Introdução
Os agentes do poder local têm utilizado a arte e a cultura como motores de regeneração urbana. Este não é um tópico novo e tem sido bastante explorado na literatura nacional e internacional. Apesar de este processo incutir uma nova dinâmica (económica, social e cultural) às cidades, tem, também, inerentes diversas consequências negativas que fomentam a promoção imobiliária e habitacional, que tem implícita a gentrificação e a expulsão das classes sociais menos favorecidas, o aumento do turismo, a mercantilização ou a securitização do espaço. Não obstante estas constatações, este é ainda um modelo usado e reproduzido em Lisboa.
Neste artigo pretendemos enfatizar as dicotomias e as tensões entre os diferentes usos políticos e sociais da arte. Por um lado, os coletivos artísticos alternativos instalam-se nas áreas onde têm acesso a rendas mais baixas e implementam nas suas práticas a crítica à cidade neoliberal. E, por outro, o poder local implementa políticas ancoradas na arte e na cultura com o objetivo de atrair turistas, novos usuários e a classe criativa. A criatividade artística e cultural passa a constituir um elemento essencial para as políticas urbanas, nomeadamente enquanto meio de potenciar competitividade entre cidades e crescimento económico (Florida, 2002). Apesar de ambicionarem confrontar e criticar os processos de instrumentalização da arte e da cultura, acreditamos que estas dinâmicas alternativas, paradoxalmente, contribuem ativamente para processos de regeneração urbana liderados pelo mercado, estimulando processos de gentrificação.
As políticas de regeneração urbana em Lisboa, e, particularmente, no caso apresentado neste artigo, encaixam perfeitamente nestas dinâmicas. A Mouraria tem passado por processos de regeneração top-down, nos quais as iniciativas culturais têm sido protagonistas. Simultaneamente, este bairro anteriormente percecionado como miserável e insalubre no imaginário urbano está a experienciar processos de profundas mudanças, atraindo investidores, visitantes e usuários de classe média. Curiosamente, as políticas públicas locais estimularam ativamente a atração de artistas e de “alternativos” como forma de criar uma nova imagem e novos usos nesta área “decadente”. As rendas baixas e o ambiente autêntico contribuíram para atrair grupos de artistas, estudantes e populações jovens com elevado capital cultural (potenciais marginal gentrifiers2). Neste contexto, este artigo discute as ligações entre i) estratégias neoliberais de regeneração urbana liderada pela arte e pela cultura; ii) artistas e comunidade local; e iii) gentrificação. Procuramos demonstrar que, num contexto de liberalização dos mercados, as iniciativas artísticas e culturais revalorizam os territórios, contribuindo diretamente para a valorização imobiliária, que é apropriada por investidores privados, acelerando processos de gentrificação.
Cultura e regeneração liderada pelo mercado e pela gentrificação
Na cidade contemporânea verifica-se uma progressiva dicotomia e tensão entre os usos sociais e políticos da arte e da cultura. Primeiro, e de acordo com os princípios associados à ideologia neoliberal, os agentes do poder local têm implementado políticas de regeneração urbana lideradas pela arte e pela cultura, com o objetivo de atrair novos residentes, usuários de classe média e turistas. Para este grupo com capital cultural elevado (Cameron & Coaffee, 2005), a escolha do bairro de residência, de consumo ou de saídas noturnas constitui uma componente-chave na sua construção identitária e de estilo de vida. Verificam-se estreitas ligações entre a escolha do lugar para habitar, as experiências subjetivas de capitalização socio espacial e a sua satisfação. A emergência de jovens profissionais que tendem a sentir-se atraídos pelas amenidades e estilos de vida culturais oferecidos pelos centros das cidades é um fenómeno identificado desde a década de 1980 (Harvey, 1989; Ley, 1996). Na lógica da liberalização dos mercados, a tendência tem sido de promoção da “cidade criativa” (Florida, 2002; Landry, 2000) enquanto narrativa hegemónica, apesar de o próprio Richard Florida reconhecer que a maioria dos lugares criativos tendem, também, a exibir formas de desigualdade socioeconómica e gentrificação (Peck, 2005). Assim, a criatividade artística e cultural tem-se tornado um elemento subjacente a múltiplas políticas urbanas, um instrumento de crescimento económico e de competitividade entre cidades e a panaceia para a decadência urbana que resultou do processo de desindustrialização e, mais recentemente, da crise económica e financeira de 2008 (Carmo, 2012; Cocola-Gant, 2009; Estevens, 2017). Em segundo lugar, os artistas e os movimentos sociais têm usado a arte e a cultura de formas distintas, particularmente, enquanto instrumento de