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Jornal Português de Gastrenterologia
versão impressa ISSN 0872-8178
J Port Gastrenterol. v.17 n.6 Lisboa nov. 2010
A formação em Gastrenterologia e a subespecialidade de Hepatologia
José Velosa*
*Director do Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte, Hospital de Santa Maria. Professor Associado com Agregação da Faculdade de Medicina de Lisboa, Lisboa - Portugal.
Resumo
O contínuo progresso da Gastrenterologia e a incapacidade do gastrenterologista geral para abarcar todas as áreas da especialidade, bem como as necessidades assistenciais do país, originou que o programa de formação evoluísse no sentido da subespecialização em Hepatologia.
Foi assumido que o hepatologista deve possuir um conjunto de conhecimentos e de competências específicas que lhe permitam diagnosticar e tratar as doenças mais complexas do fígado e, por via dessa preparação, estar apto a integrar as equipas de transplantação hepática. Terá de cumprir um programa estruturado de treino de 18 meses num centro idóneo e submeter-se a uma prova de avaliação final. A sua missão, no âmbito do Serviço de Gastrenterologia, será ocupar-se exclusivamente dos doentes hepáticos e prestar consultadoria.
Atendendo à dimensão e especificidade de muitas áreas da Gastrenterologia, propõe-se uma reformulação do programa, que continuaria a ter a duração de 5 anos, embora com a opção de os internos interessados em Hepatologia derivarem para esta subespecialidade no último ano do internato. Esta proposta reduz o período de formação aprovado, mantem a unidade da Gastrenterologia e da Hepatologia, torna o programa de Gastrenterologia mais flexível e permite que os internos desenvolvam outras competências de acordo com os seus interesses e motivações.
PALAVRAS CHAVE: Gastrenterologia, Hepatologia, formação, fígado.
Gastroenterology training and the subspecialization in Hepatology
Abstract
Recognizing the remarkable advances in Gastroenterology, the incapacity of the general gastroenterologist to dominate all areas of knowledge and the needs of the country, lead to a new design in the National Training Program with the inclusion of the subspecialisation in Hepatology.
The hepatologist should acquire a level of specific knowledge and skills which allow the diagnosis and management of most complex liver diseases and the integration in liver transplant teams. After completing the training program of at least 18 months in a certified centre, trainee must be assessed in a final exam. After integration in a gastroenterology unit, his mission should be to exclusively manage liver disease patients and to exercise the role of a consultant.
Due the extension and specificity of many areas of Gastroenterology, I propose a new training program which would maintain 5 years duration allowing fellows to shift to specific Hepatology training in the final year. This proposal does not prolong too much the duration of training, preserves the unity of Gastroenterology and Hepatology, permits greater flexibility in the curriculum and allows the development of specific competencies according to the fellows interests and motivation.
KEYWORDS: Gastrenterology, Hepatology, training, liver.
INTRODUÇÃO
A Gastrenterologia saiu da alçada da Medicina Interna e adquiriu o estatuto de especialidade autónoma em Portugal nos anos setenta. Em 1997 o Colégio de Gastrenterologia publicou um detalhado programa de formação, onde definia a duração do internato, os estágios obrigatórios, os desempenhos e o método de avaliação. Este importante documento tem servido até hoje de instrumento orientador do treino e da avaliação dos internos e tem sido o garante da qualidade da prática da especialidade no nosso país1. Na revisão realizada em 2002 foram introduzidas novas competências em endoscopia, nomeadamente em técnicas hemostáticas, e estabelecida a obrigatoriedade de um estágio de 6 meses em Hepatologia. Este treino foi designado de nível 1, em contraste com o nível 2, mais profundo e estruturado, que corresponde à subespecialidade de Hepatologia, criada pela Ordem dos Médicos em 2005.
Este empenho no desenvolvimento de um programa de treino compreensivo e detalhado, periodicamente actualizado, inovador nas propostas e nos conceitos, colocou o nosso país na vanguarda da formação em Gastrenterologia2.
O currículo actual tem, então, implícito os seguintes vectores: um tronco comum, que contempla um treino básico em Hepatologia e em Endoscopia, e um treino suplementar em Hepatologia que confere um título reconhecido pelo órgão representativo dos médicos. Por vontade do interno, é possível a realização de um treino em endoscopia de intervenção, que a comunidade dos especialistas reconhece informalmente.
