SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número3Ascaridíase diagnosticada por colonoscopiaLinfoma intestinal de células T e doença celíaca índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.20 no.3 Lisboa maio 2013

https://doi.org/10.1016/j.jpg.2012.07.002 

CASO CLÍNICO

 

Fístulas biliodigestivas litiásicas (a propósito de 3 casos clínicos)

Bilio-digestive fistulae of lithiasic origin. A report of 3 cases

 

João Xavier Jorge, Luís António de Sousa, Edgard Augusto Panão, Mário Júlio Campos, António Gonçalves, Abel Cardoso do Vale e Fausto Afonso Pontes

Serviço de Gastrenterologia, Centro Hospitalar de Coimbra, Hospital dos Covões, Coimbra, Portugal

*Autor para correspondência

 

RESUMO

As fístulas biliodigestivas espontâneas são pouco frequentes. Reportamos 3 casos.

Caso 1: Homem de 59 anos, com história de coledocolitíase, recorreu ao serviço de urgência, por dor abdominal, hematoquézias e palidez. Tinha Hb de 8,4 g/dl. A colonoscopia e a endoscopia digestiva alta foram normais. Foi feita hemotransfusão e teve alta. Passados 18 dias voltou ao Serviço de Urgência com quadro semelhante. Repetiu-se a colonoscopia que foi normal. Após hemotransfusão e estabilização, teve alta. Seis dias depois voltou novamente à Urgência. A colonoscopia revelou coágulo aderente ao ângulo hepático. Ainda internado, teve 2 episódios de hematoquézias volumosas. Foi operado de urgência. No intra-operatório, verificou-se que o doente tinha uma fístula colecistocólica, litíase vesicular e hemobilia.

Caso 2: Homem de 74 anos, internado por hemorragia digestiva, com melenas e anemia com Hb de 9,7 g/dl. A endoscopia digestiva alta revelou sufusões hemorrágicas gástricas e bulbares com sangue no estômago e no duodeno. Na colonoscopia observaram-se apenas pregas edemaciadas no ângulo esplénico, tendo o doente tido alta hospitalar. Cerca de 45 dias depois da alta, recorre ao Serviço de Urgência com sensação de obstrução reto-anal. O toque retal evidenciou a presença de um objeto pétreo no reto, tendo este sido retirado manualmente. Tratava-se de um volumoso cálculo biliar.

Caso 3: Homem de 75 anos, enviado para realização de CPRE por iterícia obstrutiva e deformação bulbar. Estava itérico. A TAC mostrava dilatação das vias biliares intra e extrahepáticas e aerobilia. A CPRE demonstrou a presença de um orifício fistuloso duodenal acima da papila drenando bílis e a presença de pequeno cálculo a jusante do orifício.

Conclusão: Tratou-se de 3 casos de fístulas biliodigestivas secundárias a litíase biliar.

Palavras-Chave: Fístula; Bíliodigestiva; Litíase biliar

 

ABSTRACT

Spontaneous bilio-digestive fistulae are infrequent. We report three cases.

Case 1: A 59 year old male, was admitted to the Emergency Department with complaints of abdominal pain, hematoquesia and pallor. The haemoglobin was 8.4 g/dl. Colonoscopy and upper gastrointestinal endoscopy were normal. He was given blood transfusion and subsequently discharged. Eighteen days later, he was readmitted to the Emergency Department with the same complaints. The exams were normal and after a transfusion, he was discharged. He was again admitted to the Emergency Department after six days. During his hospitalization he had two episodes of hematoquesia. The colonoscopy revealed a blood clot in the hepatic angle. An urgente surgery was made and revealed a cholecistocolonic fistulae, vesicular lithiasis and hemobilia.

Case 2: A 74 year old male was admitted with to the Emergency Department with a history of melenas with a Hb of 9.7 g/dl. The upper gastrointestinal endoscopy revealed gastric and duodenal erosions and blood. The colonoscopy showed edematous and congested mucosal folds the splenic angle of the descending colon. He was given blood transfusions and subsequently discharged. Nearly 45 days later, the patient presented to the Emergency Department complaining of difficulty in evacuating stools. The proctologic examination revealed a petrous object in the rectum which was manually removed under anesthesia. The object was a large billiary stone.

