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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.31 no.3 Lisboa set. 2024  Epub 26-Set-2024

https://doi.org/10.24950/rspmi.2365 

ARTIGOS ORIGINAIS/ ORIGINAL ARTICLES

Estudo Prospetivo de Sequelas Pulmonares em Doentes Hospitalizados por COVID-19 durante a Primeira Fase da Pandemia em Portugal

Prospective Study of Pulmonary Sequelae in Hospitalized COVID-19 Patients during the First Phase of the Pandemic in Portugal

1Serviço de Medicina Interna, Unidade Local de Saúde de Santo António, Porto, Portugal

2Serviço de Infeciologia, Unidade Local de Saúde de Santo António, Porto, Portugal


Resumo

Introdução:

A evidência atual parece sugerir a persistência de sequelas multissistémicas a longo prazo nos sobreviventes à COVID-19. É ainda incerta qual a evolução da sintomatologia após a fase aguda, bem como o seu impacto real.

Métodos:

Este trabalho observacional prospetivo teve início na primeira fase da pandemia em Portugal, e procurou acompanhar doentes hospitalizados com COVID-19 durante dois anos após alta, analisando as potenciais sequelas pulmonares. Até à data desconhecem-se estudos semelhantes em Portugal.

Resultados:

O estudo incluiu 36 doentes hospitalizados por COVID-19 entre 1 de março e 30 de junho de 2020. Verificou-se que a dispneia foi o sintoma respiratório mais prevalente e persistente durante o seguimento. Relativamente às alterações na tomografia computorizada as mais frequentemente descritas foram o vidro despolido e alterações fibróticas, com melhoria ao longo de um ano de seguimento menos evidente no caso das alterações fibróticas. Destaca-se diagnóstico de um caso de proteinose alveolar pulmonar associado à COVID-19, uma entidade rara, mas já descrita na literatura. Raramente foram documentadas alterações no ecocardiograma ou nas provas funcionais respiratórias.

Conclusão:

Atendendo à pequena amostra, mais es-tudos prospetivos serão necessários para esclarecimento. Os resultados refletem as dificuldades encontradas na exe-cução de um trabalho de investigação durante o período pandémico, que condicionou o desenho e concretização do estudo, mas que certamente servirão de exemplo e apoio em situações de crises semelhantes, no futuro.

Palavras-chave: COVID-19/complicações; Distúrbios Respiratórios; Portugal; Pulmão; Síndrome Pós-Aguda da COVID-19.

Abstract

Introduction:

Current evidence seems to suggest the persistence of long-term multisystemic sequelae in COVID-19 survivors. The evolution of symptoms after the acute phase is still uncertain, as is their real impact.

Methods:

This prospective observational study began during the first phase of the pandemic in Portugal and sought to follow patients hospitalized with COVID-19 for two years after discharge, analyzing potential pulmonary sequelae. To date, there have been no similar studies in Portugal.

Results:

The study included 36 patients hospitalized for COVID-19 between 1 March and 30 June 2020. Dyspnea was found to be the most prevalent and persistent respiratory symptom during follow-up. Regarding computed tomography changes, the most frequently described were ground glass and fibrotic changes, with improvement over one year of follow-up less evident in the case of fibrotic changes. Of particular note was the diagnosis of a case of pulmonary alveolar proteinosis associated with COVID-19, a rare entity, but one that has already been described in the literature. Changes in echocardiograms or respiratory function tests were rarely documented.

Conclusion:

Given the small sample size, further prospective studies will be needed to clarify. The results reflect the difficulties encountered in carrying out research during the pandemic period, which conditioned the design and realization of the study, but which will certainly serve as an example and support in similar crises in the future.

Keywords: COVID-19/complications; Lung; Portugal; Post-Acute COVID-19 Syndrome; Respiration Disorders.