Esta lenta mas progressiva diferenciação até à autonomia científica e profissional duma área da Gastrenterologia, é consequência do desenvolvimento e maturação dos conhecimentos e dos avanços técnicos, que privilegia a incorporação na prática clínica do que essencial, postergando para validação posterior o que é secundário3.
Foi praticamente consensual a aceitação que um gastrenterologista geral, com uma formação básica em Hepatologia, o designado nível 1, não estava em condições de desempenhar com profundidade e saber as tarefas assistenciais que uma unidade de Hepatologia e, em particular, de transplantação hepática, exigem. Entendeu-se, assim, que a separação do treino e a certificação dos hepatologistas era a melhor maneira de garantir o desenvolvimento da Hepatologia e proporcionar melhores cuidados aos doentes. O treino de nível 2, complementar ao internato de Gastrenterologia, mais avançado, com um programa próprio e uma avaliação do desempenho e da competência, configura a subespecialidade de Hepatologia.
Por imperativos corporativos, mas também por uma questão de racionalidade médica, a subespecialidade de Hepatologia nasceu intimamente ligada à Gastrenterologia. Esta decisão justifica-se pelo facto de que o ambiente onde se insere o doente hepático ser também um ambiente gastrenterológico, existindo pontes de contacto entre as duas áreas e a necessidade de partilhar algumas técnicas. As principais sociedades de Gastrenterologia e Hepatologia dos EUA, reconhecendo que este era o enquadramento mais adequado para a prática da Hepatologia, recomendaram no seu relatório final que a Hepatologia deveria estar exclusivamente reservada aos gastrenterologistas e que os serviços deveriam ter a designação de Gastrenterologia e Hepatologia4.
Importa realçar este ponto de vista, pois ele contribui para a coesão e unificação da Gastrenterologia, em vez de a dividir, como à primeira vista poderia sugerir a criação de uma subespecialidade.
Esta visão abrangente parece-me a mais indicada para o desenvolvimento, inevitável, de uma especialidade tão vasta como a Gastrenterologia, distribuída por vários órgãos, que acabará mais tarde ou mais cedo por se ramificar nas valências que o desenvolvimento, entretanto, justificar.
Se a criação da subespecialidade de Hepatologia, com a existência de profissionais exclusivamente dedicados às doenças do fígado, lança novos desafios na estruturação do programa de formação e na organização dos serviços hospitalares de Gastrenterologia, tem, também, a vantagem de oferecer aos gastrenterologistas novas oportunidades de realização profissional.
Neste contexto, o primeiro desafio é, antes de mais, a perservação da unicidade da especialidade de Gastrenterologia, a sua integridade como espaço comum a partir do qual nascerão, inevitavelmente, outras subespecialidades ou competências; o segundo prende-se com a formação dos futuros gastrenterologistas, num quadro de diversidade, rigor e competência.
Nesta matéria não podemos permanecer num modelo de formação autónomo e auto-suficiente. A formação tenderá a ser cada vez mais multidisciplinar, num ambiente hospitalar que integre as valências consideradas indispensáveis à prática da Gastrenterologia e Hepatologia tendo em vista o treino da resolução dos problemas dos doentes. Significa o acentuar da transição de um modelo fragmentado, casuístico e individualista para um modelo integrado, sistematizado, em equipa e centrado no doente.
PORQUÊ A SUBESPECIALIDADE DE HEPATOLOGIA?
A subespecialização em Hepatologia ocorreu naturalmente em vários países5,6como consequência da cada vez maior complexidade da Gastrenterologia, que alargou substancialmente o conhecimento sobre as doenças do fígado, desenvolveu novos métodos de diagnóstico e terapêutica e se apercebeu do preocupante impacto sócio-económico das hepatopatias.
Nas doenças mais conhecidas e prevalecentes, como a cirrose hepática e suas complicações, foram desvendadas muito das suas singularidades que são hoje objecto de bem documentadas e profícuas recomendações. Novas patologias emergiram e vieram ocupar um espaço significativo da actividade do gastrenterologista, com destaque para a hepatite C e a esteatohepatite não alcoólica, e foram introduzidas novas e subtis terapêuticas para doenças de grande prevalência como a hepatite vírica. Estima-se que existam mais de 100 tipos diferentes de doença hepática, muitos deles em larga medida relacionados com o comportamento e o estilo de vida, o que dá bem a ideia da dimensão sócio-económica das doenças hepáticas.
