Políticas de habitação: Propostas de análise e interpretação
O percurso das políticas de habitação social em Portugal tem sido estudado ao longo das últimas décadas, com abordagens diferenciadas que procuram compreender a evolução das políticas de habitação nos domínios da Sociologia, Arquitectura, Urbanismo, Geografia, Ciência Política, entre outros. Este trabalho segue, assim, uma linha interpretativa que encontra paralelo em outros trabalhos, embora com abordagens científicas, metodológicas e períodos diferenciados.
É disto exemplo o trabalho de Baptista (1999), que se focou nas políticas de habitação social promulgadas durante o Estado Novo e, em particular, sobre a política de casas económicas. Outros autores, como Gros (1994) também analisaram a história do alojamento social no período da ditadura, ou Silva (1994a, 1994b, 1994c, 1997), que relacionou as políticas de habitação, urbanas e fundiárias para o mesmo período.
No mesmo sentido, também Serra (2002) analisou a questão das políticas de habitação, interligando as estratégias habitacionais aplicadas na segunda metade do século XX. Também o IHRU, num trabalho coordenado por Portas (2013), analisou algumas das principais políticas de habitação social - assim como o problema da habitação - na transição entre a ditadura e a democracia. Por sua vez, Ferreira (1987; 1993) focou-se no estudo sequencial das políticas de habitação promulgadas nas primeiras duas décadas após a revolução, assim como naquilo que ainda faltava fazer no início da década de 1990. Numa análise mais relacionada com a arquitectura, também Coelho (2006, 2009) examinou o objecto construído nas políticas de habitação social na transição entre os séculos XX e XXI. Mais recentemente, Guerra (2011) reflectiu sobre os novos caminhos para as políticas de habitação e Acciaiuoli (2015) observou a história da habitação em Lisboa entre o início do século XIX e o final do século XX, numa abordagem relacionada com o mercado de habitação privado e de arrendamento.
Em 2018, surgiram dois trabalhos que analisaram as políticas de habitação social promulgadas em Portugal. Em Novembro, Antunes (2018) publicou um trabalho que analisa de forma sistematizada as políticas de habitação promulgadas em território nacional nos últimos duzentos anos, no seu tríplice de habitação social, arrendamento e reabilitação. No mês seguinte, num projecto institucional promovido pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) e coordenado por Agarez (2018), foi publicado um estudo que engloba análises às políticas habitacionais promulgadas nos últimos cem anos e respectivos resultados práticos, recorrendo, como no caso anterior, a informação estatística, acervos, arquivos, entre outros elementos que permitem a interpretação das políticas de habitação e respectivos resultados.
Este pequeno sintagma de contributos que analisam no todo ou em parte a sequência de políticas de habitação social em Portugal não esgota, como é óbvio, as várias centenas de estudos científicos que têm analisado os objectivos e os resultados de políticas de habitação particulares, de determinados bairros construídos e das vivências sociais e urbanas daí resultantes.
No que respeita à experiência internacional, são conhecidos os trabalhos que têm promovido o debate sobre a experiência e a evolução do quadro legal das políticas de habitação, destacando-se, por exemplo, vários estudos publicados sobre esta matéria no Reino Unido (Malpass & Murie, 1999; Hughes & Lowe, 2000; Lowe, 2011; Lund, 2016), ou de trabalhos comparativos entre diferentes países europeus (Dias, 1994; Balchin, 1996; Allen, Barlow, Leal, Maloutas & Padovani, 2004; McCrone & Stephens, 2017; Bargelli & Heitkamp, 2018).
Âmbito e metodologia
O presente artigo tem como objectivo analisar a evolução do quadro legal das políticas de habitação social desde o 25 de Abril de 1974, numa análise de natureza voluntariamente teórica, qualitativa e ensaística. Para tal, o trabalho assenta na leitura crítica dos vários diplomas legislativos promulgados nos últimos 45 anos de democracia, mas, também, na análise dos seus resultados num domínio de análise eminentemente cronológico e sócio-urbano. Além da fundamental interpretação dos diplomas1, realizou-se, paralelamente, a necessária pesquisa bibliográfica de estudos que analisam do ponto de vista teórico e prático as políticas habitacionais abordadas ao longo do trabalho, tendo-se utilizado, ainda, dados estatísticos disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU).