resistência, mudança e transformação das relações sociais (Marcuse, 2007), implementando práticas que constituem uma crítica evidente à cidade neoliberal. Estes movimentos, espaços e práticas, através de um leque diversificado de formas de expressão, estão associados a fatores que contribuem para ativar a consciência política face à mudança urbana, divergindo das narrativas hegemónicas da cidade criativa (Florida, 2002) e criando novas urbanidades (André, 2017). Deste modo, enfatizamos duas tensões/contradições entre i) o uso da arte e da cultura enquanto receita para a resolução da decadência urbana e ii) o uso da arte e da cultura enquanto crítica. É relevante realçar que, no processo de procura de espaços vagos e de rendas comportáveis, é frequente os coletivos artísticos e culturais localizarem-se em áreas urbanas centrais decadentes (Zukin, 1982), que serão, posteriormente, alvo de programas neoliberais de regeneração liderados pela arte e pela cultura. Argumentamos, assim, que as práticas artísticas destes coletivos contribuem, inevitavelmente, para a regeneração urbana liderada pelo mercado e para processos de gentrificação, mesmo que as suas intenções sejam antagónicas a essas dinâmicas.
A literatura sobre gentrificação fornece diversas pistas sobre esta dicotomia. Rose (1984) utiliza o termo marginal gentrifier para se referir a jovens com reduzido capital económico mas com elevado capital social e cultural, que tendem a instalar-se em bairros decadentes nas fases iniciais do processo de gentrificação, atraídos pelos reduzidos valores das rendas, pela proximidade do local de trabalho, pelas suas redes sociais e por estilos de vida não convencionais. Ley (1996) e Zukin (1982) sublinham que artistas, estudantes e jovens com elevado capital cultural constituem a linha da frente da reconfiguração dos valores simbólicos de áreas urbanas decadentes (antes da chegada destes gentrifiers, muitos destes bairros são habitados por classes de baixos rendimentos e por imigrantes). Estes jovens cosmopolitas com habilitações superiores são atraídos pela “diversidade” e “multiculturalidade”, que, muitas vezes, é o primeiro elemento a ser capitalizado no processo de regeneração. Na verdade, as noções de “diversidade”, “autenticidade” e “tradicional” estão omnipresentes nos discursos de comercialização destas áreas urbanas, identificadas (primeiramente pelos marginal gentrifiers e, posteriormente, pelo poder local e pelos investidores imobiliários) como elementos de mudança positiva em relação à anterior má reputação.
Importa-nos enfatizar que a emergência de clusters artísticos e culturais alternativos em áreas urbanas degradadas funcionam como íman para turistas, estudantes e jovens, que contribuem decisivamente para a mudança da imagem dos lugares, influenciam os mercados imobiliários e estimulam a abertura de novos estabelecimentos de comércio e serviços que se adequam às suas preferências. Verifica-se frequentemente, nos processos de implementação de políticas públicas de regeneração urbana, que tanto os agentes do poder local como os agentes imobiliários estimulam intencionalmente a instalação de coletivos artísticos e culturais, oferecendo exemplos de artistic modes of production (Zukin, 1995). Com efeito, a fase de gentrificação marginal consiste num período de mix social, emancipação, criatividade e, inclusivamente, solidariedade comunitária (Caulfield, 1989). No entanto, esta constitui apenas a fase preliminar que precede a chegada de projetos públicos e de iniciativas privadas de reabilitação imobiliária, comércio e serviços. Nesta perspetiva, a instalação destes grupos “alternativos” constitui um passo inicial necessário para assegurar a “limpeza” da área, enquanto se prepara a sua transformação de “marginal” em “diversa”, de “problemática” em “vibrante” e de “caótica” em “excitante” nas brochuras promocionais e nos portais digitais “cool”. De certa forma, o capitalismo urbano requer este “renascimento cultural” para aumentar o valor dos imóveis que, expectavelmente, serão vendidos a classes sociais com maior poder económico. Deste modo, os estilos de vida e as práticas culturais alternativas trazidas por estes jovens serão, também eles, capturados e comercializados (Carmo et al., 2014). Esta apropriação acontece habitualmente quando, para assegurar o pagamento das rendas dos seus espaços, os coletivos artísticos e culturais promovem eventos públicos como festas, espetáculos performativos e jantares, que atraem jovens consumidores para essa área. O processo é tanto mais paradoxal e perverso quanto, numa segunda fase de gentrificação, se verifica que estes marginal gentrifiers são afastados pelo aumento das rendas e pela pressão dos proprietários imobiliários (Ley, 1996; Zukin, 1982), concluindo, assim, o ciclo de regeneração urbana.
