Introdução
COVID-19, a doença provocada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, evoluiu rapidamente para uma pandemia desde a sua descoberta em 2019, impingindo uma reorganização importante dos cuidados de saúde.1
Em Portugal, desde o início da pandemia até 31.12.2021, foram documentados 1 389 646 casos de doença, dos quais 1,36% (n = 18,955) acabou por falecer. Também, o número de doentes internados com COVID-19 foi colossal, com especial ênfase no período de janeiro a meados de março de 2021 na qual o número diário de internamentos foi sempre superior a 1 milhar (pico máximo a 01.02.2021 com 6869 doentes internados).2
Os profissionais de saúde enfrentaram o desconhecido da infeção SARS-CoV-2, as intercorrências a ela associada, as comorbilidades de cada doente infetado e a fragilidade do fim de vida intensificada pela restrição do contacto físico e familiar. Necessariamente, mantiveram os cuidados a todos os outros doentes, obrigando a múltiplas adaptações estruturais para dar resposta às necessidades da população.3 O desafio foi estoico.
É inegável o papel basilar da Medicina Interna nesta luta, atuando em “todas as frentes desta batalha contra a COVID-19”, dando resposta na urgência, internamento, planeamento e investigação. Importa referir que a ULS Viseu Dão-Lafões constitui uma unidade de saúde de referência, dando resposta a toda a Região Interior Centro do país, incluindo o ACES Dão-Lafões, três concelhos do ACES Douro-Sul (Moimenta da Beira, Sernancelhe, Penedono) e toda a ULS da Guarda (referenciação secundária) - tendo sido a Medicina Interna a assumir a assistência aos doentes COVID-19, inicialmente com apoio assistencial de outras especialidades médicas.
Tal como reiterado pelo Colégio de Medicina Interna, “A pandemia veio reforçar o conceito de que não há doenças exclusivas duma determinada especialidade, há doentes que precisam de múltiplos saberes coordenados”, espelhando a complexidade da abordagem dos doentes nesta fase.3
Este trabalho tem, então, como objetivo analisar todos os doentes internados numa enfermaria de um hospital central, durante 9 meses, avaliando as suas principais caraterísticas e necessidades, demonstrando também a importância de cada profissional implicado.
Material e Métodos
Desenho do estudo
Estudo retrospetivo, com análise descritiva de todos os doentes com infeção SARS-CoV-2, internados numa enfermaria do serviço de Medicina Interna, da ULS Viseu Dão-Lafões, no período compreendido entre janeiro-abril e julho-novembro de 2021 (n = 394). Foram excluídos todos aqueles que foram admitidos na enfermaria, com outro diagnóstico que não infeção SARS-CoV-2, no período supracitado.
Procedeu-se à análise das caraterísticas da amostra, per si, utilizando as seguintes variáveis: género, idade, grau de dependência, presença de fatores de risco cardiovascular e hábitos tabágicos. Relativamente ao internamento, foram avaliadas variáveis como proveniência (urgência versus outros serviços), duração média de internamento, terapêutica instituída, orientação à data de alta, mortalidade e readmissão aos 30 dias após a alta. Após aferição das patologias observadas, foram ainda caraterizados os diagnósticos principais e secundários.
A consulta dos processos foi realizada através do acesso aos sistemas informáticos, nomeadamente: SClinico®, registo de saúde eletrónica (RSE) e prescrição eletrónica de medicamentos (PEM).
Análise Estatística
A análise estatística foi realizada com recurso ao Statistical Package for the Social Sciences® (SPSS) versão 28.0. As variáveis categóricas são apresentadas como frequências absolutas e relativas (%). As variáveis quantitativas são apresentadas em médias, valor mínimo e valor máximo.
Procedimentos
O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética para a Saúde, da ULS Viseu Dão-Lafões e está em conformidade com os princípios éticos e legais, segundo as recomendações da Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.
Resultados
A1. Caraterização da amostra
Durante janeiro-abril e julho-novembro de 2021, foram observados 394 doentes, 43,40% (n = 171) do género feminino e 56,60% (n = 223) do género masculino, com uma idade média de 70,42 anos (mínimo de 22 e máximo de 101 anos) e uma prevalência de doentes entre os 70-79 anos (na verdade, 59,90% dos doentes apresentava uma idade igual ou superior a 70 anos) (Fig. 1).
Por forma a avaliar o grau de dependência dos doentes - um indicador importante na avaliação e gestão de cuidados, sobretudo em contexto de crise sanitária e necessidade de definição de tetos terapêuticos - foi aplicado o índice de Katz. Verificou-se que 63,45% dos doentes eram independentes, enquanto os restantes apresentavam algum grau de dependência (14,97% moderada; 8,88% ligeira; 7,36% grave; 5,33% total). Da amostra, apenas 15,48% (n = 61) dos doentes eram institucionalizados.
A maioria apresentava pelo menos um fator de risco cardiovascular (Fig. 3), sendo que apenas 24,11% (n = 95) dos doentes não tinha risco cardiovascular associado. Quanto à presença de hábitos tabágicos, do que se conseguiu apurar, 7,36% (n = 29) eram fumadores e 21,57% (n = 85) não fumadores.
