Introdução
Em 2013, a Organização Mundial de Saúde passou a considerar a diabetes gestacional (DG) um subtipo de hiperglicemia diagnosticada pela primeira vez na gravidez, diferenciando-se da diabetes na gravidez por apresentar valores de glicémia intermédios entre os níveis considerados normais na gravidez, e os valores que excedem os limites diagnósticos para a população não grávida.1,2Esta é uma das complicações médicas mais frequentes da gravidez, cuja incidência tem vindo a aumentar nos últimos anos.3
Diversos fatores de risco foram identificados, como: idade materna avançada, etnia (hispânica, afro-americana e asiática), índice de massa corporal (IMC) pré-concecional elevado, antecedentes de DG ou antecedentes familiares de diabetes mellitus (DM) tipo 1 ou tipo 2.3
O estudo Hyperglycemia and Adverse Pregnant Outcomes (HAPO) demonstrou uma relação linear entre os níveis de glicémia materna e as morbilidades materna, fetal e perinatal, que deverão ser consideradas e rastreadas durante a vigilância pré-natal.1,3
Em Portugal, o Consenso sobre Diabetes e Gravidez e suas posteriores atualizações recomendam a utilização dos critérios de diagnóstico preconizados pela International Association of Diabetes and Pregnancy Study Groups (IADPSG), sendo também nesses critérios que se baseia o diagnóstico das grávidas seguidas na nossa instituição.4
Os dados anteriores do Hospital da Horta têm demonstrado, por motivos não esclarecidos, uma prevalência superior desta condição na população de grávidas seguidas. Assim, o objetivo do estudo foi avaliar e comparar a prevalência de DG nas grávidas acompanhadas com os registos nacionais, tal como perceber o movimento assistencial da consulta e os resultados obstétricos e perinatais das grávidas diagnosticadas com DG. A escolha do ano de 2021 teve como objetivo apresentar dados recentes da população em questão.
Métodos
Estudo descritivo onde os autores analisaram os dados registados na base na plataforma “Sclinico”.
O estudo foi dividido em duas fases. Na primeira fase foram analisados os processos clínicos de todas a grávidas com parto no Hospital da Horta entre janeiro e dezembro de 2021 e dos bebés resultantes destas gravidezes. Na segunda fase do estudo, foram analisados os processos de todas as grávidas seguidas em consulta de Diabetes Gestacional nesta instituição no mesmo intervalo de tempo.
Foram registadas as diversas variáveis demográficas e clínicas, nomeadamente idade da grávida, ilha de proveniência da grávida, data e tipo de parto, idade gestacional aquando de parto, peso ao nascer dos bebés (de acordo com as curvas de crescimento adaptadas à realidade portuguesa), escolaridade da grávida, IMC antes da gravidez, antecedentes familiares de diabetes, antecedentes pessoais de DM ou DG, diagnóstico de DG e idade gestacional aquando do mesmo, data da primeira consulta de DG e tempo de espera para primeira consulta, terapêutica utilizada na gravidez, valores de hemoglobina glicada ao longo da gravidez, complicações obstétricas registadas e resultados da PTGO após o parto (Tabelas 1 e 2).
A informação resultante dos dados adquiridos foi sumarizada através de medidas de estatística como frequências absolutas, frequências relativas e médias.
O trabalho foi submetido à Comissão de Ética do Hospital da Horta e aprovado pela mesma.
Resultados
Na primeira fase do estudo, relativamente aos partos realizados entre janeiro e dezembro de 2021, foram incluídas 207 grávidas, das quais 73 (35%) tiveram diagnóstico de DG ao longo da gravidez.
Em relação à proveniência destas grávidas por ilha, registaram-se 100 oriundas do Faial, 81 do Pico, 14 de São Jorge, 9 das Flores, 2 da Graciosa e 1 do Corvo. Particularizando as grávidas com diagnóstico de DG, 52% (38 grávidas) provinham do Pico, 40% (29 grávidas) do Faial, 4% (3 grávidas) das Flores, 3% (2 grávidas) de São Jorge e 1% (1 grávida) do Corvo.