Caso de estudo e metedologia
A Mouraria está localizada no centro da cidade de Lisboa, sendo um dos bairros mais antigos da cidade (Figura 1). Desde a sua edificação, a Mouraria tem sido constantemente uma área estigmatizada, associada à pobreza e à marginalidade.
O contexto sociogeográfico da Mouraria é complexo, imbuído de preconceitos, estigmatização e segregação sociais (Menezes, 2012), e sinónimo de marginalidade, insegurança e condições de vida insalubres. Alguns fatores ajudam-nos a compreender o enquadramento do bairro: condições de habitação precárias, sobrerrepresentação de população idosa e com baixas habilitações literárias e concentração de população imigrante. Segundo os dados dos Censos de 2011, 25% da população tinha apenas a educação primária. Estes Censos indicam, também, uma significativa diminuição da população residente (- 53% entre 1981 e 2011). Ou seja, nas últimas décadas verificou-se um processo de abandono do bairro, proporcionando um estágio de pré-gentrificação: residentes vulneráveis com baixos rendimentos, habitações degradadas e uma área estigmatizada.
O Largo do Intendente Pina Manique (Largo do Intendente) constitui um espaço emblemático do bairro. Nas últimas três décadas foi marcado pelo estigma: a prostituição, o tráfico e o consumo de drogas eram práticas comuns. No final dos anos 90, após a demolição do bairro do Casal Ventoso3, conhecido pelas práticas de tráfico de droga, observou-se a deslocação de muitas destas atividades para a Mouraria e para o Largo do Intendente, afetando o quotidiano dos seus habitantes e reforçando o estigma social já existente.
Apesar de o bairro já ser um território de imigração identificado desde os anos 80, a dinâmica migratória é, atualmente, mais notória: os Censos de 2011 estimavam que cerca de 16% dos habitantes eram estrangeiros. O bairro tem atraído imigrantes de várias nacionalidades, inicialmente provenientes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e da Índia e, posteriormente, do Paquistão, Bangladesh e China. Diversos trabalhos de investigação sobre imigração (Mapril, 2010; Malheiros, 2008; Malheiros et al., 2012) sublinham a importância do espírito “empreendedor” destes migrantes, enquanto característica construtora da identidade e da vivência modernas do bairro. Inicialmente, este ambiente de diversidade étnica e cultural contribuiu para aumentar a estigmatização social desta área mas, progressivamente, esta imagem mudou e o substrato da diversidade étnica e cultural foi capturado e apropriado pelas políticas de regeneração impulsadas pelas autoridades municipais.
