Introdução
O acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico (AVCh) re-presenta cerca de 20% de todos os AVC. Destes, cerca de 15 a 25% ocorrem em doentes medicados com anticoagulantes orais diretos (DOAC), a maioria por fibrilhação auricular (FA).1 A posição proeminente da FA nas unidades de AVC entende-se pela sua elevada prevalência, esta última associada a um aumento exponencial em função da idade e do envelhecimento da população.2
A hipocoagulação oral é eficaz e universalmente recomen-dada em contexto de prevenção secundária na FA, impedindo a formação de trombos intra-auriculares.2 Esta tem recomendação de Classe IA em doentes com FA não valvular e pontuação CHA2DS2-VASc ≥ 2 em homens e ≥ 3 em mulheres.3 Atendendo ao menor risco de hemorragia intracerebral com os DOAC, estes parecem ser favorecidos, comparando com os antagonistas de vitamina K (AVK), como a varfarina e o acenocumarol, em doentes em que a hipocoagulação é necessária.4 No panorama nacional, a utilização dos DOAC apresenta uma tendência de aumento desde 2010, intensificado a partir de 2014, segundo os dados da Infarmed.5
O AVCh é um evento vascular devastador, com um risco de recorrência estimado de 1,2% a 3% por ano.4 Em doentes com FA não valvular, o risco para um evento vascular isquémico é igualmente alto, no pós AVCh.6 Considera-se, por isso, um dilema clínico, o início da hipocoagulação, que deve ser feito após a avaliação dos riscos e benefícios, em doentes selecionados.4 Segundo as últimas diretrizes, não existe recomendação clara na decisão de (re)iniciar hipocoagulação, após AVCh nos doentes com FA.1
Os autores têm por objetivo neste trabalho analisar a hipocoagulação nos doentes com FA não valvular e admitidos por AVCh numa unidade de AVC num hospital central.
Material e Métodos
Foi realizada uma análise descritiva dos doentes admitidos numa unidade de AVC durante um período de 13 anos, de 1 de janeiro de 2009 a 31 de dezembro de 2021. O objetivo principal dos autores foi avaliar a introdução ou manutenção de terapêutica hipocoagulante em doentes com FA e internados por AVCh. Os critérios de inclusão e exclusão foram baseados no ensaio clínico PRESTIGEAF (Prevention of Stroke in Intracerebral Hemorrhage Survivors with Atrial Fibrillation).7 Foram incluídos os doentes internados por AVCh e FA não valvular, considerando-se os doentes com diagnóstico prévio de FA e os diagnosticados durante o internamento. Os critérios de exclusão aplicados foram: idade inferior a 18 anos, hematoma intracerebral de etiologia traumática, mal-formações vasculares, aneurismas cerebrais, oclusão prévia do apêndice auricular e indicação para terapêutica hipocoagulante que não fosse a FA não valvular. A consulta dos processos foi feita através do acesso aos sistemas informáticos, nomeadamente: SClinico®, registo de saúde eletrónica (RSE) e prescrição eletrónica de medicamentos (PEM). Foi feita uma subanálise dos resultados divididos em dois subgrupos, de 2009 a 2014 e de 2015 a 2021, com base na prescrição dos DOAC em Portugal, para análise comparativa com a prescrição dos AVK.
Os autores analisaram os dados demográficos, os fatores de risco associados, hábitos e estilos de vida. Analisada ainda a classificação de fibrilhação auricular e a estratificação de risco com base na pontuação CHA2DS2-VASc. Relativamente aos dados imagiológicos, os tipos de exame avaliados foram a tomografia computorizada crânio-encefálica (TC-CE) e a ressonância magnética crânio-encefálica (RM-CE). Com base nos exames realizados previamente à admissão do doente na unidade, foram analisadas a localização e o volume do hematoma, com base no cálculo estimado através do método 1/2SH.8 Dos doentes incluídos no estudo, foram ainda analisadas a terapêutica hipocoagulante prévia e após a alta, bem como, a antiagregação plaquetária e a mediana do tempo para o (re)início da hipocoagulação. Por fim, foi avaliada a mortalidade por todas as causas, bem como os novos eventos cerebrovasculares isquémicos e hemorrágicos após a alta, pelo período que decorreu o estudo, ou seja, entre os anos de 2009 e 2021.
O tratamento estatístico dos dados foi feito recorrendo ao Excel Microsoft 365®. As variáveis categóricas são apresentadas como número e percentagem da amostra (%). As variáveis quantitativas são apresentadas em médias, medianas, distância interquartil, valor mínimo e valor máximo.