Case 3: A 75 year old male, with obstructive jaundice and bulbar deformation was admitted to the hospital for an ERCP. The CT had revealed a dilatation of intra and extra hepatic biliary tree and aerobilia. During the ERCP, just above the papilla, a small orifice draining bile was observed along with a calculus at the end of the choledocus.

Conclusions: It were 3 cases of biliodigestive fistulas secondary to gallstones.

Keywords: Fistulae; Biliodigestive; Biliary lithiasis

 

Introdução e objetivo

Sendo uma situação clínica pouco frequente, as fístulas biliodigestivas causadas por litíase biliar geralmente são um achado clínico ou são conhecidas na sequência de uma complicação1,2. São também as mais comuns das fístulas internas nos seres humanos. Com a evolução das técnicas de intervenção cirúrgica e endoscópica sobre as estruturas hepatobiliares, as fistulas biliodigestivas, antes causadas por litíase biliar, úlceras duodenais e por tumores malignos3,4, são hoje mais frequentemente o resultado de complicações de tais intervenções5-7. O surgimento de hemorragia digestiva associada a iterícia, vómitos e a cólicas biliares num paciente com antecedentes de intervenção nas vias biliares, sugere eventual hemobilia2. Todavia, persistem os casos em que o quadro clínico não sugere tal origem. A apresentação pode se tão grave e atípica que pode pôr em risco a vida do doente, exigindo intervenção urgente8. A hemorragia digestiva por hemobilia é a complicação mais grave que pode ocorrer, com elevada morbilidade e mortalidade9. As fístulas bilioduodenais estão entre as mais frequentes, seguidas das biliocólicas10.

Este trabalho tem como objetivo reportar 3 casos clínicos de fístulas biliodigestivas, cujas apresentações foram relativamente diferentes.

Casos clínicos

Caso 1

Indivíduo do género masculino de 59 anos de idade, caucasoide, seguido em consultas por colelitíase e com cirurgia laparoscópica marcada, recorreu ao serviço de urgência, por dor abdominal e hematoquézia. Apresentava-se com acentuada astenia e palidez cutânea e das mucosas. Tinha Hb de 8,4 g/dl, VCM 86.7fl, plaquetas 190 000/ul, bilirrubina total 15,3mmol/l, bilirrubina direta 3,7mmol/l. As provas hepáticas eram normais. A colonoscopia feita de urgência não revelou presença de sangue no lúmen nem de lesões passíveis de terem sangrado. A endoscopia digestiva alta também foi normal. Foi tratado com transfusão de concentrado de glóbulos vermelhos, analgésicos e soros. Teve alta. Passados 18 dias o paciente tornou a recorrer ao serviço de urgência referindo dejeção de sangue vivo abundante. A sua hemoglobina era de 9,14 g/dl, VCM 88fl, leucócitos 6.400/ul, plaquetas 209 000/ul, TP 14 (controlo 14 s) e TTP 29 (controlo 27 s) e as restantes análises dentro da normalidade. Repetiu-se a colonoscopia que foi semelhante à anterior. Apresentava hemorroidas internas não sangrantes, às quais se fez laqueação elástica. Após hemotransfusão e estabilização hemodinâmica, teve alta para o domicílio. Volvidos 6 dias retornou ao serviço de urgência, onde teve dejeção volumosa de sangue vivo. Realizada nova colonoscopia, observou-se a presença de um coágulo aderente no ângulo hepático do cólon, que foi tratado com árgon plasma. Internado, o doente teve, poucas horas depois, uma segunda hematoquézia volumosa. Feita arteriografia do território das mesentéricas e do tronco celíaco, sem sinais de extravasamento de contraste, foi submetido a laparotomia de urgência. Os achados operatórios foram uma fístula colecistocólica, litíase vesicular (fig. 1) e hemobilia. Foi feita colecistectomia e encerrado o orifício fistuloso. Teve alta melhorado.