Fig.1. Programa de formação integrado de Gastrenterologia e Hepatologia. A subespecialização em Hepatologia tem início no último ano do internato com prolongamento de mais 6 meses relativamente ao internato de Gastrenterologia. As competências são uma opção no último ano do internato de Gastrenterologia.
Novos métodos de diagnóstico vieram juntar-se às tradicionais biópsia hepática e ecografia. Além dos testes genéticos, a descoberta de novos marcadores serológicos e virológicos, o desenvolvimento, ou o aperfeiçoamento, de novos métodos imagiológicos tornaram a biópsia hepática dispensável em muitos casos. O corolário de todo este desenvolvimento foi a expansão do espectro clínico da patologia hepática.
A genética molecular alterou profundamente a abordagem da generalidade das doenças hepáticas, muito em particular das doenças colestáticas e metabólicas do fígado. O hepatologista tem, actualmente, de estar familiarizado com o rastreio, o diagnóstico e o aconselhamento genético de doenças hereditárias, anteriormente fatais na infância, mas que agora sobrevivem até à vida adulta.
Curiosamente, nunca como agora foi tão necessária uma forte interrelação com a medicina interna e outras especialidades médicas, pois o envolvimento sistémico da doença hepática crónica e vice-versa é um tema cada vez mais actual.
Uma razão de peso para a diferenciação e autonomia da Hepatologia foi a necessidade em dotar as unidades de transplantação hepática com especialistas do fígado credenciados.
O hepatologista é um elemento insubstituível da equipa de transplante hepático, onde tem a seu cargo a avaliação dos doentes nas fases de pré e pós-transplante e a gestão da lista de transplante. A necessidade de hepatologistas qualificados, conhecedores das múltiplas facetas que pode revestir a apresentação das doenças hepáticas, entre o estado de falência hepática aguda e os estádios terminais das doenças hepáticas crónicas, e sobretudo um conhecimento profundo das incidências da sua história natural, constituiu um forte impulso para a criação da especialidade de Hepatologia de transplantação nos EUA, e de certo modo motivou a sua implementação em Portugal, embora numa perspectiva mais abrangente.
Ainda que sem carácter institucional, a prática da Hepatologia está desde há muito bem enraizada em diversos centros europeus e americanos quer sob a forma de unidades de Hepatologia de forte cariz académico, ligadas à Gastrenterologia, quer na actividade de dinâmicas sociedades científicas dedicadas às doenças do fígado. Devido ao seu prestígio e ao seu elevado patamar de qualidade e exigência, têm vindo a congregarar à sua volta uma vasta audiência. Estas associações, como por exemplo a European Association for the Study of the Liver, não só colaboram com os colégios da especialidade na elaboração dos programas de formação mas também desenvolvem regularmente acções formativas para internos.
Além do crescimento técnico-científico que justifica a autonomia da Hepatologia, existem outros aspectos, de natureza sócio-económica, que obrigam a medidas de actuação e que só poderão ser implementadas se houver um corpo de especialistas aptos a dar-lhes suporte. As doenças hepáticas têm um forte impacto na saúde e na economia de qualquer país. Constituem a quinta causa de morte no Reino Unido, onde os internamentos e mortes por doenças do fígado subiram 8-10%/ano7. Nos EUA ocupam a segunda posição como causa de morte entre as doenças do foro digestivo e a terceira como causa de consulta, sendo ultrapassadas apenas pelo refluxo gastro-esofágico e a obstipação8. Em Portugal, os dados da Direcção-Geral da Saúde apontam para o fígado como a décima causa de morte, embora na quarta posição como causa de morte prematura9. No nosso país os custos directos e indirectos são seguramente muito elevados se tivermos em conta os encargos com a doença hepática alcoólica10,11e com a transplantação hepática. Portugal, com uma taxa de transplantes acima dos 20 por milhão de habitantes está, presentemente, nos lugares cimeiros da lista dos países europeus.
