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Jornal Português de Gastrenterologia
versão impressa ISSN 0872-8178
J Port Gastrenterol. vol.21 no.3 Lisboa jun. 2014
https://doi.org/10.1016/j.jpg.2013.09.006
ARTIGO ORIGINAL
Perceção do estado de saúde e da qualidade de vida numa amostra de celíacos portugueses
Self-perception of health status and quality of life in a Portuguese sample of celiac patients
Ana Pimenta-Martins∗, Elisabete Pinto e Ana M.P. Gomes
Centro de Biotecnologia e Química Fina, Escola Superior de Biotecnologia, Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa, Porto, Portugal
*Autor para correspondência
RESUMO
Introdução: O tratamento da doença celíaca consiste na prática de uma dieta isenta de glúten (DIG). A adesão à DIG é dependente de múltiplos fatores, nos quais se inclui, possivelmente, a qualidade de vida (QdV).
Objetivos: Avaliar a perceção do estado de saúde e a QdV de uma amostra de celíacos portugueses, relacionando-a com o cumprimento da DIG.
Material e métodos: Tratou-se de um estudo transversal, cuja recolha de informação se baseou num questionário estruturado, autoaplicado e de preenchimento online. A QdV foi avaliada através da escala Short-Form 36 (SF-36). As variáveis categóricas foram descritas através de proporções e as variáveis contínuas foram descritas através da média e desvio-padrão ou da mediana e intervalo interquartil.
Resultados: O estudo incluiu 195 indivíduos portugueses, com mediana das idades de 32 anos. Cerca de 67% dos inquiridos consideravam gozar de muito boa ou de boa saúde. Registaram-se pontuações médias mais elevadas para os domínios «capacidade funcional» e «aspetos físicos» do SF-36 e mais fracas para os domínios da «vitalidade» e «estado geral de saúde». As mulheres apresentaram pontuações significativamente mais baixas para os domínios «dor», «vitalidade» e «saúde mental». Não se encontrou associação entre a perceção da QdV e o cumprimento da DIG. Os participantes com diagnóstico mais recente apresentaram pontuações mais baixas em todos os domínios do SF-36.
Conclusão: Os celíacos inquiridos classificaram o seu estado de saúde geral e a sua QdV em melhores níveis do que a população portuguesa no geral. A QdV não se associou ao cumprimento da DIG.
Palavras-Chave: Qualidade de vida; Doença celíaca; Estado de saúde
ABSTRACT
Introduction: The treatment of celiac disease is a gluten-free diet (GFD). The compliance with a GFD is dependent on multiple factors, which include, possibly, the quality of life (QoL).
Objective: To evaluate the perception of health status and QoL in a sample of Portuguese celiac patients, relating it to the compliance of the GFD.
Material and methods: Transversal study which data collection was based on a structured questionnaire prepared to be self-applied and filled in online. The QoL was evaluated through Short-Form health survey 36 (SF-36). Categorical variables were described through proportions and continuous variables were described through mean and standard deviation or median and interquartile range.
Results: The study included 195 Portuguese individuals, with a median age of 32 years. About 67% of respondents believed to enjoy very good or good health. The highest mean scores were obtained for the domains physical functioning and role-physical and the lowest scores for the domains vitality and general health. Women had significantly lower scores for the domains bodily pain, vitality and mental health. There was no association found between the perception of QoL and compliance with the GFD. Participants with more recente diagnosis had lower scores in all domains of the SF-36.
Conclusions: The celiac respondents rated their general health status and QoL in better levels than the Portuguese population in general. The QoL was not associated with compliance of the GFD.
Keywords: Quality of life; Celiac disese; Health status
Introdução
A doença celíaca (DC) é uma doença de caráter autoimune, precipitada pela ingestão de cereais que contêm glúten, em indivíduos geneticamente predispostos1,2. Caracteriza-se por um estado de inflamação crónica da mucosa intestinal, que reverte aquando da exclusão do glúten da alimentação e reincide após a sua reintrodução na dieta3. Na base da inflamação crónica estão reações imunológicas complexas que vão induzir alterações morfológicas e funcionais na mucosa do intestino delgado proximal, com grave prejuízo na absorção de nutrientes e risco aumentado de morbilidade e malignidade3-5.