Resultados
Foram admitidos 387 doentes por AVCh, no período entre 2009 e 2021, sendo que 343 doentes não apresentavam FA não valvular e 16 doentes não tinham informação suficiente no processo clínico, porque tinham sido transferidos para outro hospital, sem acesso ao seu seguimento. Cumprindo os critérios de inclusão e exclusão, foram elegíveis 28 doentes, dos quais 22 (79%) do género masculino, com uma mediana de 75 anos (p25 - p75, 71 - 79 anos) (Tabela 1). A maioria dos doentes apresentava FA permanente (n = 20, 71%) e pontuava 4 a 6 na Classificação CHA2DS2-VASc (n = 19, 68%), que é considerado risco moderado a alto. Verificou-se que 19 dos doentes eram hipocoagulados previamente. Os principais fatores de risco identificados foram hipertensão arterial (n = 28, 100%), dislipidemia (n = 16, 57%), doença cerebrovascular (n = 12, 43%) e diabetes mellitus (n = 10, 36%) (Tabela 2). Quanto aos hábitos e estilos de vida, dois dos doentes eram fumadores ativos, dois eram ex-fumadores e cinco tinham consumo moderado de álcool. Na análise imagiológica verificou-se que três doentes não tinham exame de imagem disponível, porque este tinha sido realizado noutro hospital, sem acesso ao sistema informático. Dos restantes 25 analisados, a maioria (n = 23, 92%) tinha realizado TC-CE. A localização do hematoma mais frequente foi núcleo-capsular (n = 13, 52%), seguida de localização lobar (n = 7, 28%) (Tabela 3). Quanto ao volume, foi calculado que 18 doentes (72%) tinham hematomas com um volume inferior a 30 mL e que 6 doentes (24%) tinham um volume entre 30 e 60 mL. De referir ainda que um doente tinha um volume de hematoma superior a 60 ml e estava previamente medicado com varfarina.
Quanto à terapêutica prévia, no período de 2009-2014 (n = 12), a hipocoagulação incluía varfarina (n = 3, 25%) e acenocumarol (n = 4, 33%) e nenhum dos doentes desse período estava medicado com DOAC (Tabela 4). No período de 2015-2021 (n = 16), os doentes estavam medicados com varfarina (n = 4, 25%), acenocumarol (n = 1, 6%), rivaroxabano (n = 4, 25%) e apixabano (n = 3, 19%). Do total de doentes (n = 28), 19 estavam hipocoagulados previamente e nove não estavam medicados com terapêutica hipocoagulante. Dos doentes medicados com AVK (n = 12), dois tinham o INR à admissão infraterapêutico à admissão, cinco com valor de INR supraterapêutico e os restantes cinco com o valor no intervalo de referência (INR: 2-3). A reversão da hipocoagulação foi semelhante nos dois períodos e a terapêutica administrada foi o complexo protrombínico e/ou vitamina K.
Contabilizámos 20 doentes (71%) que não (re)iniciaram hipocoagulação após alta, dos quais 9 no primeiro período e 11 no segundo. Relativamente aos doentes em que foi prescrita hipocoagulação após admissão por AVCh, todos apresentavam pontuação de CHA2DS2-VASc acima de 4 valores. No período 2009-2014, a hipocoagulação pós-alta foi varfarina (n = 1, 8%), acenocumarol (n = 2, 17%) e nenhum doente foi medicado com DOAC. Em contraste, no período 2015-2021, a hipocoagulação prescrita foi exclusivamente DOAC, nomeadamente: apixabano (n = 3, 19%), rivaroxabano (n = 1, 6%) e dabigatrano (n = 1, 6%). A mediana do tempo para o (re)início da hipocoagulação foi de 62 dias no primeiro período e de 50 dias no segundo. Para o total de doentes, foi calculado uma mediana de 60 dias (p25 - p75, 47 - 113 dias), após o diagnóstico de AVCh, sendo o valor mínimo de 13 e o máximo de 362 dias. Quanto à terapêutica antiagregante, apenas 3 doentes foram medicados com ácido acetilsalicílico no período pós-alta e nenhum destes estava sob hipocoagulação (Tabela 5).
Relativamente à mortalidade, verificaram-se 19 óbitos, dos quais 17 no grupo sem hipocoagulação. De referir ainda, que destes, cinco dos óbitos foram no primeiro mês após o AVCh. Relativamente a novos eventos cerebrovasculares durante o período em análise, no grupo sem hipocoagulação após a alta, não se registaram novos eventos. No grupo dos doentes com hipocoagulação após alta (n = 8) verificaram-se dois novos AVC isquémicos, em doentes que estavam medicados com varfarina e rivaroxabano, e um AVCh recorrente, num doente medicado com dabigatrano.
Discussão
O objetivo principal dos autores foi avaliar a introdução ou manutenção de terapêutica hipocoagulante em doentes com FA e internados por AVCh e a amostra validada apresentava um número pequeno, com um total de 28 doentes admitidos num hospital central, por um período de 13 anos.
Quanto aos dados demográficos, há uma clara prevalência do género masculino e uma média de idade elevada (73.5 anos). Por se tratar de uma amostra da população idosa, com uma pontuação de CHA2DS2-VASc alta, torna a discussão sobre a terapêutica hipocoagulante nestes doentes ainda mais relevante.