Introdução

O novo coronavírus SARS-CoV-2 (severe acute respiratory syndrome coronavirus-2), responsável pela COVID-19, foi identificado pela primeira vez na China no final de 2019 e rapidamente se tornou uma das maiores ameaças à saúde global dos nossos tempos.1 Em Portugal, os primeiros casos confirmados de COVID-19 foram registados a 2 de março de 2020, tendo a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarado o estado de pandemia a 11 de março de 2020. Desde então, esta teve uma evolução faseada, acompanhando picos de incidência, medidas de controlo da transmissão e programas de vacinação. Segundo a Direção-geral da Saúde (DGS), a primeira vaga ocorreu de março até ao início de outubro de 2020, a segunda de novembro a dezembro de 2020, a terceira de janeiro a março de 2021, a quarta de julho a outubro de 2021 e a quinta de novembro 2021 a fevereiro de 2022.1 O fim da pandemia COVID-19 foi finalmente anunciado a 5 de maio de 2023.1

Os sintomas na fase aguda dos doentes infetados pelo SARS-CoV-2 encontram-se amplamente descritos, sendo os principais a tosse, rinorreia, dispneia, anosmia, náusea, vómitos, diarreia.2 Sugerido pela experiência prévia com pandemias de dois coronavírus - o SARS-CoV-1 de 2002 a 2003 e o MERS-CoV-2 em 2011 - a persistência de alguns sintomas após a fase aguda de doença e de sequelas orgânicas com impacto significativo na qualidade de vida dos sobreviventes, tornava essencial o estudo prospetivo dos doentes com COVID-19, para que se pudessem conhecer e prevenir tais complicações.2-4

Ao longo destes três anos, a evidência foi mudando rapidamente em relação ao diagnóstico, evolução da doença e terapêutica. A literatura desenvolvida ao longo da pandemia veio demonstrar precisamente a persistência de um conjunto de sintomas multissistémicos até um ano após a COVID-19 sendo os mais prevalentes a astenia, dispneia, artralgias, alterações cognitivas, perturbação do sono, ansiedade e depressão.5-8Foram também descritas a nível pulmonar tanto alterações estruturais (a persistência do vidro despolido e alterações fibróticas sequelares) como a nível funcional (a diminuição da capacidade de difusão de monóxido de carbono (DLCO)).9

A entidade “COVID longo” foi reconhecida pela OMS, incluindo os problemas de saúde mantidos 3 após meses da infeção, com uma duração de pelo menos 2 meses, sem uma filiação alternativa.5-8Comorbilidades como a hipertensão arterial (HTA), diabetes mellitus e obesidade, bem como a hospitalização parecem associar-se a um maior risco de sequelas a longo prazo.10

Assim, estudos longitudinais, prospetivos são essenciais para uma melhor compreensão das consequências a longo prazo da COVID-19 e ainda como modelos para investigação futura. O presente estudo foi projetado durante a primeira fase da pandemia em Portugal (primeira vaga), atendendo a que as consequências a médio e longo prazo da COVID-19 eram desconhecidas na altura. Procurou acompanhar prospectivamente ao longo de dois anos doentes hospitalizados pela doença, descrevendo e reunindo informação, com foco nas potenciais sequelas pulmonares após a fase aguda. Até à data desconhecem-se estudos semelhantes em Portugal.

Material e Métodos

Este é um estudo observacional de coorte prospetivo, com o objetivo de avaliar a existência de sequelas, nomeadamente respiratórias, após hospitalização por COVID-19, durante a primeira vaga da pandemia em Portugal.

Teve lugar na Unidade Local de Saúde de Santo António (ULS-SA), hospital universitário terciário, no qual a Infeciologia e a Medicina Interna partilharam a responsabilidade das enfermarias dedicadas à COVID-19.

O estudo incluiu os doentes hospitalizados numa das enfermarias dedicadas entre 1 de março e 30 de junho de 2020 e que, após data de alta, iniciaram um acompanhamento com duração prevista de 24 meses.

O plano de seguimento foi desenhado a priori, incluindo avaliação clínica, avaliação imagiológica com tomografia computorizada (TC) torácica e ainda avaliação complementar com provas funcionais respiratórias (PFR) e ecocardiograma transtorácico. Assim, estavam previstas três fases de monitorização dos doentes incluídos:

  • Fase 1 - 6 meses após alta (setembro a dezembro de 2020): primeira consulta médica e TC torácica.

  • Fase 2 - 12 meses após alta (março a junho de 2021): reavaliação em consulta médica; reavaliação de TC torácica se presença de alterações imagiológicas na primeira TC; realização de ecocardiograma transtorácico e PFR;

  • Fase 3 - 24 meses após alta (março a junho de 2022): reavaliação em consulta médica; reavaliação de TC torácica se presença de alterações imagiológicas na TC prévia.