Tradicionalmente considerada uma síndrome de má absorção rara na infância, reconhece-se, atualmente, que a DC é uma condição mais frequente, que pode ser diagnosticada em qualquer idade e que afeta múltiplos sistemas de órgãos1,6. Estudos epidemiológicos realizados nos Estados Unidos da América e Europa indicam que a prevalência da DC na população em geral é de aproximadamente 1%7-10. São frequentes os atrasos entre o início dos sintomas e o diagnóstico11 e a DC permanece ainda subdiagnosticada apesar dos avanços no conhecimento do espetro clínico e nos métodos de rastreio e diagnóstico12-14.
O único tratamento disponível para a DC consiste na prática de uma dieta isenta de glúten (DIG) que deve ser mantida para toda a vida15,16. Todos os alimentos e medicamentos que contenham glúten na sua composição devem ser eliminados, dado que, mesmo a ingestão de pequenas quantidades, pode ser prejudicial1,15,17,18.
Apesar dos benefícios para a saúde, a adesão à DIG varia de 42-91%19. Alguns dos fatores que influenciam a adesão ao tratamento incluem: a pertença a grupos de apoio, a correta interpretação da rotulagem nutricional, ter conhecimentos acerca da DIG, o elevado custo dos alimentos específicos sem glúten (AESG), a capacidade de excluir o glúten aquando da realização de refeições fora de casa, em viagem ou independentemente de alterações de humor ou situações de stresse, perceber os malefícios para a saúde que advém da exposição ao glúten, o nível de educação, a idade de diagnóstico, a disponibilidade dos AESG no mercado e o grau de satisfação associado às suas características sensoriais e organoléticas e a satisfação com as informações prestadas pelos profissionais de saúde19-24. Um estudo finlandês mostrou que alguns destes fatores se associam, também, com a qualidade de vida dos celíacos25. É possível que, por sua vez, esta dimensão subjetiva esteja também relacionada com o cumprimento da DIG.
O presente trabalho teve como principal objetivo avaliar a perceção do estado de saúde e a qualidade de vida de uma amostra de doentes celíacos portugueses, relacionando-os com o cumprimento da DIG.
Material e métodos
Realizou-se um estudo de caráter observacional, transversal e descritivo. Para tal, elaborou-se um questionário estruturado, preparado para autoaplicação e de preenchimento online, direcionado a doentes celíacos portugueses, com idade igual ou superior a 16 anos. Assegurou-se o anonimato dos participantes e o caráter voluntário da sua participação. Assumiu-se o consentimento presumido, a partir do momento em que o participante preenchesse o questionário. O estudo contou com o aval da Associação Portuguesa de Celíacos (APC).
No questionário incluíram-se, entre outras, questões que permitiam caracterizar o perfil sociodemográfico dos participantes, as circunstâncias em que foi realizado o diagnóstico da DC, aferir o cumprimento da DIG e o impacto da DC nas práticas alimentares e na vida social. Para medir a perceção do estado de saúde e da qualidade de vida usou-se a versão portuguesa da escala de medição Short-Form 36 (SF-36), devidamente validada para a população portuguesa26-29.
A recolha de dados efetuou-se entre os meses de abril a julho de 2011. Após o estudo piloto, o questionário foi disponibilizado online e iniciou-se a sua divulgação através dos contactos de correio eletrónico dos investigadores, esperando-se um efeito «bola de neve». A APC também contribuiu ativamente para o estudo, divulgando o questionário, por e-mail, pelos seus associados. De forma a chegar-se ao maior número de doentes celíacos possível, solicitou-se igualmente à Associação Portuguesa dos Nutricionistas a divulgação do questionário pelos parceiros e associados. Alguns blogues dedicados à DC e ao seu tratamento iniciaram a divulgação do mesmo de forma voluntária. As redes sociais constituíram ferramentas essenciais de divulgação do questionário, que foi partilhado através das páginas pessoais dos investigadores e dos seus contactos e também pela página da APC. Além disso, o questionário incluía um botão de partilha automática pelo Facebook®.
Na apresentação do questionário mencionava-se, de forma explícita, que o mesmo deveria ser preenchido apenas por doentes celíacos, com idade igual ou superior a 16 anos, a residir em Portugal (eram solicitados dados relativos ao local de residência). Além disso, os participantes eram solicitados a responder apenas uma vez ao questionário, apesar de poderem tomar conhecimento do mesmo várias vezes.
O questionário esteve online entre 18 de abril e 15 de julho de 2011. Neste período obtiveram-se 201 questionários válidos. Para este estudo em particular foram apenas consideradas as respostas de 195 indivíduos, uma vez que os restantes 6 eram menores de 18 anos e o instrumento SF-36 encontra-se validado somente para adultos.
