma alternativa legal à MPPP por 48,2% dos profissionais, sendo que 16,6% disseram não ter opinião. Por seu turno, a interrupção voluntária de hidratação e alimentação, por parte do doente, foi considerada uma alternativa legal ao procedimento de MPPP por 37,5% dos respondentes e 19,6% disseram não ter opinião.
No grupo de questões referentes ao esclarecimento dos doentes, os respondentes declararam estar confiantes para esclarecer a situação clínica (concordam ou concordam totalmente) (75,5%), esclarecer os tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis (67,8%), esclarecer os tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis na área de cuidados paliativos (69,6%) e para esclarecer o doente sobre o respetivo prognóstico em 82,7% (Tabela 5). Declararam ainda confiar (concordar ou concordar totalmente) nas suas competênciaspara avaliar a capacidade de decisão (52,3%), identificação das causas remediáveis de sofrimento (87,5%) e o seu tratamento dirigido (86,3%) (Tabela 5).
Discussão
O presente estudo de opinião, inédito no nosso país, é importante porque apresenta dados sobre um assunto que é novo em Portugal e que vai envolver médicos portugueses pela primeira vez. Representa uma visão de Internistas, uma das especialidades mais próximas da discussão das questões relacionadas com o fim de vida.
Os respondentes têm uma distribuição etária e por género concordante com o perfil dos Internistas portugueses e demonstraram ter experiência de acompanhamento de pessoas em fim de vida, já que quase metade da amostra declarou seguir mais de 50 doentes em fim de vida por ano.
Cerca de metade (52%) declarou indisponibilidade para participar em qualquer procedimento relacionado com a MPPP e este reduziu-se para 42% quando questionados sobre as condições necessárias para a sua participação no processo. Como já havia sucedido com o abortamento, as posições pessoais dos médicos e cidadãos são heterogéneas o que justificará objeções de consciência, previstas neste projeto de Lei. São dados compreensíveis já que se não conhece a regulamentação que vai enquadrar estes procedimentos, pelo que os respondentes não têm, por enquanto, a noção de quais são as exigências concretas, para cada uma das funções, que enquadram este novo ato médico. A regulamentação do processo esclarecerá dúvidas e tipificará a formação e créditos de que os protagonistas precisarão para cumprir funções de médico orientador, médico especialista e de membro da CVA.
A Lei da AR enquadra e define as condições clínicas suscetíveis de permitir acesso à MPPP, nos seguintes termos “lesão definitiva de gravidade extrema”, “lesão grave ou incurável” e “sofrimento de grande intensidade”. No entanto, para mais de 70% dos respondentes, as definições apresentadas não são garante de segurança no enquadramento do procedimento em questão. Na interpretação dos autores, nenhuma “doença grave e incurável” nem nenhuma “lesão definitiva de gravidade extrema” justifica ou legitima a solicitação da MPPP. Essas especificações devem ser entendidas como exigências que o Legislador considerou necessárias para circunscrever as condições em que é legal solicitar ajuda para acionar o processo de MPPP, ou seja juridicamente necessárias, mas não suficientes. Já o “sofrimentode grande intensidade” entendido como: “sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”1 pode ser entendido como móbil legal para ativar o processo de MPPP. Reconheça-se, contudo, que a dimensão do sofrimento, percebido como intolerável, só o próprio pode assumir.