Sobre o estudo das políticas de habitação, chama-se a atenção sobre as armadilhas conceptuais e metodológicas que a análise encerra. Como afirma Baptista (2001), colocam-se vários desafios à análise das políticas de habitação, pois, em grande medida, o seu estudo está dependente dos dados produzidos por organismos institucionais, que podem ser levados a realizar interpretações propagandísticas para legitimar as opções tomadas. Esta situação é especialmente evidente, por exemplo, nos preâmbulos da legislação produzida, que faz uso frequente de fundamentação e justificação político-ideológica para a criação de novos programas ou a revogação dos já existentes. A análise crítica, a multidisciplinariedade de conhecimentos e o cruzamento e a validação múltipla das informações devem, assim, alicerçar qualquer trabalho que pretenda analisar o quadro-legal das políticas de habitação.
Do ponto de vista conceptual, entende-se neste trabalho o conceito de habitação social num sentido alargado de interesse social, incluindo todos os imóveis com vocação habitacional, que para a sua construção beneficiam (ou beneficiaram) de apoios directos ou indirectos da administração pública, independentemente da variedade de modelos de produção, de financiamento, de gestão, de público-alvo e de regimes de ocupação.
O artigo está estruturado da seguinte forma: a) fundamentação do quatro teórico do trabalho e de estudos que analisam a evolução das políticas de habitação a nível nacional e internacional; b) análise do período revolucionário; c) apreciação das disposições constitucionais; d) interpretação do desenvolvimento das políticas de habitação social, debatendo-se a promoção indirecta e a promoção directa; e) reflexões finais em torno do percurso das políticas de habitação social em Portugal.
As políticas de habitação desde abril de 1974
A revolução e o problema da habitação
No período imediato à revolução o problema da habitação incluiu-se nas principais reivindicações da população portuguesa, sobretudo nas duas maiores cidades do país, Porto e Lisboa. No turbilhão de acontecimentos que se sucederam nos meses seguintes ao 25 de Abril, ocorreram dezenas de acções populares, mobilizações sociais e manifestações que reivindicavam melhores condições de vida e que pretendiam trazer o problema da habitação para a ordem do dia (Cerezales, 2003; Bandeirinha, 2007; Pinto, 2008; 2013; Acciaiuoli, 2015).
O exemplo mais expressivo destas acções ficou plasmado na ocupação de casas devolutas, o que se traduziu num dos fenómenos urbanos mais singulares do pós-25 de Abril. Para além destas acções espontâneas de índole anarco-populista (Santos, 2017), o período revolucionário ficou ainda marcado pela organização comunitária. Afirma Pinto (2008, 2013) que entre Abril de 1974 e Julho de 1976 foram criadas 166 organizações comunitárias só na cidade de Lisboa, entre comités de ocupantes, comissões de moradores, de inquilinos, entre outros.
Foi neste ambiente de participação activa das comunidades locais que se criaram as condições ideais para a implementação de políticas de habitação que instigassem a participação directa da população. Tal viria a materializar-se no Verão de 1974, com a criação do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL).2 O SAAL pretendia contribuir para a diminuição do número de bairros de habitações precárias, tendo rompido com diversos paradigmas das intervenções do Estado Novo. A metodologia SAAL rejeitava os processos tipicamente top-down e privilegiava uma abordagem bottom-up, que pretendia fomentar a governação de proximidade e a participação da população. Para tal, eram constituídas brigadas ambulatórias que funcionavam na órbita do Fundo de Fomento da Habitação (FFH), sendo compostas por equipas multidisciplinares (Bandeirinha, 2007). As brigadas entravam em diálogo directo com as comissões de moradores, debatendo-se em sessões de esclarecimento as tipologias habitacionais a serem construídas no novo bairro, de forma a que estivessem de acordo com as expectativas da população que, em muitas situações, era convidada a participar na construção das casas e do bairro, num modelo de autoconstrução.