Após a conclusão do período de recolha de dados as respostas foram extraídas da base de dados MySQL e convertidas para o software de análise estatística IBM SPSS Statistics®, versão 19.0.
As variáveis categóricas foram descritas através de proporções, enquanto as variáveis contínuas foram descritas através de média e respetivo desvio-padrão (variáveis com distribuição normal) ou através de mediana e respetivo intervalo interquartil (variáveis que não apresentavam uma distribuição normal). A normalidade da distribuição das variáveis foi verificada através do teste de Kolmogorov-Smirnov.
Foi considerado um nível de significância de 5%.
Resultados
Como apresentado na tabela 1, verifica-se que a maior parte dos participantes eram associados da APC (66,2%). A participação dos indivíduos do sexo feminino foi 8 vezes superior à dos indivíduos do sexo masculino (88,7 vs. 11,3%). A mediana das idades dos participantes era de 32 anos, variando entre os 18-80 anos. Aproximadamente 55% dos participantes eram casados ou viviam em união de facto. Cerca de 57% eram bacharéis ou licenciados e 8,7% apresentavam grau académico superior a licenciatura.
No que diz respeito ao rendimento mensal do agregado familiar, 17,4% apresentavam rendimentos inferiores a 1.000 euros, 35,3% dos participantes referiu valores entre 1.000-2.000 euros e outros 35% superiores a 2.000 euros.
O questionário foi respondido por indivíduos residentes em praticamente todos os distritos de Portugal (com exceção de Bragança e Portalegre), incluindo as Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores. A grande maioria dos participantes residia no distrito de Lisboa (35,9%), Porto (17,4%), Braga (7,7%), Setúbal (6,7%), Leira (6,2%) e Coimbra (6,2%), como elucidado na tabela 2.
Caracterizaram-se as circunstâncias em que os participantes tiveram conhecimento de que apresentavam DC (tabela 3). Verificou-se que a idade mediana de diagnóstico correspondeu a 27 anos, variando entre os 17-36 anos e 79,5% dos participantes referiu ter sido diagnosticado tendo por base a avaliação histológica com biopsia duodenal. De salientar que 70% dos inquiridos foram diagnosticados na idade adulta.
Os principais sintomas vivenciados pelos participantes antes do diagnóstico incluíam dor abdominal (75,4%), diarreia (72,8%), distensão abdominal (58,5%), perda de peso (52,3%), nervosismo/irritabilidade (52,3%) e flatulência (50,3%). Apenas 3,6% referiu não ter apresentado qualquer sintoma.
A esmagadora maioria (97,4%) dos participantes referiu tentar cumprir a DIG na sua alimentação diária. Cerca de metade (52,3%) mencionou nunca consumir alimentos com glúten; pelo contrário, 10,8% dos participantes assinalaram consumir alimentos com glúten diariamente.
A todos aqueles que responderam consumir alimentos com glúten, independentemente da frequência (n = 93), solicitou-se que apontassem as razões que os levavam a quebrar a DIG e perguntava-se igualmente quais os sintomas vivenciados após o consumo destes alimentos. As principais razões apontadas para quebrar a dieta e consumir alimentos com glúten incluíam a falta de alternativa (35,5%), escolha própria (34,4%), o preço dos AESG (21,5%) e não gostar do sabor e/ou textura dos AESG (15,1%). Após o consumo de alimentos com glúten, metade dos participantes experimentava dor/distensão abdominal (51,6%), 47,3% queixavam-se de diarreia, 18,3% vivenciavam alterações de humor, 17,2% experimentavam náuseas/vómitos e 7,5% referiram depressão. Aproximadamente 25,8% experimentavam, pelo menos, 3 sintomas após o consumo de alimentos com glúten e 24,3% referiram não vivenciar qualquer sintoma.
Mais de metade dos participantes (53,3%) consideravam que a sua alimentação atual era mais saudável comparativamente à que realizavam antes de serem diagnosticados e apenas 4,1% consideravam o contrário. Cerca de 43% consideravam que a sua alimentação atual era tão saudável quanto aquela que praticavam antes do diagnóstico de DC.
Sensivelmente 4 em cada 5 participantes (77,4%) reportaram que, após o diagnóstico de DC, a relação social com os familiares, amigos, colegas de trabalho não sofreu alterações. Porém, 19% disseram socializar menos e os restantes 3,6% referiram ter aumentado o grau de socialização.
