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Jornal Português de Gastrenterologia
versão impressa ISSN 0872-8178
J Port Gastrenterol. v.18 n.3 Lisboa maio 2011
Apresentação da Doença de Whipple como Linfoma
Pedro Pimentel-Nunes1, Elisabete Cardoso1, Catarina Brandão1, Hálio Rodrigues Duarte2, Cláudia Lobo3, Rui Henrique3,Luís Moreira-Dias1
Serviços de 1Gastrenterologia, 2Radiologia e 3Anatomia Patológica do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto
RESUMO
A doença de Whipple é uma doença rara, provocada por uma bactéria Gram-positiva intracelular Tropheryma whipplei. É um diagnóstico difícil de fazer e, apesar de se poder apresentar com uma clínica muito variada, a sintomatologia gastrointestinal está quase sempre presente. O diagnóstico é estabelecido pela identificação de inclusõesPAS-positivas em macrófagos da lâmina própria da mucosa duodenal.
Os autores descrevem o caso de um doente que se apresenta com um quadro clínico muito sugestivo de doençalinfoproliferativa, na ausência de sintomas gastrointestinais, cujo diagnóstico foi estabelecido pela análise histológica de fragmento de umaadenopatia retroperitoneal obtida por punção guiada por tomografia computorizada.
PALAVRAS-CHAVE: Doença de Whipple, Diagnóstico, Terapêutica.
Whipple Disease Presenting as Abdominal Lymphoma
SUMMARY
Whipples disease is a rare disease caused by Tropheryma whipplei, a Gram-positive intracellular bacterium. Its a difficult diagnosis to do and although gastrointestinal manifestations are almost always present, it can be present with a great diversity of symptoms. The diagnosis is made by the identification of PAS-positive inclusions in the macrophages of duodenal mucosa.
The authors describe a case of a patient presenting with a clinical picture suggestive of alymphoproliferative disease, in the absence of gastrointestinal symptoms, with diagnosis of Whipples disease being made by pathological analysis of a fragment obtained by computer tomography guided biopsy of a retroperitoneal adenopathy.
KEYWORDS: WhipplesDisease, diagnosis,Therapy.
INTRODUÇÃO
A doença de Whipple é uma doença rara, provocada por uma bactéria Gram-positiva intracelular, Tropheryma whipplei. Com uma incidência aproximada de 0,4/1000000 ao ano, pode atingir indivíduos de qualquer sexo ou idade, sendo porém mais frequente em homens entre a 5ª e 6ª décadas de vida1-3.
Apresenta-se tipicamente com sintomas gastrointestinais, neurológicos e sistémicos, sendo frequentes a perda de peso, diarreia,mal-absorção, febre, demência e artralgias. No entanto, a apresentação clínica da doença pode ser muito variada1,2.
O diagnóstico é estabelecido pela análise histológica de amostras de mucosa de delgado obtidas por endoscopia através da identificação de inclusões PAS-positivas nos macrófagos da lâmina própria. O diagnóstico diferencial deverá ter em conta um amplo espectro de entidades, como artropatias inflamatórias, patologias com envolvimento do delgado e mal absorção, doenças do tecido conjuntivo e patologias neurológicas1,2.
Considerada uma doença fatal previamente ao advento dos antibióticos, actualmente, a antibioterapia prolongada leva à remissão clínica, apesar de ser possível a recidiva a longo prazo1-3.