O estudo de investigação descrito foi aprovado pela Comissão de Ética do Centro Hospitalar Universitário de Santo António. Foi proposta a integração neste estudo a todos os doentes que cumpriam critérios de inclusão, tendo sido informados de que seus dados seriam utilizados para fins de investigação e assegurando a sua confidencialidade, conforme constante no termo de consentimento livre e esclarecido.

Foram identificados 79 doentes internados, para inclusão no presente estudo. Destes, 43 doentes foram excluídos (54,4%) pelos seguintes motivos: 29 (36,7%) faleceram durante o internamento [sendo que dos falecidos, 24 (82,8%) destes a causa de morte foi a COVID-19], 12 (27,9%) por apresentarem elevado grau de dependência (pela escala de Barthel) impossibilitando o seguimento hospitalar e 2 (4,6%) não eram residentes em Portugal. Assim, 36 participantes foram incluídos na análise final.

As informações demográficas e médicas relativas ao internamento foram extraídas dos processos eletrónicos. O diagnóstico de COVID-19 foi confirmado através de técnicas de biologia molecular (RT-PCR) em todos os casos. A classificação clínica entre doença ligeira, moderada, grave ou crítica foi feita de acordo com os critérios da OMS sendo que a doença moderada implicava atingimento pulmonar imagiologicamente documentado sem insuficiência respiratória, a doença grave definia-se pela presença de insuficiência respiratória e a crítica pela falência ventilatória e/ou choque.11

Os dados clínicos durante o acompanhamento foram recolhidos em consulta presencial por um dos médicos investigadores, através de uma entrevista clínica. Foi considerada a presença ou ausência dos sintomas analisados. Relativamente as alterações imagiológicas, foram consideradas pela presença ou ausência da sua descrição no relatório radiológico. Não foi feita análise por scores imagiológicos padronizados, na altura não existentes.

A análise descritiva (frequência absoluta, frequência relativa, mínima, máximo, média, desvio padrão) das variáveis (sexo, idade, grau de autonomia, comorbilidades, gravidade da infeção SARS-CoV-2, duração do internamento, terapêutica no internamento, óbito, sinais e sintomas, alterações na TC, nas provas de função respiratória e no ecocardiograma transtorácico) foi realizada com recurso ao Excel®.

Resultados

Descreve-se na Tabela 1 a caracterização demográfica da amostra inicial de 36 doentes.

Tabela 1 Características demográficas dos doentes incluídos no estudo. 

Desta amostra total inicial, 52,7% da coorte eram do sexo masculino (n = 19). A idade média foi de aproximadamente 69 anos, tendo a maioria a autonomia preservada (75,0%; n = 27). A hipertensão foi a comorbilidade mais frequente, relatada em 21 doentes (58,3%). Mais de metade da amostra apresentava COVID-19 grave (50,0%; n = 18) ou crítica (2,7%; n = 1), sendo significativa a proporção de doentes assintomáticos/ligeiros internados (19,4%; n = 7), concordante com a fase pandémica em que decorreu o estudo (Tabela 1).

Da amostra total, 9 doentes não foram medicados com hidroxicloroquina durante o período de internamento (Tabela 2). Destes, 7 apresentaram doença ligeira pelo que não eram candidatos a essa terapêutica, à luz dos critérios vigentes na altura. Os restantes dois tinham risco aumentado de iatrogenia, um pela presença de alterações eletrocardiográficas (QTc longo) e outro caso pela agudização de doença renal crónica com maior risco de nefrotoxicidade. O doente que realizou corticoterapia sistémica foi por exacerbação da asma no contexto da infeção por COVID-19. O doente que recebeu ventilação mecânica acabou por perder seguimento por abandono das consultas de seguimento.

Durante o período de seguimento pós a alta, quatro doentes faleceram antes do primeiro ponto de avaliação (fase 1). As causas de óbito foram, na sua maioria, intercorrências infeciosas: dois casos de choque séptico com ponto de partida em pneumonia bacteriana (um mês após a alta) e um caso de pielonefrite obstrutiva (3 semanas após a alta). Ainda, um doente foi readmitido dois meses após alta por doença arterial periférica grau IV dos membros inferiores com múltiplas complicações infeciosas que culminaram no seu falecimento.