Desde meados dos anos 2000, a revitalização do Largo do Intendente tornou-se uma prioridade política para a Câmara Municipal de Lisboa (CML). A estratégia da CML priorizou, por um lado, a atração de novas atividades culturais e artísticas para esta área e, por outro, a reabilitação e higienização do espaço público (Estevens, 2017). A implementação destas medidas iniciou-se em 2009, envolvendo a mudança do gabinete do Presidente da CML para o largo, uma ampla cobertura mediática concebida com o intuito de mudar a imagem do bairro e a atribuição de subsídios a coletivos culturais e artísticos. Desde então, a mercantilização da “diversidade” e do “cosmopolitismo” penetraram as narrativas dos projetos de regeneração urbana, bem como dos festivais culturais patrocinados pela CML. Um dos exemplos mais conhecidos foi a reconversão da Praça Martim Moniz de modo que representasse a “diversidade” dos habitantes locais : no chamado Mercado de Fusão promoveram-se stands permanentes de restauração alusivos à gastronomia de diversos locais e culturas internacionais, incluindo motivos decorativos multiculturais4. Também a partir de 2009, a CML começou a organizar o Festival Todos5, um evento cultural e musical que visa representar as expressões artísticas das diversas culturas presentes em Lisboa. As primeiras quatro edições do festival (2009-2012) decorreram na área do Intendente, Mouraria e Martim Moniz, e a partir daí este festival tem percorrido diversas áreas da cidade onde a autarquia pretende implementar políticas de regeneração. Para Nuno Oliveira (2013, p. 602) convém “ter presente que, contrariamente ao que um certo interculturalismo benigno quer fazer crer, este campo de interpretações não é politicamente inocente”.
Adicionalmente, em 2012, efetivou-se a liberalização do mercado privado de arrendamento, após a aprovação de um novo regime jurídico do arrendamento urbano6, que foi alvo de múltiplas críticas e protestos da parte de inquilinos, associações e movimentos pelo direito à habitação e à cidade. Esta reforma veio facilitar a rescisão e o aumento do valor dos contratos anteriores a 1990, protegidos até aí, promovendo indiretamente despejos e a proliferação do alojamento local num contexto de sucesso turístico da cidade. Complementarmente, o Estado implementou ainda políticas de habitação adicionais, como incentivos fiscais para fundos de investimento imobiliário, simplificação e aceleração dos processos de licenciamento, a atribuição de vistos Gold para investimentos superiores a meio milhão de euros e isenções para residentes não habituais. Criaram-se, assim, condições para estimular múltiplas iniciativas privadas de investimento na reabilitação imobiliária e para a instalação de novos usuários, de classe média-alta, acompanhados pela abertura de novos estabelecimentos comerciais que vieram cobrir as necessidades de consumo dos novos habitantes e modificaram radicalmente as paisagens e vivências de algumas áreas da cidade.
A escolha do Largo do Intendente para estudo de caso prende-se com a importância que este território adquiriu recentemente na cidade, fomentando as mesmas dinâmicas anteriormente estudadas noutras cidades europeias, por exemplo em Barcelona (Estevens, 2017; Cocola-Gant, 2009). Neste contexto, partimos de trabalhos de investigação anteriores (nomeadamente, da investigação conducente à realização de doutoramento (Estevens, 2014) e do projeto RUcaS7), em que se explorou as políticas públicas culturais associadas ao processo de regeneração nesta área, entre 2009 e 2014. Este background e uma reflexão sobre a realidade atual suscitaram interesse pelo papel das artes e da cultura no processo de gentrificação promovido pelas políticas públicas. A metodologia aplicada consiste em trabalho de campo e recolha de informação secundária realizada pelos autores em projetos de investigação anteriores, bem como em observações e registos etnográficos que permitiram complementar a informação anteriormente recolhida e responder aos objetivos referidos. Em complemento à análise crítica das políticas públicas e a um conjunto alargado de entrevistas em profundidade a decisores políticos, atores culturais e moradores, realizadas anteriormente, fizemos, entre 2015 e 2018, observações de campo regulares no Largo do Intendente e em diversos coletivos e associações culturais instalados na área. Em 2018, realizámos três entrevistas em profundidade, com guião, a representantes destes grupos e diversas entrevistas informais com usuários da área.