A idade média das grávidas foi de 31 anos (idade média das grávidas sem DG 31 anos e com DG 32 anos). No que concerne à divisão por faixas etárias das grávidas com DG, 1% (1 grávida) tinha menos de 20 anos, 32% (23 grávidas) tinham entre 20 e 29 anos, 58% (42 grávidas) tinham entre 30 e 39 anos e 10% (7 grávidas) tinham idade superior.
Quanto ao tipo de parto, 58 grávidas foram submetidas a cesariana (27% das grávidas sem DG e 30% das grávidas com DG).
Analisando os recém-nascidos (RN) de acordo com as curvas de crescimento adaptadas à realidade portuguesa, 157 bebés tinham peso adequado para a idade gestacional (AIG) (77% dos filhos de grávidas sem DG e 74% dos filhos das grávidas com DG), 26 eram leves para a idade gestacional (LIG) (13% dos filhos de grávidas sem DG e 12% dos filhos das grávidas com DG) e 24 eram grandes para a idade gestacional (GIG) (10% dos filhos de grávidas sem DG e 14% dos filhos das grávidas com DG).
O resumo dos dados relativos a esta primeira fase do estudo apresentam-se de seguida na Tabela 1.
A segunda fase do estudo dirigiu-se às grávidas com DG seguidas em consulta hospitalar ao longo do ano de 2021, tendo assim sido incluídas 81 grávidas.
Segundo os registos de consulta, e do ponto de vista da escolaridade, 6 grávidas (7%) tinham apenas ensino primário, 16 (20%) tinham o ensino básico obrigatório, 24 (30%) ensino secundário, 33 (41%) ensino superior e em 2 dos casos (2%) não existia registo da escolaridade.
Analisando o IMC destas grávidas antes de engravidar (de acordo com o peso habitual antes da gravidez referido pelas próprias), o IMC médio era de 28,7, sendo que 1 grávida tinha baixo peso (1%), 24 grávidas peso normal (30%), 28 grávidas tinham excesso de peso (35%) e 28 grávidas obesidade (35%).
No que diz respeito aos antecedentes, 29 grávidas (36%) tinham pelo menos um familiar de primeiro grau com DM1ou DM2, e 28 grávidas (35%) tinham registo de pelo menos uma gravidez anterior com diagnóstico de DG.
Quanto ao tempo de gravidez aquando do diagnóstico, 15 grávidas foram diagnosticadas no primeiro trimestre de gravidez (19%), 27 das grávidas no segundo trimestre (33%) e 39 das grávidas no terceiro trimestre (48%). Em média, as grávidas esperaram cerca de 4 semanas desde o diagnóstico até à primeira consulta hospitalar.
Todas as grávidas com DG tiveram aconselhamento die-tético pela equipa de nutricionistas da instituição e 10% (8 grávidas) necessitaram de terapêutica farmacológica (7 grávidas cumpriram terapêutica com metformina e 1 grávida com insulina).
Em 45 grávidas com DG (62%) foi realizado pelo menos um doseamento de hemoglobina glicada ao longo do segui-mento em consulta, sendo a média de 5 % (hemoglobina glicada mínima 5% e máxima 6%).
Destas grávidas, 13 apresentaram também hipertensão arterial e 3 pré-eclâmpsia. Verificou-se 1 aborto espontâneo, 1 hipoglicémia neonatal, 6 bebés com hiperbilirrubinémia neonatal, 1 trauma de parto não especificado, 1 anoma-lia congénita não especificada, 1 admissão em Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais por síndrome de privação neonatal e 8 com outras morbilidades não especificadas.
Em 20% dos casos (16 grávidas) realizou-se prova de reclassificação após o parto, sendo a prova normal em 15 grávidas e uma evidenciando diminuição da tolerância à glucose. Na Tabela 2, resumem-se os dados relativos à segunda fase do estudo.
Discussão
A DG é uma complicação médica frequente na gravidez que se associa a um maior risco de complicações obstétricas e neonatais.