A metodologia aplicada no SAAL pode ser catalogada com a democracia directa e participativa, que perdeu força à medida que a democracia representativa se consolidou no nosso país, ao que se juntava um clima político-partidário que olhava com desconfiança para o SAAL (Bandeirinha, 2007; Cerezales, 2003; Pinto, 2013; Ferreira, 1987). Foi neste contexto que, em 1976, o SAAL sofreu diversas alterações com o objectivo prático de revogar o Serviço.3 Em resposta, o Conselho Nacional do SAAL (CNS) apressou-se a elaborar um “livro branco”, que indicava que até Outubro de 1976 foram registados 246 pedidos de intervenção em todo o país, tendo sido iniciadas 170 operações com um potencial de abranger 41 665 famílias. Contudo, os números das concretizações eram mais modestos, indicando-se até à mesma data a construção de 2259 fogos e estando prevista a edificação a curto prazo de mais 6000 habitações (CNS, 1976).
A Constituição da República Portuguesa
Numa clara assunção progressista, a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra o direito à habitação, no Art. 65.o, referindo-se no primeiro ponto deste artigo: “1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”
Não obstante pequenas alterações nas décadas seguintes, o Art. 65.o manteve o seu sentido programático para incentivar a administração pública a assegurar o direito à habitação, mas não de forma necessariamente vinculativa, como ocorre noutros direitos constitucionais. No âmbito da revisão constitucional de 2001, o Art. 65.o foi alterado para “Habitação e Urbanismo” e o seu conteúdo reflecte actualmente uma redacção que incorpora questões como a habitação, o urbanismo e o ordenamento do território. Actualmente, a questão do acesso à habitação está também incluída no Art. 72.o (“Terceira Idade”)4, e no Art. 70.o (“Juventude”)5.
O Art. 65.o foi, logo em 1976, vanguardista ao consagrar o direito à habitação, o que está longe de ocorrer em todas as constituições europeias (Farha, 2017), mesmo nos países que mais investiram no Estado Social na segunda metade do século XX. Paralelamente, o progressismo do Art. 65.o pode também ser aferido ao assumir preocupações com a rede de transportes e de equipamentos sociais, assim como a necessidade de apoiar especificamente as “iniciativas das comunidades locais” (i. e. associações e comissões de moradores), a “autoconstrução”, as “cooperativas de habitação” e, também, “políticas tendentes a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar”.
A promoção indirecta: Cooperativas e iniciativa privada
As cooperativas de habitação
Em Portugal a acção das cooperativas de habitação era possível desde Oitocentos, ao abrigo da Lei Basilar do Cooperativismo de 1867. Contudo, a actividade destas entidades foi sempre incipiente, ainda no século XIX, devido à inexperiência com o modelo cooperativo, e, mais tarde, durante a ditadura, as cooperativas de habitação estavam dependentes da capacidade de autofinanciamento, funcionando essencialmente como Caixas de Crédito Imobiliário, ao que acrescia a desconfiança política do movimento cooperativo (Ferreira, 1987; Matos, 1994; CET, 1994; Pedrosa, 2018; Antunes, 2018).
Foi após a revolução que foram criadas as condições para fomentar a acção das cooperativas de habitação (FFH, 1979). Em Dezembro de 1974, foi publicado o Regime Jurídico da Cooperação Habitacional6, que regulava a constituição das cooperativas de habitação, e um outro diploma que especificava os apoios para as denominadas Cooperativas de Habitação Económica (CHE)7, ou seja, as cooperativas que tivessem por objectivo construir ou adquirir habitações de interesse social.