 

 

Caso 2

Doente de 74 anos, masculino, caucasoide, diabético tipo 2 a tomar varfarina por arritmia, foi internado por hemorragia digestiva, melenas e palidez acentuada. Estava apirético, anitérico e a palpação abdominal era ligeiramente dolorosa. Tinha anemia de 9,7 g/dl, VGM 80,7 fl, Ht 28%, leucocitose de 15.500/ul, plaquetas 272 000/ul, INR 2.3, TP 26 s (normal 10 s), TTP 29 (normal 25 s), glucose 10,6 mmol/l, bilirrubina total 1,1 e direta 0,4 mmol/l, fosfatase alcalina 60 mmol/l, TGO 11 mmol/l, TGP 15 mmol/l, outras análises normal. A endoscopia digestiva alta revelou sufusões hemorrágicas gástricas e bulbares com sangue no estômago e no duodeno. Na colonoscopia observaram-se lesões polipoides e pregas edemaciadas no ângulo esplénico. As lesões foram biopsadas e o relatório da anatomia patológica revelou tratarem-se de lesões benignas com características de tecido hipertrofiado. Tratado com hemotransfusão. Cerca de 45 dias depois recorre ao BU com sensação de obstáculo reto-anal. Feita radiografia do abdómen simples de pé, evidenciava aerobilia (fig. 2), sem distensão significativa das ansas do cólon. O toque retal evidenciou a presença de um objeto pétreo no reto. Foi retirado manualmente. Na revisão do filme radiográfico, notou-se o esboço do cálculo na ampola retal. Tratava-se de um volumoso cálculo biliar, com cerca de 7 cm de comprimento e 3,5 cm de diâmetro (fig. 3), que transitou por uma fístula provavelmente colecistoduodenal. O paciente não apresentou, posteriormente, qualquer sinal de perturbação hepatobiliar ou digestiva.

 

 

 

 

Caso 3

Homem de 75 anos de idade, caucasoide. Enviado ao CHC para realização de CPRE por iterícia obstrutiva e deformação bulbar. Estava itérico. As análises mostravam Hg 15,8 g/dl, bilirrubina total 7,4 mg/dl e direta 4,7 mg/dl, GGT 320 mmol/l, TGO 345 UI, TGP 360UI, leucócitos 10.170/ul e neutrófilos 9.410/ul. A TAC abdominal, que trazia do exterior, mostrava dilatação das vias biliares intra e extrahepáticas e aerobilia (fig. 4). A CPRE demonstrou a presença de um orifício fistuloso duodenal acima da papila drenando bílis e a presença de pequeno cálculo a jusante do orifício (fig. 5). Tratava-se de uma fístula coledocoduodenal. Devido à dificuldade de canalizar a papila, fez-se limpeza do colédoco com balão de pequeno diâmetro através do orifício fistuloso. Cerca de 4 semanas depois o paciente estava anitérico e as análises estavam todas dentro dos valores normais.

 

 

 

Discussão

Os 3 casos aqui reportados refletem algumas das diferentes formas de apresentação clínica das fístulas biliodigestivas espontâneas. Em nenhum deles os sinais sugeriam a presença da fístula, como é com frequência reportado na literatura8. Se, no caso 3, o surgimento da fístula permitiu - mercê da existência de um cálculo a jusante que impedia a normal drenagem biliar - a resolução e drenagem biliar para o duodeno, nos outros 2, a sua expressão foi a mais temível das complicações: a hemobilia11. A hemobilia associada à hemorragia digestiva está descrita e é uma complicação, às vezes, difícil de associar à causa subjacente12,13. Particularmente no caso 1, esta complicação pôs em risco elevado a vida do paciente e condicionou um estado mórbido de elevada gravidade, pela dificuldade inicial em se esclarecer a origem do sangramento e pelos episódios hemorrágicos recorrentes que experimentou. A atitude terapêutica de aplicar árgon plasma no coágulo observado no ângulo hepático do cólon teria sido imprópria caso se considerasse a possibilidade de se tratar de uma fístula biliodigestiva. De facto, apesar de o paciente ser conhecido como estando a aguardar por colecistectomia laparoscópica por litíase vesicular, em momento nenhum se associou a possibilidade daquele sangramento ou do coágulo aderente no cólon estarem associados a patologia litiásica. Acrescenta-se o facto, de acordo com Dorrance1, de as anomalias adquiridas das vias biliares serem difíceis de reconhecer na colecistectomia laparoscópica, o que poderia, naquela circunstância, constituir uma dificuldade cirúrgica.

No caso 2, a toma de Varfine®, o desconhecimento da existência de litíase biliar, o facto de o paciente não ter apresentado iterícia nem cólica biliar e ter as provas hepáticas normais também não corroboraram para tal diagnóstico. Salienta-se neste caso a particularidade de o cálculo de grandes dimensões ter sido expulso por via anal, o que não está descrito como frequente. Comum é surgir um quadro de ileus biliar, geralmente tratado por via endoscópica ou cirúrgica14.