Aos profissionais de saúde cumpre proporcionar oportunidades de alívio das causas controláveis do sofrimento. Os respondentes assinalaram as fragilidades do nosso país a disponibilizar tais recursos pela dificuldade sentida no acesso aos Cuidados Paliativos e ao considerar que Portugal não providencia bons cuidados de fim de vida. Este dado deve ser seriamente tomado em conta quando a sociedade e as políticas de saúde (e os políticos) discutem a resposta que pretendemos para os mais vulneráveis e os que mais sofrem. Com este entendimento os autores consideram que no atual diploma sobre MPPP deveria ser considerada a necessidade de incluir, na instrução do processo, a opinião de especialistas no controlo de sintomas e alívio do sofrimento - as equipas de Cuidados Paliativos - que têm a missão explícita de otimizar as oportunidades de alívio das causas remediáveis desse sofrimento.2,10As dificuldades de acesso a estas valências, os tempos de resposta e a forma como se acolhe, avalia e mitiga o sofrimento serão incompatíveis com os tempos de instrução do procedimento inerente à solicitação da MPPP, conforme demonstrou a experiência espanhola sobre este assunto.13 Estas respostas recolocam a necessidade de incluir, em tempo oportuno, no processo de deliberação a opinião de profissionais treinados no controlo de sintomas e alívio do sofrimento.6,10,11Os respondentes não consideraram ajustado atribuir prioridade no acesso a Cuidados Paliativos àqueles que solicitaram MPPP.
Como se sustenta nas “Clinical Practice Guidelines for Quality Palliative Care, 4th Edition- 2019”,10 este nível de intervenção é apropriado em toda a doença grave, em todas as fases do seu percurso, deve centrar-se nas necessidades da pessoa e não no prognóstico, ser proporcionada a todos os níveis e por todas as organizações envolvidas no processo de cuidar, valorizando o que é mais importante para a pessoa, família, cuidadores e pessoas significativas, numa lógica interdisciplinar e holística, assegurada a todos os níveis de cuidado / tratamento, com apoio e orientação dos especialistas em cuidados paliativos sempre que necessário e poderá ser extemporânea se abordada apenas na fase de instrução do procedimento de MPPP.
Na opinião dos autores, para além dos factos documentados há muita falta de informação e de formação sobre:
como se reconhecem as situações de fim de vida4;
como se constroem planos individuais e integrados de cuidados (PIIC)6 para todos os portadores de doença incurável e progressiva;
como se apreendem os objetivos de vida da pessoa doente e se lida com os desejos por ela expressos;
como se integra a família e as pessoas significativas no cuidar;
como se reconhece e estratifica a complexidade e se promove a integração de cuidados em regime de ambulatório;
como se ajusta o PIIC à evolução da doença, incluindoas decisões de não iniciar e suspender tratamentos e procedimentos inadequados e/ou desproporcionais;5,7,9-11
como se procede em situação de morte iminente (últimos dias ou horas de vida);4,6,8
como se exprimem e integram as diretivas antecipadas de vontade (DAV) no PIIC;4,6
como se reconhece e lida com o sofrimento.
Estes desafios, ainda que não exclusivos face ao esforço de legislar e providenciar a MPPP, devem ser prioridade das políticas de saúde e por isso devem ser exigidas pelos profissionais e pela sociedade, quando se pretende que a antecipação da morte por sofrimento intolerável seja a exceção e não uma necessidade determinada pela falta de alternativas, o que consubstanciaria uma atitude eticamente indefensável.
É igualmente necessário fazer formação sobre indicações e justificação para instituir sedação paliativa e/ou suspensão voluntária (pelo doente) de hidratação e alimentação, em contexto de processo avançado de fim de vida/ situação de morte iminente,4 que devem ser parte dos respetivos PIIC.6 Estas intervenções, justificáveis em situações de morte iminente são distintas do processo de MPPP. O conceito de MPPP exclui tudo o que não seja a pedido do próprio (nos termos definidos na Lei) e tudo o que não seja ação / consequência ou seja procedimento que tem por resultado a morte provocada.