Dos restantes doentes acompanhados, 16 não completaram o protocolo de seguimento por abandono ou por falha na realização dos exames complementares de diagnóstico (ECD) solicitados nas várias etapas. Todavia, por terem realizado parte do seguimento e ECD, os seus resultados encontram-se também incluídos e descritos na Tabela 3 (n = 22). Salienta-se assim que apenas 16 doentes concluíram na totalidade o período de follow-up previsto de 24 meses.

Tal como se pode ver na Tabela 3, os sintomas respiratórios mais vezes referidos foram a dispneia e a tosse e os não-respiratórios foram a astenia e as alterações mnésicas. Verifica-se que ao longo de seguimento houve uma tendência para a resolução da maioria da sintomatologia inicial, sendo a astenia, alterações mnésicas e dispneia os sintomas reportados de forma mais persistente mesmo após 24 meses de seguimento.

Tabela 2 Classificação da população elegível segundo determinação de HbA1c. 

Tabela 3 Sintomas e alterações na TC de toráx, PFR e ecocardiograma transtorácico (n = 22). 

Todos os doentes deste estudo apresentaram alterações radiológicas na avaliação imagiológica no internamento. Conforme se pode ver na Tabela 3, na maioria dos casos verificou-se resolução das alterações atribuídas à COVID-19 na TC até ao um ano de seguimento. As alterações que persistiram aos 24 meses foram os micronódulos, as bronquiectasias e as atelectasias, respetivamente, em doente sem estas alterações prévias documentadas ou doença respiratória conhecida que o pudesse justificar. Na Tabela 3, surge descrito um aparente aumento do número de micronódulos e de atelectasia na TC, mas que na verdade não correspondem a alterações de novo, mas sim a doentes que realizaram o seu primeiro TC de avaliação mais tardiamente do que o previsto.

Durante o acompanhamento identificou-se um doente do sexo masculino que evoluiu com proteinose alveolar pulmonar (PAP). Era um doente de 80 anos, com hipertensão arterial e excesso de peso, sem doença pulmonar conhecida, que nunca tinha fumado e que trabalhou durante 9 anos como marceneiro. Após internamento por COVID-19 grave, manteve dispneia para esforços e na avaliação na TC de toráx, apesar de melhoria, mantinha áreas de densificação em vidro despolido nos lobos inferiores e ligeira reticulação subpleural na vertente anterior de ambos os lobos superiores a sugerir pneumonia intersticial pós-COVID-19. Realizou broncofibroscopia cujo lavado broncoalveolar apresentava um aspeto opalescente com coloração PAS-positivo, compatível com o diagnóstico de PAP.

A maioria dos doentes que realizou ecocardiograma trans-torácico não apresentou alterações. Foi observada redução da fração de ejeção do ventrículo esquerdo em dois casos (n = 2; 9,09%) e um caso de áreas de hipocinésia (n = 1; 4,54%). Apesar da ausência de ecocardiograma prévio para confronto, estes doentes não apresentavam doença cardíaca conhecida ou fatores de risco cardiovascular que pudessem justificar essas alterações.

A maioria dos doentes não apresentou alterações nas PFR, sendo a alteração mais comum a diminuição da DLCO; dois dos doentes que apresentavam redução da DLCO apresentava doença pulmonar (DPOC e asma) porém sem PFR prévias para confronto.

Discussão

Este estudo decorreu na primeira fase da pandemia em Portugal pelo que a gestão destes doentes teve como referência a informação disponível até então de epidemias prévias por outros coronavírus nomeadamente o SARS-CoV-1 e o MERS-CoV.2

Durante o seguimento destes doentes, verificamos que a dispneia foi o sintoma respiratório mais prevalente e persistente. Revendo a literatura disponível até ao momento atual, quase metade dos sobreviventes à COVID-19 apresentam pelo menos a persistência de um sintoma sendo que dos vários relatados, os mais prevalentes são a fadiga, perturbações do sono e a dispneia, e dos não-respiratórios, a fadiga e as alterações mnésicas.8-18