Em conclusão, os casos reportados constituíram situações clínicas de fístulas biliodigestivas, secundárias a litíase biliar, com apresentações clínicas diferentes. As diferentes formas de apresentação clínica dos mesmos e o despertar da atenção que o conhecimento destes casos pode desencadear para aspetos normalmente não relacionados com aquela patologia, justificam sobremaneira a sua relevância clínica.

 

Bibliografia

1. Dorrance HR, Lingam MK, Hair A, Oien K, O’Dwyer PJ. Acquired Abnormalities of the biliary tract from chronic gallstone disease. J Am Coll Surg. 1999;189:269-73.         [ Links ]

2. Ozdemir A, Cos¸kun T, Ozenç A, Hersek E. Biliary enteric Fistulas. Int Surg. 1997;82:280-3.         [ Links ]

3. Shimao K, Yamaue H, Nishimoto N, Terasawa H, Saigan S, Onishi H, et al. Choledochoduodenal fistulae at anterior Wall of the duodenal bulb: a rare complication of duodenal ulcer. Hepatogastroenterol. 1999;46:261-4.         [ Links ]

4. Okabe T, Ohwada S, Ogawa T, Takeyoshi I, Sato Y, Kamoshita N, et al. Gallblader carcinoma with choledochoduodenal fistulae: a case report with surgical treatment. Hepatogastroenterology. 1999;46:1660-3.         [ Links ]

5. Dunshea TJ, Little AF. Gastrointestinal haemorrhage due to erosion of the duodenal wall by a biliary stent. Australas Radiol. 2005;49:69-71.         [ Links ]

6. Heyn J, Sommerey S, Schmid R, Hallfeldt K, Schmidbauer S. Fistula between cystic artery pseudoaneurysm and cystic bile duct cause of acute anemia one year after laparoscopic cholecystectomy. J Laparoendosc Adv Surg Tech A. 2006;16:609-12.         [ Links ]

7. Manolakis AC, Kapsoritakis AN, Tsikouras AD, Tsiopoulos FD, Psychos AK, Potamianos SP. Hemobilia as the initial manifestation of cholangiocarcinoma in a hemophilia B patient. World J Gastroenterol. 2008;14:4241-4.         [ Links ]

8. Picucci L, Alibrandi M, Persico Stella L, Bevilacqua M, De Nuntis S, Quondamcarlo C, et al. Biliodigestive fistulae. Apropos 2 cases with opposite symptomatology. Minerva Chir. 1997;52:439-47.         [ Links ]

9. Honoré C, Dondelinger RF. Hemobilia. Rev Med Liege. 2007;62:536-8.         [ Links ]

10. Stagnitti F, Mongardini M, Schillaci F, Dall’Olio D, De Pascalis M, Natalini E. Spontaneous biliodigestive fistulae. The clinical considerations, surgical treatment and complications. G Chir. 2000;21:110-7.         [ Links ]

11. Buscaglia JM, Parashette KR, Okolo 3rd PI. Treatment of hemobilia-induced biliary obstruction by transpapillary gallbladder and common bile duct drainage using three biliary winged stents. Endoscopy. 2008;40 Suppl. 2:E58.         [ Links ]

12. Meier K, Krause U, Holtmann G, Eigler FW. Upper gastrointestinal hemorrhage caused by necrotizing cholecystitis with gallstone perforation into the duodenum. (Abstract). Chirurg. 1997;68:1035-6.         [ Links ]

13. Roebuck DJ, Stanley P, Katz MD, Parry RL, Haight MA. Gastrointestinal hemorrhage due to duodenal erosion by a biliary wallstent. Cardiovasc Intervent Radiol. 1998;21:63-5.         [ Links ]

14. Limido E, Lesinigo E, Reguzzoni G, Rocca F. Digestive hemorrhage secondary to biliary ileus. Endoscopic diagnosis. Minerva Chir. 1993;48:1121-3.         [ Links ]

 

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

 

*Autor para correspondência

Correio eletrónico: cambombo@hotmail.com  (J. Xavier Jorge).

 

Recebido a 26 de setembro de 2011; aceite a 9 de janeiro de 2012