Quando questionados acerca da realização de refeições fora de casa, 53,8% dos inquiridos responderam ter diminuído a sua frequência após o diagnóstico de DC, enquanto apenas 3,6% referiram ter aumentado esta frequência.
De assinalar que aproximadamente metade (54,4%) dos inquiridos consideraram que a sua vida teria sido melhor se tivessem sido diagnosticados mais cedo, enquanto 7,7% tinham opinião contrária. Cerca de 2 terços (69,2%) sentiam-se satisfeitos por terem sido diagnosticados, considerando todas as mudanças que tiveram que efetuar inerentes à DC. Somente 9,7% dos participantes se sentiam insatisfeitos por terem sido diagnosticados.
No que se refere à perceção do estado de saúde e da qualidade de vida, 67,2% dos participantes consideravam gozar de muito boa ou de boa saúde, 4,1% de excelente saúde e 27,7% de saúde razoável, sendo que apenas 1% dos participantes referiram gozar de fraca saúde. No que diz respeito ao estado geral atual comparativamente ao que acontecia há um ano, a maioria (54,9%) considerava ser aproximadamente igual, 25% com algumas melhorias e 15% muito melhor. Apenas 5,1% dos participantes consideravam que o seu estado geral atual face ao ano anterior era pior.
Da análise da tabela 4 pode observar-se que a amostra estudada apresentou pontuações médias mais elevadas para os domínios «capacidade funcional» e «aspetos físicos» do SF-36. As pontuações médias mais fracas foram encontradas no que respeita aos domínios da «vitalidade» e do «estado geral de saúde». Quando se analisam as pontuações médias obtidas nos domínios do SF-36 em função do sexo dos participantes, verifica-se que as mulheres estudadas obtiveram pontuações médias mais baixas em todas as dimensões, porém, só se verificaram diferenças estatisticamente significativas nos domínios «dor», «vitalidade» e «saúde mental».
Avaliou-se, igualmente, a perceção da qualidade de vida em função do cumprimento rigoroso da DIG e do facto dos participantes serem ou não associados da APC. Em nenhum dos casos se observaram diferenças estatisticamente significativas. No entanto, verificou-se que os participantes nos quais o diagnóstico tinha sido realizado há menos de um ano apresentavam pontuações mais baixas em todos os domínios do SF-36, apesar de as diferenças serem estatisticamente diferentes somente para a «saúde mental» (p = 0,020).
Discussão
Atendendo à inexistência de um registo nacional dos doentes celíacos e à dificuldade em obter uma amostra representativa nacional dos mesmos, o contacto com potenciais participantes foi efetuado maioritariamente seguindo-se 2 vertentes: 1) o questionário foi enviado por e-mail pela APC para os seus associados; paralelamente, 2) os investigadores principais deste estudo difundiram-no por e-mail para os seus contactos, pedindo a todos que o recebessem que o reenviassem para o maior número de pessoas possível. Além disso, também se procedeu à divulgação do questionário nas redes sociais. Apesar das reconhecidas limitações quanto à representatividade da amostra obtida por este método, esta foi a solução encontrada para, com os recursos disponíveis, incluir o maior número possível de participantes, provenientes de todo o território nacional. Num período de tempo relativamente curto conseguiu-se caracterizar uma amostra de 195 doentes celíacos, distribuídos pela maioria dos distritos de Portugal. Seria, contudo, interessante uma avaliação da distribuição dos participantes por zonas rurais e zonas urbanas. No entanto, não foram recolhidas informações no estudo que permitam tal análise.
A avaliar pela mediana registada, a amostra do estudo era maioritariamente composta por jovens adultos, o que se deve, talvez, ao facto da faixa etária considerada ser, a seguir ao grupo etário dos 15-24 anos, a maior utilizadora de internet em Portugal, sendo os que mais usam o e-mail e os segundos maiores utilizadores das redes sociais30. Os participantes deste estudo são seguramente mais escolarizados do que a média nacional. Os dados do Instituto Nacional de Estatística estimavam que, em 2010, para a faixa etária dos 25-34 anos a proporção de indivíduos que possuía o ensino superior seria de 24,8%31. No presente estudo essa proporção ascende aos 63,7%. O facto de se ter obtido uma amostra altamente escolarizada torna os resultados interessantes, pois este grupo é provavelmente o que tem maior acesso à informação sobre a doença, mas será eventualmente o mais crítico relativamente à informação e serviços que têm disponíveis.