Para ensombrar ainda mais o panorama futuro das doenças hepáticas, as perspectivas futuras não são animadoras, atendendo a que os dados epidemiológicos conhecidos antevêem um contínuo agravamento7. Por exemplo, na Europa existem cerca de 10 milhões de doentes com hepatite vírica, dos quais 8 milhões com hepatite C, o que faz prever que o número de mortes por cancro do fígado vai subir nos próximos anos muito para além dos actuais 13.000/ano12.
Como ficou acima evidenciado, a doença hepática tem significativo impacto clínico e económico. Muitas doenças hepáticas têm um curso clínico silencioso e manifestam-se em fase muito avançada, deixando poucas alternativas terapêuticas; outras, evoluem rapidamente para falência hepática aguda e comportam uma elevada mortalidade. A maioria, contudo, são doenças crónicas, com elevada morbilidade e consumidora de cuidados médicos. Os repetidos internamentos, os dispendiosos métodos de diagnóstico e terapêutica, cada vez mais eficazes, prolongam de forma muito significativa o tempo de vida e têm forte impacto nos custos de saúde.
Os hepatologistas reconhecem que os extraordinários progressos dos últimos vinte anos foram em grande parte conseguidos através dos avanços verificados em outras especialidades, como a imagiologia, a genética, a biologia molecular e a anatomia patológica, cujos contributos se tornaram parte integrante da prática da Hepatologia. Talvez mais do que nenhuma outra especialidade, a Hepatologia é um bom exemplo de interdisciplinaridade e de partilha de experiências.
A abordagem multidisciplinar da doença está a impulsionar uma mudança de paradigma na prática da Medicina, com a transição de um modelo centrado no médico para um modelo centrado no doente. Este novo paradigma obriga a uma nova concepção e organização dos serviços, que em alguns casos pode passar por transformações de natureza estrutural. O que está na base deste conceito é uma maior eficiência na prestação dos serviços médicos, uma maior racionalidade no diagnóstico e tratamento das patologias mais complexas, uma maior economia de meios e, por via dessa dinâmica, maior eficiência e competitividade13. A Hepatologia, pela sua vocação multidisciplinar, reúne as condições para ser um protagonista activo nesta mudança como, de resto, compreenderam os responsáveis da Gastrenterologia inglesa propondo a criação de centros de Hepatologia onde, numa perspectiva de melhor e mais eficiente prestação de cuidados hepatológicos, se reuniriam todas as valências necessárias a uma prática integrada da especialidade7.
O QUE É UM HEPATOLOGISTA?
Um hepatologista é um gastrenterologista que recebeu um treino específico que o torna competente para o tratamento dos doentes hepáticos14. No programa de formação português adquire-se o título de subespecialista de Hepatologia após cumprimento do nível 2 do treino em Hepatologia com a duração de dezoito meses e aprovação numa prova de avaliação final. O programa de formação segue nas suas linhas gerais as recomendações emanadas das organizações ligadas à especialidade dos países de referência2,7,15.
Os dezoito meses de formação deverão ser realizados num serviço classificado como idóneo pela Comissão Técnica da subespecialidade, o que pressupõe a presença de subespecialistas, a existência de camas destinadas aos doentes hepáticos e facilidades para a realização de técnicas consideradas necessárias ao treino. Entre as técnicas em que é exigida competência encontram-se a endoscopia alta, a terapêutica hemostática das varizes esofágicas, a paracentese, a ecografia hepatobiliar, a biópsia hepática e a elastografia hepática. O serviço onde se desenrola o treino terá facilidades que permitam ao interno adquirir experiência em Colangeopancreatografia Retrógada Endoscópica (CPRE), Transjugular Intrahepatic Portosystemic Shunt (TIPS), hemodinâmica hepática, biópsia transjugular e punção-biópsia do fígado. O serviço possibilitará ao candidato o contacto intensivo com todo o tipo de doenças hepáticas, quer em regime de internamento quer em regime de ambulatório.