Quanto à proveniência, 98,73% dos doentes foram encaminhados do serviço de urgência, enquanto os restantes foram transferidos de outros serviços. Em média, permaneceram internados durante 13,95 dias (número mínimo de dias de internamento = 1; número máximo de dias de internamento = 106).
Da terapêutica imposta, 84,26% (n = 332) realizaram corticoterapia com dexametasona [6 mg, 1x/dia, em média, durante 7-10 dias] e foi iniciada antibioterapia em 47,21% (n = 186) doentes, por identificação/suspeita de sobreinfecção bacteriana. Cumpriram, em média, 7,44 dias de antibioterapia, discriminando-se na Fig. 3 os fármacos mais utilizados.
Ainda no que diz respeito ao tratamento, 85,79% (N = 338) dos doentes apresentaram insuficiência respiratória, com necessidade de oxigenoterapia suplementar, que realizaram, em média, durante 8,52 dias - nem sempre o desmame ventilatório foi conseguido, pelo que 1,78% (n = 7) tiveram alta com indicação para manter oxigenoterapia e outros já a fariam cronicamente em ambulatório. A ventilação mecânica não invasiva foi iniciada em cerca de 22,08% dos doentes (n = 87), com uma duração média de 5,38 dias. Cerca de 7,61% (n = 30) dos doentes foram transferidos para a Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente, por forma a realizar ventilação mecânica invasiva. O suporte ventilatório/oxigenoterapia implementado para cada doente admitido com COVID-19 foi definido com base na condição clínica, status de base e prognóstico funcional e vital de cada doente (Fig. 4).
Ao longo do internamento, foram ainda identificadas várias intercorrências, desde distúrbios hidroeletrolíticos (13,20%), descompensação de diabetes mellitus (8,63%), elevação dos parâmetros de citocolestase (7,61%), entre outras (Tabela 1). Destaque para a identificação de 3 casos de pneumomediastino e 1 caso de pneumotórax.
Da amostra total, apenas 29,44% (n = 116) dos doentes eram vacinados. Registaram-se 23,86% (n = 94) óbitos e 6,35% (n = 25) altas contra parecer médico, verificando-se que a grande maioria dos doentes regressou para o domicílio ou instituição, no qual residiam previamente ao internamento [60,15% (n = 237) para domicílio próprio e 7,11% (n = 28) para as instituições]. Referir ainda que, 1,52% (n = 6) tiveram consulta pós-COVID-19 e 2,28% (n = 9) consulta de outras especialidades médicas. Foram, ainda, identificadas 10 readmissões nos primeiros 30 dias após a alta, 8 das quais nos primeiros 21 dias - os motivos de readmissão foram: insuficiência cardíaca descompensada (n = 3), lesão renal aguda (n = 2), infeção respiratória/pneumonia bacteriana (n = 4), acidente isquémico transitório (n = 1).
A2. Caraterização das Patologias Observadas
A infeção SARS-CoV-2 foi o diagnóstico principal na maioria dos doentes. Porém, em cerca de 36 doentes o diagnóstico que motivou o seu internamento foi outro - nestes a COVID-19 surgiu como diagnóstico secundário, identificado no teste à admissão de doentes a cargo de outras especialidades ou no teste rastreio de quinto dia de internamento.
Da análise dos diagnósticos secundários, verifica-se que a maioria das patologias se enquadra sobretudo no grupo de doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas (26,28%) [com especial enfâse de fatores de risco cardiovascular, como diabetes mellitus (n = 112), dislipidemia (n = 191) e obesidade (n = 107)], no grupo de doenças do aparelho respiratório (22,46%) [insuficiência respiratória (n = 338), pneumonia bacteriana por agente não identificado (n = 34), doença pulmonar obstrutiva crónica (n = 20) e asma (N = 13)] e no grupo de doenças do aparelho circulatório (19,48%) [hipertensão arterial (N = 233), insuficiência cardíaca (n = 52), fibrilhação auricular (n = 46), tromboembolismo pulmonar (N = 6)].
Discussão
Relativamente às variáveis demográficas, segundo os dados da Direção Geral de Saúde, no ano 2021, o país registou um maior número de casos COVID-19 nos indivíduos com idade compreendida entre os 40-49 anos, com predomínio do género feminino (53,1%).2 Na amostra em estudo, verificou-se, contudo, que 59,90% dos doentes hospitalizados com COVID-19 apresentava uma idade igual ou superior a 70 anos, em relação provável com o facto de prestarmos cuidados de saúde a uma população maioritariamente envelhecida. As admissões em internamento foram determinadas maioritariamente pela gravidade da insuficiência respiratória, condição de imunossupressão e descompensação das comorbilidades (mais frequentes em idosos4).
No que que diz respeito ao status funcional do doente, contrariando a tendência habitual do internamento comum do serviço de Medicina Interna fora do contexto pandémico, verificou-se que apenas uma pequena proporção de doentes apresentava dependência moderada-total. Contudo, este facto poderá não ser representativo do cômputo geral dos doentes admitidos no Serviço de Medicina Interna, uma vez que incide apenas sobre a caracterização de uma enfermaria e não da totalidade de enfermarias adstritas ao Serviço.