Tradicionalmente tem-se associado a DC a uma doença da infância1,6. As manifestações clássicas da doença levariam os cuidadores a procurarem os profissionais de saúde, o que conduziria ao diagnóstico. No entanto, são vários os estudos que têm vindo a sugerir que o diagnóstico possa apenas acontecer já na idade adulta, pela manifestação de sintomas mais ligeiros ou atípicos ou por diagnósticos anteriores incorretos5,32. Neste estudo a mediana para a idade de diagnóstico foi de 27 anos e 70% dos casos foram diagnosticados na idade adulta. Saliente-se, contudo, que não foram incluídos doentes celíacos com menos de 18 anos, o que em parte explica este resultado. De acordo com Tack et al., a DC pode ser diagnosticada em qualquer idade, porém, verifica-se um pico na infância e outro na quarta ou quinta décadas de vida10. Efetivamente, num estudo que envolveu 2.681 membros adultos da Associação Canadiana de Celíacos verificou-se que a média da idade de diagnóstico foi de 46 anos, sendo que somente 7% foram diagnosticados na infância33. Gray e Papanicolas, num estudo realizado em sócios da Associação de Celíacos do Reino Unido, verificaram que a média da idade de diagnóstico correspondeu a 41,3 anos34; num outro estudo envolvendo 154 adultos americanos esta média foi de 44,8 anos23. Green et al. Verificaram que a maioria dos participantes do seu estudo tinham sido diagnosticados entre a quarta e a sexta décadas de vida11. Neste estudo, a mediana da idade de diagnóstico é inferior ao reportado na literatura, o que poder-se-á dever ao método utilizado para a seleção da amostra.
O método de referência para efetuar o diagnóstico de DC continua a ser a avaliação histológica com biopsia intestinal5. Quando questionados acerca da realização deste exame, apenas 79% dos inquiridos afirmaram tê-lo feito, valor semelhante aos 75% encontrados num estudo realizado nos Estados Unidos da América11, mas bem inferior ao valor encontrado num estudo canadiano33. Uma limitação do presente estudo prende-se com o facto de não se ter questionado os participantes que não realizaram avaliação histológica com biopsia intestinal sobre quais os critérios ou testes realizados que estiveram na origem do seu diagnóstico.
A partir do momento em que são diagnosticados com DC os indivíduos devem iniciar DIG, que deve ser mantida para toda a vida1,6,35. Neste trabalho, verificou-se que apesar de 97,4% dos inquiridos tentar cumprir a DIG na sua alimentação diária, 47,7% reportaram ingerir glúten com frequência variável. Já Lamontagne et al. verificaram que, embora 90% dos participantes evitasse tanto quanto possível a ingestão de glúten, 72% admitia consumir alimentos com o agente tóxico20. A percentagem de inquiridos que afirmaram consumir alimentos com glúten por escolha própria neste estudo foi semelhante à observada por Lamontagne et al.: 35,4 e 36%, respetivamente20. Numa revisão sistemática recente apontava-se que as proporções de adesão estrita à DIG auto reportadas variavam de 42-91%, sendo que fatores como a disponibilidade e o preço dos AESG, o saber interpretar a rotulagem alimentar, ter a capacidade de manter a DIG aquando de viagens, no trabalho e durante eventos sociais, contribuíam de forma positiva para o cumprimento da dieta19.
Cerca de 54% dos inquiridos neste estudo referiram ter diminuído a frequência de consumo de refeições fora de casa após o diagnóstico, percentagem superior à encontrada num estudo realizado no Reino Unido - 44,2%36. Já no estudo de Lee e Newman, 86% dos participantes afirmaram que a DIG prejudicava a realização de refeições fora de casa37. A diminuição da frequência de refeições fora de casa terá, certamente, a ver com o facto dos inquiridos não se sentirem seguros nas escolhas alimentares, dada a natureza restritiva da DIG.
É facilmente percetível que, quer pela sintomatologia associada à ingestão inadvertida de glúten quer pela dificuldade em seguir uma DIG pelas mais diversas razões, a DC possa afetar a auto perceção do estado de saúde e da qualidade de vida dos doentes celíacos. Para avaliar estes domínios usou-se a escala SF-36, comummente utilizada para relacionar qualidade de vida com desfechos de saúde.
À semelhança dos resultados obtidos por outros autores38,39, os participantes do sexo feminino apresentaram piores pontuações em todos os domínios do SF-36, com diferenças estatisticamente significativas apenas para as dimensões «dor», «vitalidade» e «saúde mental». Estes resultados sugerem que a doença afeta de forma mais negativa as mulheres celíacas do que os homens.