O interno deverá adquirir experiência no diagnóstico e manejo de um conjunto vasto de doenças hepatobiliares, incluindo a hepatite aguda; a falência hepática aguda; a hepatite crónica e cirrose; as complicações das doenças hepáticas crónicas, incluindo as complicações da hipertensão portal; a litíase biliar; as doenças metabólicas do fígado; os tumores hepáticos, com destaque para o carcinoma hepatocelular, com especial referência ao rastreio, diagnóstico, estadiamento e opções terapêuticas. Deve possuir conhecimentos que lhe permitam interpretar os marcadores genéticos, serológicos e virológicos das doenças hepáticas, da imagiologia do fígado, compreendo as suas indicações e limitações e interpretar os achados da histopatologia hepática. Deve estar apto a prestar consultadoria no manejo das doenças hepáticas mais complexas, identificar e tratar os efeitos da doença hepática crónica noutros órgãos, especialmente a encefalopatia, o síndrome hepato-renal e o síndrome hepato-pulmonar e nas doenças sistémicas reconhecer e tratar o envolvimento hepático.
Neste capítulo, as doenças hepatobiliares associadas à gravidez deve estar no cerne das preocupações. As doenças hepáticas pediátricas devem merecer uma atenção especial, essencialmente por duas razões: a primeira prende-se com o facto de que algumas começarem na infância, como por exemplo as hepatites víricas, a hepatite auto-imune e a colangite esclerosante, e prolongarem-se pela vida adulta; a outra tem a ver com o aumento de sobrevivência dos doentes portadores de algumas doenças metabólicas. No passado estas doenças estavam confinadas aos primeiros anos de vida e que, presentemente, mercê dos progressos terapêuticos e melhoria dos cuidados médicos muitos doentes alcançam a vida adulta. Cito, por exemplo, a glicogenose tipo I, a doença de Gaucher e a tirosinemia, as quais, além da singularidade da sua expressão clínica, predispõem ao adenoma ou ao carcinoma hepatocelular.
A terapêutica, nas diversas modalidades, deve ocupar um lugar central no treino, relevando-se neste aspecto a terapêutica antivírica e a inerente resistência aos fármacos, a imunossupressão e a terapêutica biológica, esta uma realidade em expansão.
Faz parte integrante do treino para subespecialista de Hepatologia o estágio de seis meses numa unidade de transplante hepático.
Esta componente da formação visa a aquisição de experiência em todos aspectos médicos da transplantação hepática, incluindo a avaliação pré-transplante, a gestão da lista de espera, a terapêutica imunossupressora e o reconhecimento e manejo das complicações da transplantação. A experiência adquirida deverá permitir ao subespecialista a integração em equipas de transplante hepático ou o exercício de funções de consultor e de interlocutor privilegiado com essas equipas, se a sua opção for a permanência num serviço de Gastrenterologia e Hepatologia.
A aptidão para realizar as técnicas e os procedimentos terapêuticos da especialidade e, sobretudo, a competência revelada na sua execução, é outra das vertentes que definem o subespecialista em Hepatologia.
O interno não deve descurar a sua formação teórica, procurando enriquecer o seu currículo com actividades formativas de diversa índole, participando activamente em reuniões, conferências, seminários e congressos da especialidade, internamente e além-fronteiras. O desenvolvimento ou a participação num projecto de investigação clínica deve ser incentivado.
Resumiria, definindo o hepatologista como o gastrenterologista que se ocupa exclusivamente dos doentes hepatológicos, enquanto o gastrenterologista se ocupa de ambos7. A Comissão Técnica da Subespecialidade de Hepatologia subscreve a recomendação da Task Force que juntou as principais sociedades americanas ligadas à Gastrenterologia e à Hepatologia4, de que o acesso à subespecialidade de Hepatologia deve estar reservado aos gastrenterologistas e que a sua prática deve processar-se no âmbito de um serviço de Gastrenterologia e Hepatologia.
UMA PROPOSTA PARA UM NOVO PROGRAMA DE FORMAÇÃO EM GASTRENTEROLOGIA E HEPATOLOGIA
Como a Gastrenterologia, e em particular a Hepatologia, estão em permanente evolução, os programas de formação carecem de revisão frequente de forma a assegurar que o treino dos novos especialistas esteja em conformidade com a evolução dos conhecimentos e o rápido desenvolvimento técnico16. Penso que é relativamente pacífico que o hepatologista deve ser um gastrenterologista com um treino específico. Contudo, a adição de mais dezoito meses aos cinco anos do internato de Gastrenterologia torna o período de formação do subespecialista em Hepatologia excessivamente longo e pode, eventualmente, tornar a subespecialização pouco atractiva para os candidatos que acabam de terminar um longo internato.