Não obstante os dois diplomas publicados em Dezembro de 1974 - cujo objectivo foi fomentar a actividade das cooperativas de habitação e de modernização jurídica conforme a realidade internacional -, a acção destas entidades manteve-se incipiente, em grande medida devido à indefinição dos apoios financeiros (Ferreira, 1987). Embora existisse legislação que regulasse o funcionamento das CHE, o esquema de apoio financeiro apenas foi definido em 1977, num sistema análogo ao regime de crédito geral, o que desagradou às cooperativas e impediu que a actividade se desenvolvesse (FFH, 1979).8 Esta situação apenas foi ultrapassada no ano seguinte, depois de ter sido promulgado um novo diploma que instituiu um esquema de financiamento mais vantajoso para as CHE.9 No preâmbulo deste novo diploma, o legislador fazia questão de sublinhar a importância das cooperativas de habitação e explicava em que medida estas podiam substituir a função do Estado, sobretudo no que dizia respeito ao acesso a casa própria por parte de famílias da classe média. Embora o esquema de apoio financeiro tenha sido definido de forma satisfatória em 1978, este período coincidiu com a primeira intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), o que afectou as verbas públicas que podiam ser alocadas. Desta forma, a actividade das cooperativas de habitação manteve-se com sérias dificuldades.
Na década de 1980 surgiram mais alterações legislativas importantes, como o Código Cooperativo10, que pretendia reformar e regular a acção de todo o movimento cooperativo. O Código Cooperativo integrava as cooperativas de habitação no ramo das “cooperativas de construção e habitação”, que estava dependente de legislação própria a publicar. No preâmbulo do Código Cooperativo era indicado que existiam, em 1974, cerca de 40 cooperativas de habitação activas (4,2% do universo cooperativista), número que subiu para 258 em 1979 (7,2% do universo cooperativista).
Em 1982 surge a legislação própria das “cooperativas de construção e habitação”11 - conforme era exigido no Código Cooperativo de 1980 -, revogando os dois diplomas publicados em 1974. Nos anos seguintes ocorreram diversas alterações legislativas, sobretudo nos modelos de financiamento, adaptações às alterações institucionais, direccionamento dos financiamentos para a aquisição de casa própria e condicionamento dos financiamentos ao cumprimento das limitações estabelecidas para a “habitação social”12 e, posteriormente, “habitação a custos controlados”13.
No que respeita à experiência das cooperativas, salienta-se que entre 1974 e 1979 existiu uma explosão significativa na formação de cooperativas de habitação (Coelho, 2013; Pedrosa, 2018). Apesar do forte crescimento, o número de fogos construídos manteve-se reduzido até 1980, devido à tardia consolidação dos apoios financeiros e ao pedido de ajuda externa. De acordo com dados do INE14, entre 1974 e 1980 foram construídos 1512 fogos, numa média de 252 fogos anuais, o que representava, para o mesmo período analisado, cerca de 5% dos fogos construídos em território nacional. Nos anos seguintes, as alterações legislativas que estabilizaram os apoios permitiram que, entre 1985 e 1995, se consolidasse o momento mais produtivo da história das cooperativas de habitação no nosso país. Entre 1980 e 1990 foram construídos 18 856 fogos, numa média anual de 1886 habitações. Nos primeiros anos da década de 1990, o número anual de fogos construídos era superior a 3000 fogos por ano, tendo ultrapassado, em 1993, os 4000 fogos anuais, o que representava cerca de 6% dos fogos construídos.
Estudos concretizados no início da década de 1990 pela Federação Nacional de Cooperativas de Habitação Económica (FENACHE) apontam para a existência de 395 cooperativas de habitação (das quais 200 deviam estar activas), constituídas por 60 000 cooperadores (FENACHE, 1991, 1992). Os levantamentos e estudos concretizados pelo Centro de Estudos do Cooperativismo Habitacional, da FENACHE, indicam que, entre 1974 e 1990, foram construídos cerca de 30 000 fogos por cooperativas de habitação, número que ultrapassa em cerca de 10000 fogos os dados do INE para o mesmo período (FENACHE, 1991).
