As missões humanitárias são intervenções prestadas em resposta a crises provocadas pelo ser humano e catástrofes naturais.1
A relevância da participação de internistas em missões humanitárias tem menos visibilidade quando comparada com outras especialidades. Neste artigo, os autores pretendem realçar a importância da medicina interna em contexto humanitário, através do retrato de uma missão com duração de 15 dias, decorrida em Abril de 2022 no Hospital Nacional Simão Mendes, em Bissau.
A República da Guiné-Bissau (RGB) é um país que tem vivido situações de instabilidade política e institucional encontrando-se sob dependência quase total da comunidade internacional na área da saúde e educação.2
Segundo a Organização Mundial de Saúde, existe um elevado número de doenças transmissíveis, contudo, em 2019, foi estimado que 33% dos óbitos tenham sido atribuídos a doenças não transmissíveis (cardiovasculares, respiratórias crónicas, oncológicas e metabólicas),3representando um desafio relevante para a saúde e onde a medicina interna pode ter um papel significativo.
A atividade assistencial na missão humanitária repartiu-se entre a consulta externa e internamento nas enfermarias de medicina interna e unidade de cuidados intensivos (UCI).
A nossa participação no internamento consistiu em observação, discussão e delineação de um plano de tratamento dos doentes em conjunto com os seus médicos assistentes. Colaborámos na observação e discussão de 78 doentes, 59% (n = 46) do sexo masculino, idade média 47 anos (±17,04). As patologias mais frequentemente identificadas, com recurso aos exames complementares disponíveis, foram a anemia, não especificada (26%, n = 20), a insuficiência cardíaca descompensada de etiologia indeterminada (15%, n = 12), a lesão renal aguda não especificada (9%, n = 7) e a doença hepática crónica descompensada não especificada (9%, n = 7). Adicionalmente, com base na história clínica e no exame objetivo, foram presumidos outros diagnósticos, tais como infeções oportunistas em doentes infetados por vírus de imunodeficiência humana (VIH) (13%, n = 10) e acidente vascular cerebral (10%, n = 8). Como comorbilidades mais comuns, destaca-se a hipertensão arterial (27%, n=21), infeção por VIH (19%, n = 15), infeção por hepatite B (15%, n = 12) e diabetes (15%, n = 12). Durante a nossa permanência, contabilizaram-se 16 óbitos, conferindo uma taxa de mortalidade de 21%.
Existem múltiplas dificuldades ao diagnóstico e tratamento dos doentes, nomeadamente o facto de tudo ser pago pelo próprio doente. Ademais, os familiares permanecem 24 horas com os doentes, sendo estes os responsáveis pela compra de medicação, alimentação, higiene e reabilitação.
Atendendo à ausência de formação específica4 a atividade formativa é prioritária, tendo-se realizado sessões clínicas sobre tratamento da diabetes no internamento, complicações agudas, antibioterapia e paracentese.
Participámos também na visita médica da UCI, que corresponde a uma unidade de nível 2. As limitações que apresenta, e que são um desafio para todos os profissionais de saúde, são: escasso treino das equipas locais, a falta de recursos humanos, a não existência de técnicas respiratórias não invasivas, técnica dialítica ou outro suporte de órgão, a não manutenção dos equipamentos e por vezes, a existência de cortes de eletricidade. Em relação à consulta externa, é uma consulta geral, não existindo uma triagem.
Os desafios sentidos por nós nesta missão foram muitos, destacando-se como os mais expressivos: complexidade de patologias, falta de recursos técnicos, inexistência de formação pós-graduada, dificuldade no acesso aos cuidados de saúde e iliteracia em saúde da população. A Medicina Interna, especialidade que se dedica ao estudo de doentes ainda sem diagnóstico ou de doentes complexos, demonstra-se fundamental na abordagem dos doentes que referimos neste artigo. É a especialidade que se adapta ao contexto descrito pelo seu conhecimento abrangente, capacidade de ensino, adaptabilidade a recursos limitados, coordenação de equipas multidisciplinares e capacidade de gerir emergências. Por estes motivos, o seu reconhecimento e integração em missões humanitárias é urgente.