Estratégias de regeneração na Mouraria e no Largo do Intendente
O Programa de Ação do Quadro de Referência Estratégica Nacional8 (PA) para a Mouraria foi aprovado em 20099. O projeto era constituído por quatro elementos principais: 1) a transformação do espaço público e do ambiente urbano; 2) a reabilitação de um quarteirão de habitação degradado para dar lugar a um hub criativo, Centro de Inovação da Mouraria; 3) a valorização das artes e ofícios; e 4) a revalorização do ambiente sociocultural, com especial ênfase na atração de turismo. O PA enfatizava o papel da cultura e de novos espaços públicos como meios para estimular a revitalização da área. A título de exemplo, a reinvenção das memórias tradicionais do bairro, com especial enfoque no fado (Menezes, 2012), constituiu uma linha estratégica central com o objetivo de transformar a imagem deste lugar estigmatizado. Estas iniciativas locais devem ser vistas como parte de uma estratégia de city-branding mais alargada da cidade de Lisboa onde é dinamizada a “marca Lisboa”. Tal como o “modelo Barcelona”, esta marca tem objetivos que ultrapassam largamente os planos de cada bairro, no sentido da projeção internacional da cidade, focando-se na identidade, tradição, diversidade, vida cosmopolita, modernidade e celebração da cidade. Esta estratégia de marketing é consonante com o que Peck e Theodore (2012) referem como iniciativas com fortes ressonâncias simbólicas, orientadas para o mercado e baseadas na criatividade, sustentabilidade ou habitabilidade. Neste sentido, integra-se numa dinâmica global de criação de cidades competitivas e eficientes na atração de investimento, visando criar a imagem da “cidade ideal”, segura e higienizada, o que no quadro das intervenção do PA se integra perfeitamente.
No Largo do Intendente, as intervenções do PA decorreram em dois eixos principais : na transformação do espaço público e ambiente urbano (Eixo 1) e na revalorização do contexto sociocultural e turístico (Eixo 4). O início do PA10 foi celebrado com dois espetáculos de ópera (um no Largo do Intendente e outro no Largo da Achada) e um espetáculo de fado (no Largo da Severa). As medidas relativas ao Eixo 4 devem ser lidas tendo em conta outras iniciativas a decorrer em simultâneo, nomeadamente o programa Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária11 (BIP-ZIP). Os projetos subsidiados nesta área da cidade estavam sobretudo relacionados com as artes, a cultura e a criação de espaços “criativos”. Considerando conjuntamente as intervenções do PA e do BIP-ZIP12, a área envolvente do Largo do Intendente experienciou uma profunda regeneração do espaço público e a instalação de diversos artistas. Em simultâneo, a CML promoveu ainda diversos espetáculos no Largo, como o Bairro Intendente em Festa ou o mencionado Festival Todos, como forma de abrir o espaço às atividades de lazer e consumo. Como afirmou um dos entrevistados, “quando se desejava organizar um espetáculo na praça, o município apoiava imediatamente”.
Após estas transformações físicas e simbólicas, o bairro cresceu e tornou-se uma nova área festiva, alternativa e trendy de Lisboa. Desde então, seguiram-se, por um lado, uma vaga de investimento privado, nomeadamente dirigido à criação de bares, restaurantes e à reabilitação imobiliária, e, por outro, à instalação e criação de diversas organizações culturais e artísticas, muitas delas subsidiadas por fundos públicos, que também abriram bares e espaços de consumo para gerar receitas por forma a pagar o arrendamento dos espaços. A transformação da área também não é alheia à implementação de estratégias de securitização do espaço, com o objetivo de controlar o tráfico, o consumo de drogas e a prostituição (Tulumello, 2016).
De facto, a área foi revitalizada e o Largo do Intendente tornou-se um dos espaços mais badalados da cena alternativa lisboeta. Contudo, a estratégia implementada não significou a melhoria das condições de habitação e da qualidade de vida dos habitantes. Pelo contrário, a estratégia implementou medidas que contribuiu para uma “limpeza” social e para a substituição dos seus habitantes e usuários “problemáticos”, por novos grupos de classe média potenciando a atração de investimento privado. Nos últimos anos, a dinâmica de reabilitação do edificado, uma velha reivindicação dos atores locais, foi impulsionada pelo novo regime jurídico do arrendamento urbano e protagonizada por grupos privados de investimento imobiliário. Esta dinâmica tem motivado o despejo de vários residentes do bairro, tornando-se a habitação uma questão crescente e urgente para os habitantes (Cocola-Gant & Gago, 2019).