No nosso Hospital foram realizados, entre janeiro e dezembro de 2021, 207 partos (quer de grávidas com diagnóstico de DG, quer sem diagnóstico de DG), sendo que as grávidas com DG perfizeram 35% do total de partos, o que evidencia uma maior prevalência desta complicação nesta população em relação aos dados do Observatório Nacional de Diabetes (OND) que relataram uma prevalência de 9% no ano de 2018.5 De realçar que o levantamento deste tipo de dados já foi realizado por diversas vezes nesta instituição, evidenciando-se, tal como no panorama nacional,6 uma tendência crescente da prevalência de DG, mas sempre com dados percentuais elevados em relação à média nacional (prevalências em 2013, 2014, 2015 e 2017 de 15%, 26%, 29% e 31% respetivamente). Apesar de contabilizadas todas as grávidas com parto em 2021, algumas das grávidas seguidas neste Hospital não foram incluídas nesta fase do estudo uma vez que, por opção própria ou por necessidade de transferência para outro hospital com outras valências, o parto foi realizado em outra instituição, pelo que esta comparação tem de ser interpretada com as devidas limitações.
Apesar do maior número de grávidas ter como origem a ilha Faial (100 grávidas, 48% do total de grávidas), a maior percentagem de grávidas com diagnóstico de DG tem como origem a ilha Pico (52%).
Em relação à idade das grávidas, comparando os dados demográficos das grávidas incluídas na primeira fase do estudo com os do OND,6 podemos verificar que apesar dos dados nacionais apontarem para um aumento da prevalência da DG com a idade, no nosso estudo a prevalência é menor nos extremos etários. No entanto, é também de salientar que a população nestas faixas etárias é significativamente menor, o que condiciona alguma dificuldade na interpretação dos resultados.
No que concerne ao tipo de parto, apesar da maior prevalência de DG na nossa população, verifica-se uma menor percentagem de partos por cesarina (30%, versus os 36% do registo nacional referente ao período entre 2017 e 2020).5 Este fato pode dever-se à implementação do programa da Direção Geral de Saúde (DGS) para redução da taxa de cesarianas nos hospitais portugueses.
Analisando os RN e comparando com os dados nacionais do período 2017-2020,5 podemos observar que, apesar de serem utilizados os alvos glicémicos recomendados a nível nacional, os nossos registos demonstram uma maior prevalência de RN LIG (12% na nossa instituição versus 10%). Em contrapartida observámos também uma maior percentagem de RN GIG (14% vs 12%).
Uma vez que, como já referido anteriormente, um número considerável de grávidas, por diversos motivos, não tem o seu parto nesta instituição, optámos por, numa segunda fase, do estudo analisar os dados das grávidas com DG seguidas em consulta de especialidade na instituição durante o mesmo período de tempo, obtendo assim um total de 81 grávidas com DG.
No que diz respeito à escolaridade das grávidas, tal como já publicado em outros estudos nacionais, no nosso estudo existe também uma percentagem considerável de grávidas com mais de doze anos de escolaridade (41% das grávidas com ensino superior).7 De realçar que esta percentagem é também superior aos dados de estudos anteriores na nossa instituição (em 2017, 27% das grávidas possuíam curso superior).
De acordo com o Inquérito Nacional de Saúde, em 2019, 54% da população com idade superior a 18 anos tinha excesso de peso ou obesidade.5 Os dados colhidos revelam que estes dados são superiores na nossa população de grávidas, atingindo um total de 69% das grávidas com excesso de peso ou obesidade antes da gravidez, no entanto não foi possível relacionar estatisticamente este dado com a maior prevalência de DG.
De acordo com os critérios de diagnóstico atuais, foi diagnosticada uma percentagem significativamente maior de grávidas com DG no primeiro trimestre (19%) em comparação com o panorama nacional entre 2017 e 2020 (3%).5
Tal como a nível nacional, também se tem verificado progressivamente um aumento do intervalo entre o diagnóstico e a primeira consulta hospitalar que na nossa instituição era de 2 semanas em 2017 e em 2021 aumentou para 4 semanas (versus 5 semanas a nível nacional entre 2017 e 2020). Este aumento poderá refletir, além da maior sobrecarga dos serviços, a alteração que se verificou no protocolo de referenciação a esta consulta na nossa instituição, com a introdução dos pedidos de consulta numa plataforma digital que pode ter atrasado esta referência.