Por outro lado, pode originar perturbação na orgânica do internato médico e no Serviço Nacional de Saúde.
Acresce ainda o facto de não estar prevista, e muito menos assegurada, a remuneração para o trabalho hospitalar prestado durante o internato e, por conseguinte, não estar ainda considerada a inserção do subespecialista de Hepatologia na carreira hospitalar. A maneira de ultrapassar esta questão é suscitar e promover a reorganização dos quadros hospitalares de Gastrenterologia, estabelecendo um rácio para a Hepatologia, o qual variaria de acordo com as características de cada hospital. No caso dos centros de transplantação hepática torna-se evidente que o quadro deverá ser preenchido exclusivamente por subespecialistas em Hepatologia.
A proposta inglesa para a organização da Hepatologia no Reino Unido prevê a criação de uma rede de cuidados hepatológicos, na qual os centros de Hepatologia ocupariam um papel central, dispondo de todas os meios para o diagnóstico e tratamento dos doentes hepáticos mais complexos7. Trata-se da aplicação de um conceito emergente na organização dos serviços de saúde, designado por prática integrada, em que o doente é o centro ao redor do qual se organizam todos os recursos, humanos e técnicos, com o objectivo final de maior eficiência e competitividade13.
A resolução destas questões e a forma de implementar as medidas adoptadas exige, em minha opinião, uma discussão alargada entre os gastrenterologistas – no âmbito do Colégio e das sociedades científicas – e as autoridades de saúde numa perspectiva de reformulação não só dos programas de formação mas também da carreira hospitalar de Gastrenterologia.
Como contributo para esta discussão, na Fig.1 apresento uma proposta de alteração do programa de formação de Gastrenterologia e Hepatologia que integra a subespecialização em Hepatologia. Esta proposta prolongaria em apenas seis meses o período de formação em Hepatologia e salvaguardaria os objectivos e a qualidade do treino em Gastrenterologia. Neste modelo, os internos que optassem pela Hepatologia derivariam para esta especialidade no último ano, isto é, logo após o quarto ano do internato de Gastrenterologia, enquanto aqueles que escolhessem a Gastrenterologia completariam os cinco anos, cumprindo dessa forma o nível 1 do treino em Hepatologia.
Esta proposta tem a virtude de preservar a duração de quatro anos de treino em Gastrenterologia (3 anos para o ramo de Hepatologia), a qual, com a excepção da Holanda, é superior à que está estipulada para a maioria dos países2. Por outro lado, está em sintonia com a proposta norte-americana e holandesa para a subespecialização em Hepatologia4-6.
Relativamente ao treino gastrenterológico, penso que seria oportuno, à semelhança do que estabelece a proposta norte-americana4, que se discutisse a criação de competências (Focoused Practice, na designação norte-americana) nas áreas de endoscopia de intervenção (endoterapia), oncologia gastrointestinal, neurogastrenterologia e motilidade e doença inflamatória intestinal.
Especialmente no que diz respeito à endoscopia avançada, parece-me que chegou o momento, a bem duma prática qualificada, de reconhecer o que já é evidente: que muitos gastrenterologistas exercem a especialidade com enfoque na endoscopia e que os procedimentos endoscópicos avançados, nomeadamente a CPRE e a ecoendoscopia, exigem um treino suplementar.
O desafio que está subjacente a esta subespecialização, qualquer que seja a sua natureza e âmbito, é também o de criar os mecanismos de avaliação que assegurem que os internos adquirem os conhecimentos e as aptidões considerados necessários a um desempenho de elevada qualidade, isto é, um sistema que, no dizer de Friedman et al4, “can verify competency for someone who claims competency”.
Penso que a proposta aqui apresentada defende a unidade da Gastrenterologia e Hepatologia, não desvirtua a formação nem compromete a competência dos futuros especialistas, e pode funcionar como um factor de incremento da subespecialização dado que faculta ao hepatologista a certificação que reclama e aos doentes os cuidados que merecem.
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E-mail: jose.velosa@hsm.min-saude.pt