Aquilo que nos habituámos a denominar de arte urbana é, hoje, parte integrante da paisagem visual da cidade contemporânea. Esta é uma manifestação artística que deriva de diferentes práticas sociais e linguagens plásticas, resultando numa fusão inspirada quer em expressões minoritárias, populares e transgressoras, quer em manifestações estéticas mais consentâneas com o cânone artístico. A diversidade de técnicas, formatos e práticas artísticas neste campo é evidente, facto que é marcado pela biografia dos artistas, mas também pelos contextos sociais, culturais e urbanos onde estes atuam (Campos e Sequeira, 2018). A arte urbana é, por isso, uma categoria não apenas recente, mas também envolta em ambivalências várias e sujeita a múltiplos debates. São diversas as tensões e polaridades que atravessam a arte urbana contemporânea: entre a rua e a galeria, entre o formal e o informal, entre o espontâneo e o comissionado, entre o profissional e o amador (Bengtsen, 2014; Campos & Sequeira, 2018; Campos & Sequeira, 2019; Sequeira, 2016; Schacter, 2014).
A nosso ver, a questão da arte urbana endereça, desde logo, para dois domínios de discussão que se cruzam.
Em primeiro lugar, o domínio da cidade e dos estudos urbanos, levantando um conjunto de questões de natureza mais micro-sociológica, relativamente a práticas sociais que se desenrolam no espaço público urbano, mas também de índole mais macro, sobre as dimensões mais estruturais da produção do espaço público urbano, no que respeita à construção da sua paisagem, à gestão e regulação do espaço, etc. Assim, têm vindo a surgir um conjunto de novas linhas de investigação neste campo da arte urbana que remetem para as questões da turistificação, patrimonialização, gentrificação ou festivalização (Campos & Sequeira, 2019; Evans, 2016; Guinard & Margier, 2017; Pavoni, no prelo), que dialogam claramente com os modos de produzir a cidade contemporânea. Os poderes locais têm vindo a assumir-se como protagonistas fundamentais na solidificação deste movimento artístico, criando oportunidades e um contexto físico para o seu florescimento, mas também promovendo uma retórica que favorece a sua valorização, integrada em estratégias mais latas de promoção da arte e da cultura como mais-valias da cidade contemporânea. Não é, por isso, de estranhar que certas estratégias contemporâneas de city-branding recorram à arte urbana, enquadradas numa retórica algo banalizada que remete para a ideia da “cidade criativa” (McAuliffe, 2012; Schacter, 2014; Mould, 2015).
Em segundo lugar, a emergência da arte urbana pode ser debatida a partir de um conjunto de questões que se têm revelado centrais no quadro da sociologia da arte. Deste ponto de vista, o movimento da arte urbana pode ser estudado no quadro de processos artificação e institucionalização de um conjunto de práticas e expressões estéticas de índole tradicionalmente informal (Campos, 2010, 2013; Bengtsen, 2014). A sua gradual legitimação e institucionalização tem aberto oportunidades de carreira e profissionalização (Kramer, 2010; Bengtsen, 2014; Campos & Sequeira, 2019), correspondendo à criação de um novo mundo da arte (Bengtsen, 2014). A este respeito é relevante debater o surgimento de um conjunto de actores sociais que ganham particular evidência na constituição deste novo mundo da arte (curadores, críticos, colecionadores, etc.)
A proposta deste dossiê surge na sequência do congresso realizado em 2017 na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais - Instituto Politécnico de Leiria, no âmbito da segunda edição do Arte Pública Leiria. O objetivo central do congresso foi o de debater a arte urbana na sua pluralidade, dando atenção não apenas aos diferentes contextos geográficos, sociais, culturais e económicos que a enformam, mas também à multiplicidade de manifestações estéticas e plásticas que se enquadram nesta categoria lata. Pretendemos transferir este objetivo para o dossiê temático que aqui se apresenta, resgatando um conjunto de trabalhos que se destacaram pela qualidade, pertinência e originalidade da temática, dando particular atenção aos critérios da pluridisciplinaridade e diversidade dos contextos empíricos, de modo a produzir um dossiê diversificado nas abordagens ao tema.
O dossiê inicia-se com um artigo da autoria de Ana Estevens, Agustín Cocola-Gant, Daniel Malet Calvo e Filipe Matos, intitulado “As artes e a cultura nas práticas hegemónicas e alternativas na cidade de Lisboa. O caso do Largo do Intendente”. Neste artigo os autores reflectem sobre o papel que as artes e a cultura têm assumido nas últimas décadas para a regeneração de determinados bairros e para a fabricação de uma certa imagem de cidade. A partir do caso concreto do Largo do Intendente, que nos últimos anos foi alvo de um investimento forte no sentido da sua reabilitação, os autores examinam as contradições e as tensões existentes entre a implementação de políticas públicas de regeneração urbana e a emergência de espaços alternativos culturais e artísticos. A partir deste caso discutem-se os fenómenos de turistificação ou gentrificação que surgem arrastados por uma aposta nas artes e na cultura como motores de dinamização económica e de promoção da cidade neoliberal.