Relativamente às alterações na TC as mais frequentemente descritas foram o vidro despolido, principalmente na doença ligeira a moderada, e alterações fibróticas na doença grave e crítica; outras alterações também encontradas foram bronquiectasias, espessamento dos septos interlobulares, opacidades reticulares e consolidações.8,15Estas alterações demonstraram melhoria ao longo de um ano de seguimento embora menos evidente no caso das alterações fibróticas.8 Os resultados parecem semelhantes aos encontrados no SARS-CoV-1, o que é preocupante uma vez que esses sobreviventes mantêm alterações radiológicas até 15 anos após a infeção.8,15 Verificamos que na maioria dos doentes do estudo estas resolveram até ao primeiro ano sendo que as que mais persistiram foram os micronódulos, bronquiectasias e atelectasias.8,11A literatura disponível, com o tempo de seguimento possível desde a declaração da COVID-19 como pandemia, ainda não permite um conhecimento exato sobre a evolução das sequelas parecendo, no entanto, consensual a resolução das mesmas, numa janela de tempo variável, habitualmente nos primeiros meses.19

Ressalvamos o caso de PAP que é uma entidade rara, porém com descrição na literatura de filiação à infeção por SARS-CoV-2.20-22O diagnóstico é difícil e resulta da conjugação de elementos clínicos e radiológicos, sendo essencial o estudo do lavado broncoalveolar. A PAP pode ser idiopática (a maioria), congénita ou secundária a neoplasias ou infeções havendo casos descritos associados ao vírus Influenza e também à infeção por SARS-CoV-2 (PAP de novo ou doente com diagnóstico de PAP que agravou após a COVID-19).20,21,22É difícil distinguir entre a PAP e sequela pós-COVID-19 atendendo à sua semelhança clínica radiológica.20,21,23Neste caso não havia qualquer sintomatologia respiratória prévia à infeção por SARS-CoV-2, e por isso interpretou-se esta evolução como PAP secundária à COVID-19.14,20-23Pela clínica modesta, sem comprometimento das trocas respiratórias, não houve lugar a lavagem pulmonar.20-22

Na maioria dos doentes da amostra não se documentaram alterações no ecocardiograma, porém, a mais frequentemente encontrada foi a redução da fração de ejeção.10,15,24Verificou-se também a presença de edemas dos membros inferiores a partir do 12º mês. De acordo com a literatura, as complicações cardiovasculares - como lesão miocárdica, insuficiência cardíaca, disritmias e eventos cardioembólicos - associadas à infeção por SARS-CoV-2 são mais comuns nos primeiros 6 meses, independentemente da idade e de comorbilidades como HTA ou diabetes mellitus.15Uma das alterações ecocardiográficas mais frequentemente encontradas é a redução da fração de ejeção esquerda, em linha com os achados deste estudo. Também a disfunção diastólica, hipertensão pulmonar e derrame pericárdico são achados ecocardiográficos reportados.10,23

Relativamente aos estudos de função pulmonar, parece haver relação entre a gravidade da doença e as alterações da função pulmonar sendo que a alteração mais prevalente, mesmo após 1 ano da infeção, foi a diminuição da DLCO.9,15,16,24,25Na maioria dos doentes não se documentaram alterações nas PFR mas as mais frequentemente encontradas são concordantes com o descrito na literatura.9,10,15,16,25,26Os estudos de função pulmonar durante o período pandémico foram limitados devido ao risco dos mesmos pela formação de aerossóis pelo que a informação disponível é limitada.23

Dentro das limitações do presente estudo, salientamos a dificuldade em cumprir o desenho de investigação inicial, pelo funcionamento irregular e insuficiente dos serviços hospitalares no contexto da pandemia, particularmente na sua fase inicial, mas cuja desorganização e sobrecarga se prolongou durante todo o tempo de seguimento destes doentes. O tamanho reduzido da amostra resultou por um lado da alta taxa de óbitos, tanto intra-hospitalar como em fases precoces após alta, como por outro lado da adesão incompleta ou abandono do protocolo de seguimento, considerando as contingências no acesso dos utentes aos serviços de saúde ou como consequência do próprio funcionamento deficiente e errático destes serviços. O impacto no cumprimento dos prazos de realização dos ECD previstos no estudo foi marcado, numa altura de sobrecarga hospitalar e de recursos humanos.18,27Por estes constrangimentos, não se realizaram 9 TC, 12 PFR e 5 ecocardiogramas transtorácicos, conforme previsto. Para além disto, também se verificaram atrasos significativos (superiores a 6 meses) na realização dos TC. Os obstáculos inerentes à realização deste estudo prospetivo, apenas permitiram aos autores que fosse feita uma análise descrita dos dados recolhidos, não permitindo retirar conclusões nem fazer associação entre eles, pelo seu número reduzido. Ainda, não foram analisadas variáveis que surgiram durante a realização do próprio estudo, tais como a vacinação.