Em paralelo, diversos projetos artísticos e culturais emergiram no território, tornando-se componentes centrais para a atração de novos usuários, para a instalação de novos espaços comerciais e para a mudança da imagem do bairro. Curiosamente, o resultado aparenta ser fruto de um processo de regeneração urbana de índole cultural bottom-up, tratando-se, na realidade, de um processo top-down focado na revitalização de territórios empobrecidos através da atração de indivíduos com capitais económico e cultural mais elevados. Por outras palavras, se o objetivo inicial destes coletivos artísticos e culturais alternativos pressupunha uma lógica de inclusão das expressões de “diversidade” e “multiculturalidade” que caracterizavam a área, na realidade estes têm contribuído, mesmo que de forma não intencional, para a sua progressiva anulação e expulsão. A responsável por um dos espaços do Largo referiu que “sentimos que também poderíamos ser uma ferramenta que ajudasse ao processo de transição integrada. Ou seja, que tentasse remar contra o movimento natural dos processos de mudança sócio-urbanística, que é o que toda a gente fala de gentrificação”.
Importa-nos enfatizar ainda dois pontos adicionais. Em primeiro lugar, outros coletivos e associações de diversas índoles também se instalaram na área, atraídos pela disponibilidade de espaços com rendas baixas. Tal como os coletivos artísticos subsidiados pela CML, estes coletivos também organizam eventos musicais, festas e jantares, como forma de pagar as suas rendas. Isto resultou na formação de um cluster cultural e artístico “underground” que oferece uma intensa agenda cultural dirigida para o que categorizámos de “consumidores alternativos”. Em segundo lugar, é importante realçar que i) Lisboa está a experienciar um boom turístico, particularmente forte desde 2014; e que ii) este boom é crescentemente liderado por jovens visitantes, incluindo alunos do programa Erasmus, atraídos pela imagem da cidade enquanto lugar de diversão barata (Malet Calvo, 2018). Consequentemente, desde 2014, a agenda cultural alternativa produzida por estas organizações tem sido crescentemente apropriada por jovens visitantes que preferem evitar a vida noturna mainstream de Lisboa, optando por experiências e espaços de lazer mais “autênticos”. Estes espaços tornaram-se novos pontos de encontro para estudantes Erasmus e têm sido incluídos em guias de viagens internacionais enquanto sítios a não perder para quem quer experienciar uma das áreas mais “cool” de Lisboa.
Atualmente, e tendo por base os padrões de consumo dos jovens (locais e visitantes) que procuram ambientes urbanos específicos, destacam-se dois eixos urbanos principais onde decorrem as atividades culturais e noturnas em Lisboa: i) o eixo do Bairro Alto, Santos e Cais do Sodré; e ii) o eixo do Intendente e da Mouraria (ao longo da Avenida Almirante Reis). O primeiro oferece uma concentração de bares e discotecas nas áreas mais centrais da cidade, em ambientes habitualmente mais comerciais e sobrelotados, frequentados sobretudo pelos “consumidores mainstream” - jovens locais, estudantes estrangeiros e turistas que procuram ambientes especializados na noite, de grande concentração humana e onde a “loucura noturna” seja habitual. Estas áreas, anteriormente também deprimidas e problemáticas, especializaram-se progressivamente em funções relacionadas com as atividades noturnas, após atravessarem processos de gentrificação comercial e residencial durante as últimas duas décadas, e têm sido promovidas internacionalmente pela CML de forma a atraírem visitantes estrangeiros e novos residentes de classe média para a nova cena cultural (Malet Calvo et al., 2017). Por outro lado, o eixo do Intendente e da Mouraria oferece um leque disperso de espaços públicos, associações e bares alternativos, frequentados por “consumidores alternativos”, jovens hipsters portugueses e estrangeiros, que procuram ambientes noturnos mais diversos e ligados à realidade e cultura locais. Atraídos por esta oferta, encontramos nesta área grupos de turistas alternativos e de residentes estrangeiros com maior poder de compra do que a população local, que desempenham um papel ativo no aumento generalizado dos preços, na internacionalização do ambiente urbano e na mercantilização desta área. Enquanto algumas das associações instaladas na área demonstram preocupações com o seu papel neste processo, outras preferem não pensar tanto no assunto - a preocupação de muitas delas encontra-se em evitar o despejo da nova paisagem urbana que ajudaram a produzir. Esta é a grande ironia do capitalismo urbano pós-industrial.