Depois da explosão da construção de fogos por cooperativas de habitação entre 1985 e 1995, a actividade voltou a diminuir, até regressar a valores residuais no século XXI. Do ponto de vista espacial, as cooperativas de habitação construíram habitações em todos os distritos, com especial incidência nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto (Pedrosa, 2018). Importa salientar que mesmo no período de maior actividade as cooperativas de habitação se debateram com vários obstáculos, destacando-se o problema fundiário, situação que era resolvida, em parte, pela disponibilização de solos municipais em direito de superfície. Neste propósito, a articulação com os municípios foi essencial para alavancar a actividade das cooperativas de habitação, que, de outra forma, teriam dificuldades para adquirir os terrenos necessários para a construção de empreendimentos habitacionais de interesse social (Matos, 1994).
Ainda na década de 1980, estudos que analisaram a actividade das cooperativas de habitação denunciavam que estas entidades estavam a focalizar a construção para a classe média (FFH, 1980; LNEC, 1989). Tal como aponta Matos (1994), no decorrer da década de 1980 a classe social que recorria às cooperativas de habitação foi alterada, desvirtuando-se o ideal cooperativista e transformando-se estas entidades em “cooperativas-empresas”.
A iniciativa privada apoiada pelo Estado
Em Novembro de 1974 foi criado o programa Contratos de Desenvolvimento para Habitação (CDH).15 Esta medida era, na verdade, uma reforma da política de casas de renda limitada, que existia desde 194716 e que tinha sido alvo de várias alterações em 197317 (Antunes, 2018). A política CDH tinha como objectivo despertar a indústria da construção para a promoção de casas de interesse social (Ferreira, 1987). Para tal, foram estipulados vários benefícios, como apoio técnico do FFH, financiamento em condições favoráveis, isenções fiscais, garantia de compra das habitações pela administração pública, acesso a terrenos em condições vantajosas, entre outros. A política CDH pretendia aumentar a oferta de habitações para a classe média urbana, num esquema que reduzia os custos de construção e assegurava, à partida, o lucro das empresas privadas e a diminuição de risco empresarial. Este conjunto de benefícios não foi suficientemente aliciante para as construtoras, sendo que, de acordo com dados do INE, o número de habitações construídas foi residual.
Para alterar esta conjuntura, sucederam-se inúmeras alterações legislativas ao programa CDH. Entre 1976 e 1985, contam-se cinco grandes alterações, que alteraram substancialmente a filosofia inicial do programa, e que no sentido geral tinham como objectivo descentralizar a medida e reduzir o risco empresarial (Ferreira, 1987; Antunes, 2018). Em 1985, o programa CDH foi alvo de uma ampla reforma18 que tinha como propósito relacionar o programa com as orientações referentes às Habitações a Custos Controlados (HCC). Estas alterações tiveram como objectivo reduzir a intervenção do Estado, desburocratizar e flexibilizar o processo administrativo e privilegiar a aquisição de casa própria. Depois de uma nova alteração em 1989, o programa consolidou-se em 1993, na sua última redacção.19 Embora em moldes jurídicos ligeiramente diferentes, também as cooperativas de habitação estão incluídas na promoção de HCC.
De acordo com o INE20, o número de habitações construídas pela iniciativa privada ao abrigo desta política foi sempre diminuta, contando-se, entre 1974 e 1992, a construção de 17 807 fogos em território nacional, a maioria nos distritos do Porto (14%), Setúbal (11%) e Lisboa (10%). No século XXI a construção diminuiu para valores residuais.