A assistência médica no processo de morrer (etimologicamente, morte medicamente assistida) não é o mesmo que morte provocada a pedido do próprio.2,4O acompanhamento do processo de morrer é uma das obrigações dos profissionais de saúde, quando são responsáveis pelos doentes em processo de morte. Esse acompanhamento exige conhecimentos ajustados às necessidades da pessoa que está em morte iminente, centrados nos objetivos de vida e nos de-sejos expressos por essa pessoa. Em Portugal 62% das pessoas morrem nos hospitais pelo que, em Portugal, mais de 62% das mortes são medicamente assistidas, mas não são mortes provocadas a pedido do próprio, razão mais que óbvia para que os procedimentos destinados a provocar a morte a pedido do próprio, referidos no diploma da AR como “… morte que ocorre por decisão da própria pessoa …” não sejam designados como “morte medicamente assistida”, mas sim por aquilo que de facto são: morte provocada a pedido do próprio.2,4Da mesma forma as prescrições médicas destinadas a não iniciar ou suspender suporte artificial de funções vitais, tratamentos inadequados e injustificados e as decisões de não reanimar (DNR) são decisões clínicas inerentes ao acompanhamento de doentes em fim de vida, mas que não se equivalem nem confundem com a decisão de solicitar ajuda para provocar a própria morte (MPPP) ou qualquer outra forma de precipitar a morte.2 A expressão utilizada no diploma da Assembleia da República é incorreta, contrária ao estado da arte e do conhecimento científico e fonte de confu-são por má interpretação de termos e conceitos.
A Lei da MPPP aprovada na Assembleia da República em dez 2022 interseta-se com o restante ordenamento jurídico em questões de fim de vida, nomeadamente com a Lei nº 31/2018 que legisla sobre os direitos dos doentes com doença avançada e em fim de vida, com a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, com o Código Deontológico da Ordem dos Médicos e coma Constituição portuguesa. Os Internistas desta amostra evidenciaram uma razoável dispersão no en-tendimento sobre a concordância entre esses diplomas. Os resultados aqui expressos revelam a necessidade de harmonização dos vários documentos normativos: há termos e definições no Código Deontológico da Ordem dos Médicos que contradizem o diploma da AR, o que é um ponto importante na agenda do próximo Bastonário da OM e que diz respeito a todos os médicos e a todos os cidadãos. A publicação do diploma da AR exigirá alterações legislativas, a começar pelo Código Penal. Estes factos criam uma oportunidade para aprofundar a reflexão e familiarização dos clínicos com as matérias processuais, contextuais e as que enquadram o cuidado dos doentes, mais vulneráveis e em fim de vida.
Surpreende o elevado grau de confiança dos responden-tes nos temas relacionados com a avaliação do prognóstico, a tomada de decisão e a avaliação das causas possíveis e as tratáveis de sofrimento. Estes temas, na literatura da es-pecialidade, são considerados os temas mais desafiantes na prática clínica e aqueles em que a formação é menos incidente ou sólida.6,8,11,12A dimensão da amostra e o tempo de experiência profissional dos respondentes pode ter contribuído para estes achados, o que é uma limitação do estudo. O alargamento da amostra permitirá perceber melhor estes dados. Os autores assumem o seu interesse em dar continuidade a este estudo quando estiver aprovada na Lei definitiva sobre MPPP, desta vez dirigido a todos os médicos portugueses interessados.
Conclusão
O estudo promovido pelo NEBio, entre associados da SPMI, sobre o diploma da AR que “Regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível” permitiu documentar que 42% dos respondentes não têm disponibilidade para participar em nenhuma das funções previstas nesse diploma. Os respondentes consideram que as definições das condições de acesso ao procedimento da MPPP não são garante de segurança para o processo em questão. Na opinião dos respondentes, há incongruências entre a Lei da MPPP e o restante enquadramento jurídico referente às questões de fim de vida. Reconheceu-se a dificuldade de acesso a cuidados paliativos e as limitações institucionais no apoio às pessoas em fim de vida e em morte iminente. Os dados apurados identificam áreas que exigem formação especifica e certificação dos profissionais envolvidos (mas que ainda não está regulamentada) e a necessidade de concentrar atenção no reconhecimento e caracterização do sofrimento, no seu alívio e controlo. Os autores reconhecem a importância de estender o debate aos médicos portugueses e consideram este tópico um dos que justifica uma reaprecia-ção das normas do atual Código Deontológico.