José Luís Abalos Júnior é o responsável pelo artigo seguinte, que nos encaminha para direcções e contextos completamente distintos. O seu artigo denominado “Os gestos da arte urbana: por uma etnografia das gestualidades”, conduz-nos a uma análise mais microscópica, atenta não apenas à materialidade urbana, mas essencialmente ao corpo, à performance e ao gesto que se encontram na base de qualquer acção artística. Com base numa pesquisa de natureza etnográfica realizada em Porto Alegre (Brasil), o autor propõe uma “etnografia das gestualidades”, que permita, precisamente, desvelar esta dimensão tão esquecida pela pesquisa social. É o corpo presente na cidade, que se move, que sente e contacta com a materialidade urbana, com os edifícios, com os muros e com as barreiras do edificado. É o mesmo corpo que segura e movimenta as ferramentas artísticas (lata de spray, marcador, etc.), com vista à produção singular de um conjunto de símbolos (assinaturas, figuras, etc.). Não há autor sem gesto.
O texto seguinte desloca-se da materialidade e corporeidade do acto artístico, para se centrar numa dimensão incontornável do mundo actual: as tecnologias e circuitos digitais. Catarina Valente e Helena Elias propõe-nos a discussão deste tema no seu artigo “As smart-cities e a arte pública. O contributo da curadoria no universo digital”. Sabemos que as cidades não têm apenas existência material, mas co-existem numa realidade paralela, num meio chamado de “virtual”, por onde circula uma infinidade de imagens e sons. A cidade material duplica-se via ecrãs electrónicos e digitais. Como não poderia deixar de ser, isto tem impacto nas diferentes formas de arte existentes na cidade. A curadoria digital propõe, precisamente, estabelecer uma mediação entre estas duas realidades, procurando criar modelos coerentes e eficazes de divulgação destas expressões estéticas através dos circuitos digitais.
Sabemos que as cidades actualmente apostam, cada vez mais, numa lógica de promoção das artes e da cultura que surge sob o formato de Festival. Envolvendo as mais diversas áreas e formatos, a festivalização da cultura é algo que se vem acentuando nas últimas décadas e que se enquadra nos processos de promoção da imagem das cidades. Manuel Garcia-Ruiz, retrata precisamente esta tendência a partir de um caso concreto. No seu artigo denominado “Festivais de luz e eventos de luz em Portugal. Entre cultura e promoção turística do território.” o autor analisa os resultados exploratórios de uma pesquisa em curso em território nacional. Apesar da presença tímida que este tipo de festivais tem no nosso país, é destacada a relevância que estes detêm na dinamização da economia da noite e na promoção do turismo cultural em diferentes cidades.
No artigo seguinte, Vitor Barros e Chiara Pussetti, num tom mais ensaístico, discutem as transformações pelas quais passou a arte urbana nos últimos anos e como esta vai acompanhando uma reconfiguração das próprias cidades. Com o título “O Terceiro Lado do Muro. A Arte e as suas Cidades”, os autores destacam o processo de institucionalização e normalização da arte urbana que hoje se converteu numa mais-valia para a valorização da paisagem e promoção do território. O caso de Lisboa é, a este propósito paradigmático, pois o processo de maior reconhecimento e visibilidade da cidade no exterior é acompanhado por um conjunto de acções que procuraram promover a arte urbana enquanto instrumento de regeneração urbana e de transformação da paisagem. Tudo isto acontece num contexto sociopolítico, marcado pelo sucesso da retórica do empreendedorismo e da competitividade das indústrias culturais e criativas na cidade, que encontram de facto uma correspondência nos diversos projectos de arte urbana que existem na cidade e que servem como cenário ideal para a fabricação desta narrativa.
A encerrar o dossiê, temos o contributo de André Carmo, Filipe Matos e Sónia Pereira “Regeneração urbana através da cultura e das artes: o caso do Barreiro”, que retoma a linha de discussão que abriu este dossiê, desta feita tomando como estudo de caso uma cidade de características pós-industriais. A partir de entrevistas a diversos actores-chave, os autores propõem mapear a forma como as artes e a cultura são representadas na cidade do Barreiro, servindo para construir toda uma narrativa em torno da identidade da cidade. Estas parecem, de facto, ser dimensões de relevo, destacadas por diferentes actores do sector público e privado que se confrontam com uma reinvenção da identidade do território que tenha em linha de conta uma certa contemporaneidade artística e cultural, mas também uma memória histórica que serve como diferenciador simbólico relevante.
Fora do dossiê, o presente número da revista Fórum Sociológico inclui um artigo de Josemari Quevedo, António Carvalho, Paulo Fonseca e João Arriscado Nunes “Ciência, Tecnologias Emergentes e Sociedade: o caso dos debates sobre nanotecnologias em Portugal” em que se discute o envolvimento público com nanotecnologias em Portugal. A partir de dois estudos de caso os autores analisam como as nanotecnologias mobilizam diferentes públicos e promovem ecologias de participação distintas. Enquanto num dos casos, os cidadãos são parte importante na definição dos riscos éticos, sociais, ambientais e de saúde associados às nanotecnologias, no outro existe uma clara diferenciação entre cientistas e cidadãos sendo que, a estes últimos, é reservado um papel passivo e sem possibilidade de intervenção na dos referidos riscos.