A promoção directa: Construção do parque habitacional público
Na transição entre as décadas de 1970 e 1980, os projectos mais significativos de promoção directa estavam relacionados com os Planos Integrados do FFH, que vinham ainda da ditadura e atravessavam dificuldades no seu desenvolvimento (Ferreira, 1987). No início da década de 1980, a promoção de habitação pública ficou ainda mais indefinida quando, em 1982, o FFH foi extinto, tendo sido substituído pelo efémero Fundo de Apoio ao Investimento para Habitação, substituído dois anos depois pelo Instituto Nacional de Habitação (INH), ao qual se juntou, em 1987, o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE). Além destas alterações institucionais, foi ainda neste período que o legislador definiu o conceito de “habitação social”21 e estabeleceu os parâmetros mínimos e máximos para a construção deste tipo de habitações pela iniciativa pública, privada e cooperativa. Anos mais tarde, o legislador substituiu conceito de “habitação social” por “habitações a custos controlados”22, o que se manteve, posteriormente, em 199723.
No meio destas alterações legais e institucionais, foram promulgados programas que definiam condições especiais de acesso ao crédito para os municípios, com o objectivo de estimular a promoção directa de habitações e a conservação do parque público existente, tal como ocorreu em 198324 e 198525. Contudo, os reduzidos apoios financeiros e a instabilidade institucional - que apenas foi estabilizada com a criação do INH e do IGAPHE -, fizeram com que os programas referidos não tivessem a aceitação e a colaboração necessária por parte do poder local (Antunes, 2018).
A primeira grande alteração a este cenário ocorreu pela promulgação do Decreto-Lei n.o 226/87, de 6 de Junho, que estabeleceu de forma concreta o regime de cooperação entre a administração central e local para a celebração de protocolos para a construção de habitação social para arrendamento. Desta forma, foram esclarecidas as responsabilidades e as competências dos poderes central e local e, simultaneamente, foi definido um modelo de apoio para todo o território nacional, em que os municípios interessados poderiam candidatar-se e, posteriormente, aceder a financiamento a fundo perdido, do IGAPHE, e empréstimos favoráveis, do INH.
Ao abrigo destes diplomas foram contratualizados alguns programas de realojamento, como foi o caso do município de Lisboa, que, em 1987, estabeleceu o Programa de Intervenção a Médio Prazo, que previa a construção de 9698 fogos para realojamento de famílias residentes em bairros de habitações precárias existentes na capital (DCH, 1990).
No início da década de 1990, percebeu-se que apenas uma política alargada de promoção pública poderia resolver o problema dos bairros de habitações precárias existentes nas duas áreas metropolitanas. Note-se que, conforme a Tabela 1, existiam em 1981 cerca de 46 000 alojamentos familiares não clássicos em Portugal.
Foi neste contexto que, em 1993, foi publicado o Programa Especial de Realojamento (PER), que previa a concessão de apoio financeiro aos municípios para a construção ou aquisição de habitações, destinadas ao realojamento de agregados familiares residentes em alojamentos precários nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto.26 Os mecanismos financeiros do PER eram, na realidade, relativamente semelhantes aos definidos pelo Decreto-Lei n.o 226/87, mas, em meados da década de 1990, juntavam-se a estes apoios financeiros e institucionais o desígnio nacional de “erradicação” dos chamados “bairros de barracas”.
Nos anos seguintes, com vista ao desenvolvimento do PER, foram celebrados contratos-programa entre municípios, o INH e o IGAPHE. O desenvolvimento do PER foi bastante díspar de concelho para concelho. Enquanto municípios como Mafra, Moita, Montijo, Sesimbra, Gondomar, Porto e Valongo cumpriram a construção da totalidade dos fogos protocolados, outros municípios não foram tão expeditos e diligentes, como foi o caso da Amadora (45%), Barreiro (41%), Odivelas (42%), Palmela (44%) e Seixal (45%). No total, foram protocolados 48 416 fogos e construídos 34 759 (Figura 1). Apesar de o PER se consubstanciar como um programa abrangente para as duas áreas metropolitanas, o município de Lisboa dominou com 11 129 fogos protocolados, seguindo-se os concelhos da Amadora (5419) e de Matosinhos (3982).
