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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.19 no.6 Lisboa nov. 2012

https://doi.org/10.1016/j.jpg.2012.09.002 

Síndrome hepatorrenal, choque sético e insuficiência renal como preditores de mortalidade em doentes com peritonite bacteriana espontânea - comentário

 

Hepatorenal syndrome, septic shock and renal failure as mortality predictors in patients with Spontaneous Bacterial Peritonitis - Commentary

 

Adélia Simão

Centro Hospitalar Universitário de Coimbra - Hospitais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal

Correio eletrónico: adeliasimao@gmail.com

 

A peritonite bacteriana espontânea (PBE) é uma infeção grave e frequente, que ocorre em 10 a 30% dos doentes com cirrose hepática e ascite hospitalizados1. Esta entidade define-se pela presença de mais de 250 polimorfonucleares neutrófilos/mm3 no líquido ascítico (LA), na ausência de um foco infeccioso intra-abdominal ou de malignidade1,2.

A PBE surge devido à translocação bacteriana através do intestino, um processo pelo qual bactérias entéricas e os seus produtos (endotoxinas, ADN) atravessam a barreira mucosa intestinal e infetam os gânglios linfáticos, entrando na circulação sanguínea e no LA. Os doentes com redução da capacidade defensiva do LA têm maior suscetibilidade para PBE. Os 3 principais mecanismos de defesa que previnem a PBE, que são a estabilidade da flora intestinal, a integridade do epitélio intestinal e as defesas do hospedeiro, estão alterados nos doentes com cirrose em estádio avançado. Nestes casos há redução da motilidade intestinal por hiperativação do sistema nervoso simpático, conduzindo a sobrecrescimento bacteriano, que favorece a ocorrência de PBE. Por outro lado, a permeabilidade da mucosa está aumentada, em consequência da hipertensão portal e de acontecimentos pró-inflamatórios locais, desencadeados pela libertação de endotoxinas. Por último, os mecanismos de defesa locais e sistémicos estão alterados (os neutrófilos e macrófagos têm fagocitose reduzida, estando também diminuída a função efctora das células imunocompetentes circulantes no sangue), limitando a atividade bacteriostática do soro e do LA. A capacidade de opsonização do LA está relacionada com os níveis de proteínas totais, estando claramente demonstrado um maior risco de PBE em doentes em que esses valores são mais baixos.

A passagem de produtos bacterianos para a circulação sistémica conduz a um estado inflamatório crónico, caracterizado pela ativação persistente da imunidade inata e da síntese de citocinas. Esta ativação do sistema imunoinflamatório sistémico agrava a disfunção circulatória, favorecendo a vasodilatação periférica, com consequente ativação do sistema vasoativo endógeno e deterioração da função renal, que frequentemente complica a PBE2.

Quando a PBE foi inicialmente descrita, a mortalidade excedia os 90%2,3, sendo atualmente de cerca de 20 a 40%3-5, desde que seja diagnosticada e tratada atempadamente. Além disso, o uso mais racional da antibioterapia e o melhor manejo das complicações nestes doentes parecem ser os responsáveis por esse aumento da sobrevivência, ainda assim bastante inferior ao que seria desejável.

Como frequentemente não existem sinais nem sintomas evocadores de PBE, a paracentese diagnóstica deve ser efetuada em todos os doentes com cirrose e ascite, aquando da admissão hospitalar. Deve ser também efetuada em doentes com hemorragia digestiva, choque, febre ou outros sinais de inflamação sistémica, sintomas gastrointestinais e quando existe deterioração da função hepática e/ou renal ou encefalopatia hepática3.

O diagnóstico deve ser rápido e o tratamento não deve ser diferido até que os resultados da microbiologia estejam disponíveis. Como os gérmenes mais frequentes são bactérias aeróbicas Gram negativas, tais como E. coli, a antibioterapia de primeira linha inclui as cefalosporinas de 3.a geração. Opções alternativas são a amoxicilina/ácido clavulânico e as quinolonas, nomeadamente ciprofloxacina ou ofloxacina. O uso de quinolonas não deve ser considerado nos doentes a fazer profilaxia com este tipo de antibióticos, nem em regiões com elevada prevalência de resistência às quinolonas, nem na PBE nosocomial3,6.

O prognóstico depende fundamentalmente da gravidade da doença hepática de base e da deterioração adicional que ocorre em resposta à infeção, sendo esta considerada a causa direta da mortalidade em cerca de um terço dos doentes7.

Devido à manutenção de índices de morbilidade e mortalidade elevados, a identificação de fatores indicadores de prognóstico é muito importante.

O artigo publicado neste número da revista com o título «Síndrome hepatorrenal, choque séptico e insuficiência renal como preditores de mortalidade em doentes com Peritonite Bacteriana Espontânea» estuda retrospetivamente os processos clínicos de 42 doentes com PBE com o objetivo de identificar fatores de risco e complicações, durante o internamento, e a sua influência no prognóstico.