CASO CLÍNICO
Descrevemos o caso clínico de um homem com 47 anos de idade, electricista de profissão, que foi orientado para a nossa instituição (Instituto Português de Oncologia (IPO) Porto) em Janeiro de 2007, por suspeita de linfoma. O doente apresentava desde há cerca de 1 ano anorexia e astenia progressivas, para além de disfunção eréctil. Três meses antes de ser observado no IPO iniciou também náuseas de predomínio matinal, hipersudorese nocturna, artralgias e episódios frequentes dehipertermia (temperatura axilar 38 - 39ºC). Referia ainda emagrecimento de 12 kg num período de 9 meses, negando diarreia,epigastralgias, dor abdominal, outros sintomas gastrointestinais ou neurológicos. Em Outubro de 2006 foi avaliado pelo médico assistente que, após observação, solicitou estudo analítico e uma TC abdomino-pélvica. No estudo analítico apresentava leucocitose (11 540/mm3) com neutrofilia (84%), sem células atípicas no esfregaço sanguíneo, uma ligeira anemianormocrómica e normocítica (Hb de 11,0 g/dL), velocidade de sedimentação e proteína C-reactiva aumentadas (99 mm e 85,5 mg/L, respectivamente), hipoalbuminemia (34 g/L) e ligeiro aumento da AST (42 U/L) sem outras alterações laboratoriais de relevo. A TC mostrou hepatomegalia homogénea (maior diâmetro de 20 cm), sem alteração dos contornos hepáticos e esplenomegalia (maior diâmetro de 14 cm), para além de múltiplas adenomegalias confluentes no retroperitoneu e na raiz domesentério, aspectos que foram considerados sugestivos de doença linfoproliferativa. O doente foi, assim, orientado para a nossa instituição. Não apresentava antecedentes familiares ou pessoais relevantes com a excepção de hábitos alcoólicos moderados (60 80 g/d), desde há cerca de 20 anos. Não tinha história de cirurgias ou de internamentos prévios. Negava consumo de estupefacientes, relações sexuais de risco e viagens recentes para fora de Portugal. Ao exame físico apresentava algumas adenopatias cervicais e inguinais, mas todas inferiores a 1 cm. Foi repetida TC que confirmou a existência de váriasadenomegalias supra-centimétricas intra-abdominais, permitindo a realização de biópsia guiada (Fig. 1). O resultado histológico da biópsia (Fig. 2) sugeriu o diagnóstico de Doença deWhipple. Realizou-se endoscopia digestiva alta que mostrou espessamento de pregas e pontuado esbranquiçado da mucosa duodenal (Fig. 3A). As biópsias confirmaram o diagnóstico de Doença de Whipple (Fig. 4) e o doente iniciou ceftriaxone 1g/ev/d durante 14 dias, seguida de terapêutica oral com co-trimoxazol 960 g per os 2 id. Na 1ª semana de tratamento o doente teve agravamento dos sintomas com episódios frequentes de hipertermia (40ºC), astenia marcada,artralgias e aparecimento de tumefacção cervical à direita, cuja ecografia revelou tratar-se de adenopatia reactiva com necrose central, associada a múltiplasadenopatias cervicais. Após esse agravamento inicial, verificou-se uma excelente melhoria clínica, encontrando-se o doente completamente assintomático ao fim do 1º mês de tratamento. Realizou endoscopia digestiva alta ao 6º mês de tratamento que, apesar de manter alterações endoscópicas, demonstrava negatividade para inclusões PAS + nas biópsias duodenais. Ao fim de um ano de tratamento, encontrava-se completamente assintomático, sem evidência de alterações na TC abdominal e com mucosa duodenal normal na endoscopia (Fig. 3B). A histologia revelava também normalização da arquitectura duodenal. Dois anos após o diagnóstico e um ano após terminar terapêutica, o doente encontra-se sem evidência clínica ou analítica de recidiva.
Fig.1A. Volumosas adenomegalias abdominais.
Fig.1B. Biópsia guiada por TC de adenomegalia abdominal para-aórtica com cerca de 6 cm.
Fig.2A.Linfadenite granulomatosa, coloração HE, com múltiplos granulomasepitelióides e dilatação dos vasos linfáticos.
Fig.2B. Macrófagos ganglionares com múltiplas inclusões citoplasmáticas PAS+.
Fig. 3A. Imagens endoscópicas da 2ª porção do duodeno na data do diagnóstico evidenciando espessamento de pregas e pontuado esbranquiçado da mucosa.
Fig.3B. Imagens endoscópicas no final do tratamento, com normalização dos aspectos endoscópicos da mucosa duodenal.
Fig.4A. Distorção, atrofia parcial e espessamento das vilosidades por colecções de macrófagos e proeminentes colecções de lipídeos na lâmina própria. (HE-20 x).
Fig.4B. Maior ampliação do infiltrado macrofágico PAS +.
DISCUSSÃO
A doença de Whipple é uma entidade rara, multissistémica, que pode afectar qualquer órgão. Descrita pela primeira vez em 1907 por GeorgeHoyt Whipple4,5, a sua etiologia infecciosa só foi confirmada em 1992 com a identificação do T.whipplei como agente causal6.
As manifestações gastrointestinais são as mais frequentes, com a diarreia e a dor abdominal entre os achados mais comuns, geralmente responsáveis pela apresentação clássica da doença, presentes em mais de 80% dos casos1,2. Porém, uma variedade de outros sinais e sintomas podem estar na apresentação da doença, pelo que o diagnóstico deve ser considerado noutras circunstâncias1 Artralgias e artrite surgem em 90% dos casos em alguns estudos4. Em cerca de metade dos casos verifica-se também a presença deadenopatias abdominais, predominando na raiz domesentério, sendo as de localização periférica mais raras. A hepatoesplenomegalia é pouco comum, aparecendo apenas em cerca de 5% dos doentes1,2,4. Febre, emagrecimento e sintomas neurológicos são manifestações também frequentes1,2,4.