Contudo, consideramos este estudo pioneiro pelo enorme desafio abraçado no início de uma das grandes pandemias dos tempos modernos, numa altura de incertezas e em que a investigação não representava uma prioridade no contexto hospitalar nacional. Assim, este é à data de hoje, o primeiro e único estudo que procurou acompanhar prospectivamente doentes hospitalizados pela doença, com o objetivo de compreender quais as consequências da COVID-19 a longo prazo, com foco nas sequelas pulmonares após a fase aguda da doença. Salienta-se ainda o relato de um caso raro de PAP secundária à COVID-19.

Conclusão

A concretização deste estudo trouxe consigo muitas dificuldades que limitam a sua análise e a generalização de conclusões. Apesar disto, verificamos que a maioria dos doentes sobreviventes da amostra evoluiu com resolução dos sintomas respiratórios e sem sequelas imagiológicas ou funcionais cardiorrespiratórias a longo prazo. As consequências após a fase aguda da COVID-19 ainda são incertas e os seus mecanismos altamente complexos. Não está também definido qual o acompanhamento ideal a longo prazo para estes doentes. Parece haver evidência que este seguimento deve ser mantido nos casos de COVID-19 grave, com idade superior a 65 anos e com mais comorbilidades nomeadamente síndrome metabólico, doença cardiovascular, doença renal crónica, transplantados, doentes oncológicos e doentes não vacinados, pelo maior risco de complicações.8,11,24

É necessária investigação adicional que permita esclarecer estes resultados, nomeadamente a presença de sequelas a longo prazo pós-COVID-19. Acreditamos que o desenho deste estudo cuidadosamente planeado bem como os desafios enfrentados no seu cumprimento poderão certamente seguir de exemplo a estudos futuros que tenham lugar em situações de pandemia ou crise sanitária. Poderão assim evitar-se limitações agora previsíveis, permitindo a criação de evidência nacional de maior qualidade, de forma célere.

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Declaração de Contribuição DIR - Investigação e redação do manuscrito SC, AN, ARC- Investigação clínica e revisão do manuscrito JC - Investigação Científica AS - Investigação clínica Todos os autores aprovaram a versão final a ser publicada.

Contributorship Statement DIR - Research and manuscript writing SC, AN, ARC - Clinical research and manuscript review JC - Scientific research AS - Clinical research All authors approved the final draft.

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: O presente trabalho foi suportado pela Bolsa de Investigação da SPMI (2021).

Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Proteção de Pessoas e Animais: Os autores declaram que os procedimentos seguidos estavam de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia revista em 2013 e da Associação Médica Mundial.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare. Financing Support: This work was supported by the SPMI Research Grant (2021).

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Protection of Human and Animal Subjects: The authors declare that the procedures followed were in accordance with the regulations of the relevant clinical research ethics committee and with those of the Code of Ethics of the World Medical Association (Declaration of Helsinki as revised in 2013).

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer re-viewed.

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) e Revista SPMI 2024. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC 4.0. Nenhuma reutilização comercial. © Author(s) (or their employer(s)) and SPMI Journal 2024. Re-use per-mitted under CC BY-NC 4.0. No commercial re-use.

Recebido: 09 de Novembro de 2023; Aceito: 04 de Julho de 2024

Correspondence / Correspondência: Diana Isabel Rocha - dianaisabelrocha@gmail.com Médica Interna de Formação Específica em Medicina Interna, Unidade Local de Saúde de Santo António, Porto, Portugal Largo Professor Abel Salazar, 4050-011 Porto

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