No que diz respeito ao tratamento realizado, todas as grávidas com diagnóstico de DG receberam aconselhamento dietético pela equipa de nutricionistas desta instituição. Comparando com os dados do registo nacional,5 a percentagem de grávidas que recebeu terapêutica farmacológica foi significativamente inferior (35% a nível nacional versus 10% neste hospital), apesar dos mesmos alvos glicémicos, o que, na nossa opinião, se deve ao aconselhamento dietético, e ao seguimento personalizado e constante ao longo da gravidez.
Neste estudo não foi avaliado o controlo glicémico realizado ou se foram atingidos os alvos glicémicos, sendo importante avaliar estes pontos posteriormente de modo a estabelecer uma eventual relação com as restantes variáveis avaliadas.
Apesar de, a nível nacional a percentagem de grávidas não reclassificadas após o parto ser considerável (37% entre 2017 e 2020), os nossos resultados são muito infe-riores neste campo, sendo, infelizmente, apenas 20% das grávidas acompanhadas a realizar esta avaliação.5 Por vários motivos a reclassificação após parto tem sido muito difícil de conseguir na maioria das grávidas, em particular pelo facto de a revisão pós parto já não se realizar por regra no hospital, o que permitia que anteriormente esta avaliação fosse incluída no protocolo de revisão. Apesar de, por vários meios, se tentar até à data melhorar a coordenação entre os cuidados prestados nos Cuidados de Saúde Primários e no Hospital, tendo em vista a melhoria da obtenção deste parâmetro, os resultados continuam aquém do esperado, ponderando-se atualmente, em alternativa, manter o seguimento após parto destas grávidas em consulta de DG, de forma a colmatar a lacuna em questão. Das mulheres que foram reclassificadas, 94% (15 grávidas) apresentaram prova de tolerância à glicose sem alterações.
Conclusão
A DG é uma complicação comum da gravidez em que se verifica intolerância à glicose, iniciada ou diagnosticada pela primeira vez durante a gravidez em curso e que tem apresentado uma prevalência crescente.6,8Em relação aos partos em 2021, tal como se verificou em levantamentos de dados anteriores na nossa instituição, a prevalência de DG aumentou para 35%, valor muito superior aos últimos regis-tos nacionais de 2018 que relatam prevalência de cerca de 9%, não se tendo conseguido apurar até à data o motivo de tal discrepância de dados.
Também de realçar, a maior percentagem de recém-nascidos leves para a idade gestacional e grandes para a idade gestacional em comparação com os dados nacionais, apesar de serem utilizados os mesmos alvos glicémicos.
Fica por esclarecer ainda, a elevada prevalência de DG nas grávidas da ilha Pico, não tendo sido possível apurar qualquer relação com o excesso de peso e obesidade, ou com quaisquer outros fatores de risco, sendo necessário realizar estudo estatístico comparativo para esclarecer este dado.
Infelizmente, o tempo de espera até à primeira consulta aumentou consideravelmente no nosso Hospital por razões já expostas anteriormente, sendo o processo de referenciação algo a rever de forma a diminuir o mesmo.
Como se verificou em levantamentos de dados anteriores, a percentagem de grávidas com DG que realizaram prova de reclassificação foi muito inferior à dos dados nacionais, estando a serem analisadas algumas estratégias para melhorar este parâmetro.
Com este estudo pretende-se alertar para esta maior prevalência de DG entre as grávidas que utilizam a nossa instituição, com uma grande disparidade face aos registos nacionais, com tendência crescente e que pode ser causa de complicações obstétricas e neonatais, estando até à data por esclarecer a causa para a mesma, não se podendo, por exemplo excluir uma base genética.
Torna-se essencial pois, pesquisar a causa para a maior prevalência desta patologia na nossa população, assim como, reforçar a sensibilização para a vigilância dos fatores de risco e assim reduzir o potencial risco de complicações na gravidez.