Embora não seja uma discussão que se pretenda densificar no presente trabalho, os bairros construídos no âmbito do PER foram alvo de grande debate técnico, político e académico ainda no seu início (Guerra, 1994, 1999; Freitas, 1994, 1998; Pinto, 1994), assim como mais recentemente (Cachado, 2013; Serpa et al., 2018), com vários alertas para a excessiva concentração e homogeneidade social dos bairros construídos, assim como para a escassez de espaços públicos de qualidade, de equipamentos colectivos, de rede de transporte adequada, apoio social à população, entre muitos outros.
Em 2004, surgiu o PROHABITA27 que, à semelhança do antigo Decreto-Lei n.o 226/87 (revogado pelo PROHABITA), era concretizado mediante a celebração de protocolos entre os municípios e o INH. Desta forma, ao contrário do que ocorreu com o PER, o PROHABITA regulava a concessão de financiamento para a resolução de situações de carência habitacional para todo o território nacional. Este programa foi ainda importante para modificar a forma como as operações de realojamento eram traçadas, ao privilegiar-se acções de reabilitação de edifícios em detrimento da construção nova e também ao melhorar a eficiência energética do edificado social (Antunes, 2018; Xerez, Rodrigues & Cardoso, 2018).
Pese embora a existência dos programas de promoção directa referidos, em 2011, segundo o INE, subsistiam em território nacional 6612 alojamentos familiares não clássicos, ou seja, construções precárias, abarracadas ou amovíveis (Tabela 1). Mais recentemente, no âmbito da Nova Geração de Políticas de Habitação, foram publicados o 1.º Direito28 e o Porta de Entrada29, que substituíram o PROHABITA e funcionam como os novos mecanismos legais para a resolução dos problemas mais graves de habitação, esperando-se, nos próximos anos, os desenvolvimentos destes programas. Note-se, também, que no âmbito da preparação destas medidas, o IHRU elaborou o Levantamento nacional das necessidades de realojamento habitacional, apresentado em Fevereiro de 2018. No contexto deste levantamento, 120 concelhos não reportaram qualquer carência habitacional e 187 identificaram 25 762 famílias a residir em “situações claramente insatisfatórias”. Deste total, 19 050 famílias residem nas AML e AMP, com clara predominância da AML, na qual foram identificados 13 828 agregados familiares, ou seja, mais de 50% do total (IHRU, 2015).
A habitação social desde 1974: Que percurso?
Depois da revolução, o SAAL foi a primeira política de habitação social. O SAAL é ainda hoje apontado como uma das medidas habitacionais mais vanguardistas promulgadas no nosso país (Antunes, 2018), afirmando Vieira (1986) que o SAAL instigou o único instante de interesse internacional pela Arquitectura Portuguesa, e Bandeirinha (2007) que os bairros construídos ao abrigo do SAAL representam a arquitectura do 25 de Abril. Apesar dos elogios metodológicos e conceptuais que foram admitidos nas décadas seguintes, o SAAL teve uma evolução conturbada e acabou por ser paralisado ainda em 1976, o que afectou a construção e a finalização de vários projectos alinhavados.
Por sua vez, a CRP foi fundamental ao consagrar o direito à habitação, no espírito dos direitos defendidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Contudo, o texto constitucional excessivamente programático não contribuiu para clarificar como e quando o Estado português deve actuar (Antunes, 2018). Esse papel estratégico e programático está, na verdade, reservado para as Leis de Bases, como as que foram criadas para outros direitos económicos, sociais e culturais consagrados na CRP, sem que, no entanto, o mesmo ocorresse para o direito à habitação.
No que se refere à promoção indirecta nos últimos 45 anos, destinada a cooperativas de habitação, iniciativa privada e entidades assistencialistas, vale a pena sublinhar que a construção de habitações com apoio da administração pública foi sempre um nicho de mercado, não obstante as várias alterações legislativas que tinham como objectivo tornar os programas mais atractivos. Importa também notar que as cooperativas demonstraram maior interesse e aptidão para a construção de habitações de interesse social (LNEC, 1989), embora o período mais profícuo tenha ficado reduzido a um espaço de tempo limitado, entre 1985 e 2000, o que coincidiu com o momento em que o mercado privado construiu mais habitações na história do nosso país (Mateus, 2015).