Como evidenciado, a maioria dos doentes apresentava pelo menos um fator de risco cardiovascular, concordante com os dados documentados na literatura até ao momento, sendo a hipertensão arterial e a diabetes mellitus condições comuns nos doentes, já presentes previamente à infeção. Na verdade, coloca-se a hipótese de a diabetes mellitus ser um fator de risco independente para a COVID-19 que, aliada à idade avançada e obesidade, pode contribuir para uma evolução desfavorável. Fumadores incorrem também num maior risco de desfecho negativo.5
Em relação aos dados do internamento, é importan-te realçar o paralelismo entre o número de internamentos ocorridos a cada mês do período em estudo e as taxas de ocupação verificadas nas restantes instituições hospitalares do país.2
Importa, no entanto, realçar que, o tempo médio de internamento da amostra representada foi bastante superior ao tempo médio habitual de internamento de um doente pré-pandemia, o que pode ser explicada por múltiplas razões, nomeadamente, transferência de alguns doentes para a Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente (UCIP), com posterior transferência para o Serviço de Medicina Iterna; necessidade de reabilitação motora e respiratória; morosidade na resposta social/integração em Unidade de Cuidados Continuados (UCC); sobreinfeções bacterianas; agravamento clínico ao 7º/8º dia de doença, concordante com a evolução natural da infeção SARS-CoV-2; presença de comorbilidades e fatores de risco cardiovascular que exigiram maior vigilância; necessidade de manter isolamento até negativação do teste SARS-CoV-2 ou cumprimento dos dias preconizados até à suspensão dessas mesmas medidas, por ausência de destinos passíveis de acolher doentes nessa condição.
Relativamente à terapêutica instituída, admite-se que está relacionada com as duas principais fases da infeção SARS-CoV-2. Inicialmente, predomina a replicação viral, coincidente com o início dos sintomas, pelo que importa sobretudo a utilização de terapêuticas como antivíricos, que permitam minimizar ao máximo a sua disseminação.1 Posteriormente, a libertação de citocinas inflamatórias e ativação do sistema de coagulação promove um estado inflamatório e pró-trombótico, pelo que opções terapêuticas imunomoduladoras e corticoterapia eram e são preconizadas, tal como evidenciada na amostra em estudo.6 Em consonância com o supracitado, verifica-se que a maioria dos doentes representados realizou corticoterapia. Não obstante, nenhum doente realizou terapêutica antivírica, pois ainda não se encontrava disponível em 2021, em Portugal.
A insuficiência respiratória hipoxémica aguda é a complicação mais comum da COVID-19, existindo diferentes modalidades de suporte ventilatório capaz de suprir as necessidades de oxigenoterapia dos doentes - via cânula nasal ou máscara de Venturi, cânula nasal de alto fluxo, ventilação mecânica invasiva e não invasiva ou até oxigenoterapia por membrana extracorpórea (ECMO) - como caraterizado na amostra.1 A instituição de cada uma delas decorre não só da avaliação da gravidade da insuficiência respiratória, mas também de outros fatores como estado de consciência do doente, estabilidade hemodinâmica, obstrução da via aérea, entre outros. É de salientar ainda que, a ventilação mecânica invasiva exige a admissão dos doentes em Unidades de Cuidados Intensivos que durante a pande-mia permaneceram sobrelotadas.
A 27 de dezembro de 2020, teve início o processo de vacinação contra a COVID-19 em Portugal, por isso, nos primeiros meses de 2021, nem todos apresentavam ainda o esquema de vacinação completo, sendo que, por outro lado, houve vários doentes internados que optaram por não se vacinar.
No que diz respeito à percentagem de óbitos da amostra, é coincidente com os dados da Direção Geral da Saúde (DGS) que destaca maior mortalidade nos indivíduos entre os 60-80 anos de idade - faixa etária predominante na amostra em estudo.2
A caraterização das patologias observadas na amostra em estudo enfatiza a necessidade da abordagem holística de todos os doentes, na medida em que para além da infeção SARS-CoV-2 todos apresentavam outros problemas com necessidade de gestão.
Conclusão
Esta análise permite confirmar que em face da complexidade dos doentes abordados e os meios e técnicas de suporte adotados, é necessária uma atuação diferenciada para a manipulação de estratégias ventilatórias equivalentes a nível de cuidados grau II e III, obrigando a uma resposta célere tanto do ponto de vista de formação, como de atualização em face das estratégias levadas a cabo. Simultaneamente, com o exponencial número de admissões diárias ocorridas na altura, ainda mais premente se tornou a necessidade de articulação e gestão de doentes graves, de priorização de atitudes e condutas e implementação de limites de atuação terapêutica, tendo sido o corpo assistencial médico do Serviço de Medicina Interna crucial.
De facto, a pandemia exigiu mudanças colossais na estrutura dos cuidados de saúde que só foram possíveis graças à capacidade de trabalho e resiliência de cada profissional envolvido, sendo o papel do Internista de importância notória na melhor gestão dos doentes e da sua complexidade.