Seria expectável que o cumprimento da DIG se associasse positivamente com a qualidade de vida. No entanto, os resultados obtidos não o mostraram. Na extensa pesquisa realizada sobre o assunto não se encontraram outros trabalhos que tivessem abordado tal questão. Contudo, podem adiantar-se algumas explicações para esta observação: a) pode acontecer que os doentes celíacos não cumpridores da DIG sejam os que apresentam sintomatologia mais ligeira, o que não lhes compromete significativamente a qualidade de vida; b) não menosprezando que quer a sintomatologia quer o cumprimento da DIG afetam a vida dos doente celíacos, pode acontecer que os não cumpridores da DIG considerem que esta opção, mesmo acarretando sintomas indesejados, lhes perturba menos o seu dia a dia, do que o cumprimento da dieta e c) não pode ser excluída a possibilidade de o instrumento utilizado não ser suficientemente sensível para diferenciar estes 2 grupos.
O facto dos participantes diagnosticados nos últimos 12 meses tenderem a apresentar piores pontuações foi igualmente reportado por Zarkadas et al. ao verificarem que os doentes diagnosticados no último ano apresentavam piores pontuações comparativamente àqueles diagnosticados há mais de 12 meses39. Estes resultados serão justificáveis pelas dificuldades encontradas na aprendizagem e no seguimento da DIG, bem como pelas alterações no estilo de vida por ela impostas, especialmente nos primeiros meses após o diagnóstico, que podem ser assoladoras, exigindo grande esforço e comprometimento por parte do doente40,41.
Sabe-se, contudo, que estas dimensões também dependem de fatores culturais. Por isso teve-se a preocupação de comparar a qualidade de vida dos doentes celíacos com a da população portuguesa no geral (tabela 5). Quando se comparam as pontuações obtidas em todos os domínios do SF-36 dos participantes do estudo com aquelas obtidas para a população portuguesa ativa dos 25-34 anos28, grupo etário que engloba a mediana das idades da amostra em estudo, verifica-se que, surpreendentemente, as pontuações médias dos participantes celíacos são mais elevadas em todas as dimensões, com exceção da «vitalidade», domínio relacionado com os níveis de energia e de fadiga. De facto, verificam-se diferenças estatisticamente significativas no domínio vitalidade, mas também nas dimensões «capacidade funcional», «aspetos físicos», «dor» e «aspetos emocionais». A perceção do estado de saúde e de qualidade de vida da amostra de doentes celíacos estudada parece ser melhor do que o que se verifica na população em geral.
Estes resultados são diferentes do que é reportado na literatura, existindo estudos que não encontram diferenças na qualidade de vida entre portadores de DC e população geral39 e outros que reportam que os doentes celíacos têm pior qualidade de vida do que a população geral38. A auto perceção do estado de saúde e da qualidade de vida na amostra em estudo podem estar sobrestimados em relação ao que se passará à média dos doentes celíacos portugueses. As características de idade e escolaridade levam a levantar a hipótese de que se está perante uma amostra de doentes celíacos muito pró-ativos na procura de soluções que minimizem as limitações impostas pela doença, nomeadamente pela procura de informação e de novos produtos alimentares, bem como soluções para a sua preparação. Estas competências permitir-lhes-ão conviver melhor com a doença, fazendo com que afete menos a sua qualidade de vida.
O facto de a grande maioria dos participantes terem referido que, após o diagnóstico, a relação social com os familiares, amigos, colegas de trabalho não tinha sofrido alterações; que a alimentação se tinha tornado mais saudável e ainda que se sentiam satisfeitos por terem sido diagnosticados, mesmo atendendo a todas as mudanças que tiveram que efetuar, são razões que podem ajudar a explicar os resultados obtidos. É razoável supor-se que o mal-estar associado aos sintomas prévios ao diagnóstico, que podem demorar anos, e a ansiedade associada ao desconhecimento do mesmo fazem com que, após o diagnóstico, os doentes consigam controlar melhor a doença e manifestarem melhor qualidade de vida.
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Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais. Os autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dados. Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escrito. Os autores declaram que não aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interesses
Os autores declaram não haver conflito de interesses.
*Autor para correspondência
Correio eletrónico: apimenta@porto.ucp.pt (A. Pimenta-Martins).
Recebido a 2 de agosto de 2013; aceite a 14 de setembro de 2013