É um trabalho sobre um tema muito importante, que suscita algumas questões. Na introdução é referido que o uso profilático de antibióticos está aprovado em doentes com hemorragia gastrointestinal, em doentes com PBE prévia e também naqueles que têm um teor baixo de proteínas no líquido ascítico, sem história anterior de PBE. Existe, efetivamente, consenso em relação às 2 primeiras indicações, mas permanece alguma controvérsia quanto à terceira, sendo importante a realização de mais estudos1,3. Aceita-se, contudo, que a profilaxia primária possa estar indicada em doentes com baixo teor de proteínas no líquido ascítico (< 1,5 g/dl), devendo ser utilizada na presença de doença hepática grave ou insuficiência renal (IR).

No trabalho em apreço, não se referem os critérios considerados para definir IR, síndrome hepatorrenal (SHR) e choque sético, o que torna difícil a comparação dos dados apresentados com os de outros estudos. Relativamente aos resultados, salientam-se a existência de culturas de líquido ascítico negativas em mais de 70% dos doentes, realçando a sua pouca importância para o diagnóstico (embora muito importantes para guiar o tratamento) e a elevada percentagem de falência terapêutica com ceftriaxone (10 em 31 doentes). As complicações e a sua implicação no prognóstico, parte fundamental do trabalho, são apresentadas de forma demasiado sucinta. Por exemplo, em relação à IR e à SHR não se refere se houve ou não administração de albumina e, se houve, em que doentes e qual a sua influência no prognóstico.

A SHR surge em cerca de 30% de doentes com PBE tratados apenas com antibioterapia, sabendo-se que a administração concomitante de albumina (1,5 g/kg aquando do diagnóstico e 1 mg/kg ao 3.◦ dia) diminui a sua frequência e melhora a sobrevivência. Ainda não está esclarecido se um subgrupo de doentes com valores basais mais baixos de bilirrubina e creatinina beneficiam de albumina. No entanto, até que exista mais informação disponível, recomenda-se que todos os doentes com PBE sejam tratados com antibioterapia e albumina intravenosa3. Pensa-se que a albumina reduza o risco de IR por aumentar o volume intravascular efetivo e por ajudar no transporte de moléculas próinflamatórias.

Atualmente, considera-se que a existência de IR é o índice prognóstico mais fiel em doentes com PBE. Llovet et al. demonstraram que a IR era um dos 7 fatores independentes associados a mau prognóstico; Follo et al., num estudo retrospetivo, analisando 252 episódios de PBE, observaram o desenvolvimento de IR em 33%, progressiva em 40% dos casos, tendo sido considerada o principal fator preditivo de morte nestes doentes; nos episódios acompanhados de IR, a mortalidade foi de 54%, tendo sido somente 9% quando esta complicação não estava presente6,7.

Mais recentemente, T.G. Garcia e P. Tandon (2011) efetuaram uma revisão sistemática para identificar os fatores preditivos de mortalidade mais robustos em doentes cirróticos com PBE. Reviram estudos de prognóstico (em língua inglesa apenas) em adultos com PBE, que tivessem análises de sobrevivência e multivariadas e que reportassem a mortalidade em internamento ou dentro de 30 dias. Das 2008 referências identificadas, foram incluídas 18 (com uma média de 115 doentes por estudo). Os fatores preditivos de mortalidade mais frequentes foram a disfunção renal, a ausência de resolução da PBE, os fatores imunossupressores e a PBE nosocomial. Análises de sensibilidade utilizando os 12 estudos com maior qualidade identificaram a disfunção renal e os níveis de azoto ureico e creatinina como sendo as variáveis mais importantes. A mortalidade nos doentes com IR foi de 67%, comparada com 11% nos doentes com função renal mantida. As conclusões apontaram para a necessidade de estudos que determinem se estes fatores mantêm o seu valor prognóstico em doentes de alto risco que recebem albumina e que a estratificação de risco pode ser usada para selecionar tratamentos adicionais, nomeadamente terapêutica precoce com vasoconstritores nos doentes de risco mais elevado8.

Assim, a monitorização adequada da função renal é de primordial importância nos doentes com PBE, que devem ser convenientemente hidratados e não sujeitos a medicamentos nefrotóxicos. A administração de albumina e, eventualmente, de vasoconstritores nas formas mais graves pode melhorar significativamente o prognóstico desta complicação da cirrose.

Infelizmente, o prognóstico a longo prazo dos doentes com cirrose que têm um episódio de PBE é mau, com taxa de mortalidade de 50 a 70% ao fim de um ano. Também a taxa de recorrência de PBE após o primeiro episódio é bastante elevada, atingindo valores da ordem de 70% ao fim de um ano6. Atendendo à elevada probabilidade de recorrência, está recomendada profilaxia com quinolonas (norfloxacina 400 mg/dia, ou ciprofloxacina 500 mg/dia), conseguindo-se uma redução significativa da recorrência (de 68% para 20%), aconselhando-se ainda a referenciação do doente para transplante hepático, caso não exista contraindicação.

 

Bibliografia

1. Wiest R, Krag A, Gerbes A. Spontaneous bacterial peritonitis: recent guidelines and beyond. Gut. 2012;61:297-310, http://dx.doi.org/10.1136/gutjnl-2011-300779.         [ Links ]

2. Barreales M, Fernández I. Spontaneous bacterial peritonitis. Ver Esp Enferm Dig. 2011;103:255-64.         [ Links ]

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