Os autores relatam o caso de um doente com emagrecimento e astenia com um ano de evolução, a que se associaram febre,artralgias, hepatoesplenomegalia, adenopatias na raiz do mesentério e em outras localizações mais atípicas, como na região cervical. Perante este quadro foi colocada como primeira hipótese diagnóstica a possibilidade de se tratar de uma doença linfoproliferativa.
De notar que o presente caso não se manifestou com diarreia ou outro sintoma gastrointestinal, apresentando-se com uma clínica exuberante de manifestações menos frequentemente associadas a esta patologia, como a hepatoesplenomegalia e as adenopatias periféricas. O quadro clínico sugeria, assim, tratar-se de uma patologia linfoproliferativa, hipótese que levou ao encaminhamento do doente para uma instituição de carácter oncológico.
Desta forma, a abordagem diagnóstica foi iniciada pela realização de uma biópsia de adenopatiaretroperitoneal com exclusão do diagnóstico delinfoma pela demonstração de linfadenite granulomatosa no exame histológico e, posteriormente, pelo exame imunohistoquímico, que reveloumacrófagos repletos de estruturas granularespunctiformes, achados estes sugestivos de doença deWhipple.
Para confirmação do diagnóstico foi realizada uma endoscopia digestiva alta. Contudo, os achados endoscópicos não foram tão exuberantes como seria de prever pela disseminação extra-intestinal do quadro. Apesar das alterações endoscópicas, neste casorelativamente inespecíficas, as biópsias duodenais confirmaram o diagnóstico através da demonstração demacrófagos vacuolizados commicroorganismos PAS positivos na lâmina própria.
Vários esquemas terapêuticos têm sido descritos na abordagem destes doentes. Inicialmente foram usadas tetraciclinas, no entanto, a taxa de recidiva era elevada (32%), particularmente a nível neurológico, pelo que foi preconizado o uso de antibióticos que ultrapassam a barreira hemato-encefálica2,4,7. Assim, um dos esquemas recomendados actualmente passa por um curso inicial de ceftriaxone (2 gev por dia) durante 2 semanas, seguido deco-trimoxazol (960 g per os 2id) durante 1 ou 2 anos7. Quanto à estratégia de seguimento, está recomendada a realização de endoscopia alta com biópsias do delgado aos 6 e 12 meses, com suspensão daantibioterapia após um ano, se as biópsias forem negativas para os achados sugestivos de doença de Whipple7. Esta foi a abordagem implementada no doente, que até à data não apresentou recidiva clínica.
A doença de Whipple manifesta-se de variadas formas, e tendo em conta a raridade da doença, acaba por ser um diagnóstico difícil de se fazer. Deve ser considerada em doentes com emagrecimento, linfadenopatias, febre,artralgias e diarreia, quando outras patologias mais comuns foram excluídas. Este caso alerta para as dificuldades no estabelecimento do diagnóstico na ausência do atingimento gastrointestinal mais característico.
REFERÊNCIAS
1. Fenollar F, Puéchal X, Raoult D. Whipple's disease. N Engl J Med 2007;356:55-66. [ Links ]
2. Maiwald M, Herbay A, Relman D. Whipple's Disease. In: Feldman M, Friedman LS, Brandt LJ, eds.Sleisenger and Fordtran's Gastrointestinal and Liver Disease. Volume 1. 9 ed: Saunders Elsevier 2010:1833-1842. [ Links ]
3. Jackuliak P, Koller T, Baqi L, et al. Whipple's disease-generalized stage. Dig DisSci 2008;53:3250-3258. [ Links ]
4. Carneiro A, Lima P, Barbosa I, et al. Doença deWhipple um desafio diagnóstico. Acta Med Port 2004;17:481-486. [ Links ]
5. Schijf LJ, Becx MC, Bruin PC, et al. Whipples disease: easily diagnosed, if considered. Neth J Med 2008;66:392-395. [ Links ]
6. Relman DA, Schmidt TM, MacDermott RP, et al. Identification of the uncultured bacillus of Whipple's disease. N Engl J Med 1992;327:293-301. [ Links ]
7. Marth T, Raoult D. Whipples disease. Lancet 2003;361:239-246. [ Links ]
Correspondência: Pedro Filipe Vieira Pimentel Nunes; Serviço de Gastrenterologia do IPO - Porto; Rua Dr. António Bernardino de Almeida, 4200-072 - Porto – Portugal; Telemóvel: +351 967 340 096; Fax: +351 225 084 001; E-mail: pedronunesml@msn.com
Recebido para publicação: 23/10/2009 e Aceite para publicação: 06/08/2010.