Os coletivos culturais e artísticos existentes na área do Intendente e da Mouraria, tanto os subsidiados pela CML como os restantes, são atores que, no terreno, revitalizam o território, pelo que deveriam ser vistos com os drivers do processo de gentrificação marginal. As atividades de lazer que estes grupos oferecem atraem jovens utilizadores, mudam a imagem dos lugares e, sobretudo, têm estimulado a chegada de investidores privados que estão a mudar tanto os serviços comerciais como o mercado de habitação. Nos últimos três anos, o Largo do Intendente assistiu à transformação do seu comércio e à reabilitação do edificado. Progressivamente, os edifícios reabilitados vão dando lugar a hotéis, alojamento local, alojamentos para estudantes internacionais e apartamentos de luxo, tornando esta área um exemplo de gentrificação turística (Cocola-Gant, 2018). A ironia do processo, tal como identificado noutros casos europeus e norte americanos (Zukin, 1982), encontra-se no facto de os atores e as atividades que se instalaram inicialmente e contribuíram ativamente para a mudança da imagem de estigmatização e de abandono da área estarem neste momento em risco de despejo. No Largo do Intendente, as associações culturais aí localizadas têm manifestado preocupações relativamente à sua capacidade em se manterem no local e irão provavelmente abandonar a área num futuro próximo, tal como já aconteceu com coletividades da área (por exemplo, a Casa dos Amigos do Minho ou o Sport Clube Intendente) : “Nós achamos que não, mas isso hoje em dia não há uma garantia...” Se, em 2011, os novos cafés e bares foram abertos por iniciativa de empreendedores locais e dirigiam a sua oferta aos, então, novos usuários locais de baixos rendimentos (marginal gentrifiers), atualmente, assistimos à abertura de novos estabelecimentos, cafés e lojas trendy, dirigidos a usuários de classe média e classe alta e, particularmente, a turistas.
Conclusões
Lisboa é um destino turístico crescentemente popular, sendo uma das cidades europeias mais procuradas. À semelhança do “modelo Barcelona”, a “marca Lisboa” tem-se centrado na vida cosmopolita, na diversidade e na celebração das memórias e das tradições da cidade, fazendo evidenciar traços das estratégias neoliberais de urbanismo que asseguram um clima favorável ao capital privado. A estratégia de desenvolvimento urbano da cidade tem mudado a favor de uma abordagem neoliberal, deixando à deriva problemas sociais que se vão agravando.
A Mouraria e o Largo do Intendente são um exemplo evidente de um processo de regeneração urbana promovido por políticas públicas que se apoiam na arte e na cultura. As estratégias utilizadas para mudar a imagem do bairro estigmatizado e marginal tiveram um papel relevante: potenciaram o investimento e a especulação privada do imobiliário e afastaram residentes com menor capital económico. Estas estratégias foram potenciadas pela promoção de diversos tipos de eventos culturais com o objetivo de transformar o bairro marginal numa nova cena cultural para a classe média jovem.
Esta vaga de reabilitação resultou na abertura de hotéis, alojamento local, alojamentos para estudantes internacionais e apartamentos de luxo, e na mudança de usuários da área. A abertura de espaços “alternativos”, culturais e artísticos, alterou a imagem do Largo, contribuindo para a sua “higienização”, para a criação de valor simbólico e para o aumento dos valores imobiliários. Numa primeira fase, os artistas e os coletivos de artistas contribuíram para o progressivo processo de gentrificação ; numa segunda fase, que decorre atualmente, os mesmos artistas e coletivos têm-se visto forçados a abandonar o território, tendo os marginal gentrifiers e os “consumidores alternativos” sido substituídos por “consumidores mainstream”.
Esta estratégia está a ser usada noutras áreas da cidade, mas até quando esta situação será lucrativa para a economia da cidade? Apesar de este tema não ser original, e de estar muito problematizado nos debates académicos, acreditamos ser de extrema importância continuar a investigá-lo, visto que as políticas públicas continuam a usar a cultura e a arte de modo instrumental, apesar das críticas e das consequências negativas que lhe estão associadas. Assim, pretendemos continuar a investigar esta temática, analisando o que acontece com os territórios e os seus habitantes quando políticas públicas similares são implementadas.