Uma meta-análise comparou o uso de DOAC e AVK e mostrou que há um risco inferior de até 50% de ocorrerem complicações hemorrágicas intracerebrais, nos doentes medicados com DOAC.9 Assistiu-se a uma mudança do padrão da hipocoagulação prescrita no panorama nacional, que foi visível na diferença de prescrições nos dois grupos de subanálise no nosso estudo retrospetivo, uma vez que, em 2014, os DOAC passaram a ser comparticipados na prevenção do AVC.5
O tempo ideal para (re)iniciar a hipocoagulação em doentes com FA e admitidos por AVCh é atualmente uma questão controversa. As recomendações americanas4 sugerem entre 7 a 8 semanas (49 a 56 dias) após o evento, em situações específicas, nas quais, o benefício supera o risco associado. Os autores verificaram uma mediana de 60 dias para o (re)início da terapêutica hipocoagulante na população estudada.
É de referir que, durante o período em análise, a maioria dos doentes não foi medicada com hipocoagulação após a alta (n = 20, 71%), o que sugere que neste subgrupo de doentes, a prevenção secundária não foi aplicada tendo em consideração os riscos associados. As diretrizes europeias1 e americanas4 sobre a hipocoagulação na FA não valvular, em doentes com AVCh, não têm sustentação científica por ausência de estudos suficientes para suportar uma recomendação neste sentido, pelo que sugerem a ponderação dos riscos e benefícios, caso a caso. Atendendo a este dado, os autores consideram que na maioria dos casos foi aplicado o princípio Primum non nocere.
Quanto à mortalidade, de referir que cinco dos óbitos verificaram-se no primeiro mês após o AVCh, pelo que ainda não teriam iniciado a hipocoagulação. Como o número da amostra é limitativo, não foi possível calcular o risco estimado de mortalidade por todas as causas nos dois grupos (com vs. sem hipocoagulação). Há a destacar que, apenas no grupo com hipocoagulação após a alta (n = 8) se registaram novos eventos cerebrovasculares, tanto isquémicos (n = 2) como hemorrágicos (n = 1), sendo que os três doentes pontuavam 4 a 6 na classificação CHA2DS2-VASc, pelo que eram doentes de alto risco.
Relativamente às limitações do estudo, os autores consideram que a amostra foi influenciada pelos critérios de admissão na unidade de AVC, que presta cuidados de nível intermédio - nível II. É possível que os doentes críticos, que necessitavam de maiores cuidados, tenham sido admitidos na unidade de cuidados intensivos, pelo que não foram considerados neste estudo. Também se sabe que, sendo o AVCh um evento vascular devastador, muitas vezes associado a um mau prognóstico com possibilidade de óbito em poucas horas ou dias, a admissão de alguns destes doentes poderá ter ocorrido em contexto de enfermaria, não tendo, igualmente sido considerados no estudo.
Outra das limitações do estudo foi a obtenção dos dados através da consulta dos processos eletrónicos, na qual não foram considerados os diagnósticos não introduzidos e os exames realizados previamente à admissão do doente no hospital. A referir, ainda, a dificuldade em aceder ao processo eletrónico se o doente já tiver falecido no momento da consulta do processo, pelo que a recorrência de eventos cerebrovasculares num número significativo de doentes não foi considerada. Admitiu-se o início da hipocoagulação com base da data da prescrição da hipocoagulação na prescrição eletrónica hospitalar e/ou na PEM, ou seja, na data em que o doente levantava a medicação, mas que pode não ter sido a data exata em que ocorreu o início da terapêutica.
Por fim, a grande limitação do trabalho foi o número pequeno da amostra que impossibilitou a análise estatística, tal como tinha sido previsto inicialmente, nomeadamente o cálculo do risco estimado de mortalidade por todas as causas e novos eventos cerebrovasculares isquémicos e hemorrágicos em doentes com AVCh e FA.
Conclusão
A maioria dos doentes internados com FA e admitidos por AVCh não (re)iniciou hipocoagulação após a alta, apesar de serem um grupo de alto risco para novos eventos cerebrovasculares, com a ressalva que este número foi influenciado pela morte precoce (óbito no primeiro mês após o AVCh). Apesar de haver indicação, verificou-se que foi aplicado o princípio Primum non nocere, após ponderação dos riscos e benefícios associados.
Assistiu-se a uma mudança no padrão de prescrição de AVK para DOAC, comparando os dados dos dois períodos em análise, que foi concordante com o relatório do Infarmed a par com as diretrizes internacionais, atendendo ao maior risco hemorrágico associado com o AVK.
Os autores destacam a necessidade de estudos prospe-tivos para obter evidência quanto à melhor estratégia tera-pêutica neste grupo de doentes.
Apresentações prévias
O presente trabalho foi apresentado no 23º Congresso do Núcleo de Estudos de Doença Vascular Cerebral da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna. Em seguida, encontra-se o Certificado da apresentação da Comunicação Científica.