Acresce, ainda, que as habitações construídas ao abrigo de programas de promoção indirecta destinaram fundamentalmente à classe média solvente, com capacidade para aceder ao crédito à habitação. Significa isto que as famílias destinatárias destes programas não foram necessariamente as mais carenciadas, mas, sim, a classe média em ascensão e com capacidade para aceder a crédito bancário para a aquisição de casa própria. Este fenómeno fez com que poucas cooperativas de habitação ou empresas privadas tenham permanecido proprietárias das habitações construídas com apoios públicos. Pelo contrário, a quase totalidade desse parque habitacional foi vendido após a construção, pelo que hoje a habitação social portuguesa é esmagadoramente de domínio público.
No que respeita à promoção directa, o PER tornou-se o programa mais importante e marcante da história da habitação portuguesa. No contexto da entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, o desenvolvimento do PER possibilitou a construção de dezenas de milhares de habitações por todo o país, aumentando de forma significativa o parque habitacional municipal. A década de 1990 foi não só o momento mais importante para a construção de habitação pública, como o único da história da habitação portuguesa em que existiu um claro desígnio nacional de erradicar situações chocantes de indignidade humana.
Actualmente, o parque de habitação pública corresponde a 118 000 fogos (2% no parque habitacional nacional), propriedade de municípios, regiões autónomas e administração central, que proporcionam uma habitação a cerca de 113 000 agregados familiares, englobando aproximadamente 270 000 indivíduos (2,5% da população portuguesa).
Como vimos anteriormente, no nosso país a habitação social é quase na totalidade propriedade pública, sendo reduzidas as entidades privadas, cooperativas ou assistencialistas que não alienaram em definitivo as habitações construídas com apoios. Paralelamente, o parque de habitação social que subsiste foi construído no contexto específico de programas de realojamento, pelo que existe uma oferta muito residual de habitação pública, cooperativa ou privada destinada a promover o acesso à habitação a famílias da classe média com dificuldades para garantir uma habitação no mercado livre.
De acordo com um estudo apresentado em 201530 sobre as dotações do Orçamento do Estado executadas no período 1987-2011, foi reconhecido que dos 9,6 mil milhões de euros investidos em políticas de habitação, 73,3% foram destinados para apoios à pessoa, nomeadamente para bonificações de juros no crédito à habitação, sendo que apenas 16,1% foram aplicados em programas de promoção directa e 0,1% em programas de promoção indirecta.31 Tendo sido este o momento mais importante de construção habitacional no nosso país, pode-se concluir que nos últimos 45 anos a “estratégia” habitacional consubstanciou-se na bonificação de juros no crédito à habitação, que aglutinou o esforço financeiro e colocou em segundo plano as restantes opções, como a promoção indirecta ou a promoção directa de habitação social.
Conforme analisado, o desenvolvimento das políticas de habitação social em Portugal foi casuístico, sem continuidade, sistematização temporal nem estratégia a médio e a longo prazo. Actualmente, subsistem graves problemas de acesso a habitação condigna. Tal é comprovado nos dados do INE, de 2011, que indicam a existência de 6612 alojamentos familiares não clássicos, ou no levantamento promovido pelo IHRU, em 2018, que identificou 25762 famílias a residir em situações insatisfatórias em território nacional. Note-se que algumas destas ocorrências se traduzem, ainda, na subsistência de bairros de habitações precárias, com alojamentos construídos com materiais módicos, sem electricidade, água canalizada, saneamento básico ou iluminação pública. Fazendo a democracia portuguesa 45 anos em 2019, restará saber se, quando fizer meio século, ainda tolerará a existência de situações habitacionais que violam os direitos humanos mais elementares.