Não deixa de ser irónico que um dossiê temático dedicado à mobilidade venha à estampa numa altura em que vivemos uma chamada generalizada para a suspensão e imobilidade. À primeira vista, este parece ser um dossiê desse outro tempo ; o tempo em que a pressa e a velocidade ditavam os ritmos quotidianos, antes que a letal pandemia gerada pelo SARS-CoV-2 impusesse a espera e a lentidão à escala global. Porém, como o sketch que ilustra a capa tão bem sugere, ontem, como hoje, a mobilidade é diversa e polissémica. Faz-se dos percursos de quem “vai e vem”, mas também da estaticidade de “quem pára”, “fica” ou “permanece”. Não por acaso, o verbo que escolhemos para a conjugar constitui, porventura, aquele que mais bem dá conta da dimensão totalizante da mobilidade na vida dos indivíduos. Viver a mobilidade é - também - viver as aparentes contradições e avessos que a oposição entre o presente e o passado pré-pandémico não criou, apenas tornou mais visíveis.
A mobilidade é condição intrínseca ao ser humano e constitui um fenómeno social multidimensional (Urry, 2007). Conjugada nos vários tempos, modos e pessoas, do singular ao plural, convoca diferenças e acentua desigualdades. É física, desenrola-se num espaço geográfico e tempo determinados ; mas também corporal, sensorial e imagética. Viver em|a mobilidade é viver entre a mobilidade pensada, planificada, desejada e antecipada, mas também espontânea, improvisada, temida e evitada.
O reconhecimento do interesse e actualidade, assim como da importância de colocar na agenda da discussão científica e pública o tema das mobilidades tem-nos levado a organizar periodicamente o seminário internacional e interdisciplinar “Viver em|a Mobilidade”. Na verdade, dispomos hoje de um significativo conhecimento teórico-conceptual em torno da mobilidade, dos seus sentidos, escalas e experiências (Adey, Bissell, Hannam, Merriman, & Sheller, 2014; Harvey, 2012; Kaufmann, 2017; Urry, 2007). Este conhecimento está enformado pelas grandes questões que animam a teorização social contemporânea em torno dos usos, apropriações e representações do tempo e do espaço. Sem perder o enquadramento global, o nosso propósito é o de criar uma dinâmica de estudo sobre a temática em território e língua portuguesa, agregando investigadores de diversas áreas do saber e intervenção que se reúnem para discutir em conjunto, ainda que em linguagens diferentes. Aqui se incluem, também, decisores políticos e outros profissionais, reresentantes da sociedade civil, artistas e criadores que ajudam a pensar, planear e aprofundar abordagens teóricas, metodológicas e de intervenção social suscitadas por velhos e novos desafios que caracterizam as mobilidades contemporâneas.
A primeira edição do seminário “Viver em|a Mobilidade” foi realizada em Braga, em Novembro de 2016, e reuniu contributos de diversas áreas científicas sob o epíteto “Rumo a Novas Culturas de Tempo, Espaço e Distância”. No livro de actas dizíamos que a problemática das mobilidades não se esgota “[…] nos processos subjetivos de deslocação e apropriação dos espaços-tempos pelo indivíduo, nem no planeamento político e económico das macroestruturas que enformam as mobilidades. Enquanto conceito multidimensional, as mobilidades requerem ser analisadas nas suas diversas camadas de sentido, beneficiando dos cruzamentos interdisciplinares e situando criticamente o conceito nas configurações fluidas das sociedades contemporâneas” (Araújo, Ribeiro, Andrade & Costa, 2018, p. 8). Foi com este objectivo em pano de fundo que em 2018 organizámos uma segunda edição do “Viver em|a Mobilidade”. Em Évora propusemo-nos alargar o debate sobre a mobilidade na contemporaneidade, olhando particularmente para os seus “(Com)passos, Rumos e Políticas”. Num contexto político e social em que as mobilidades adquirem contornos diversos e conflituais, mas também preenchem a agenda das políticas de promoção cultural e turística, importa debater as novas reconfigurações das mobilidades, o papel das pessoas e dos territórios nesse processo. Interessa diagnosticar e destacar o papel das políticas dos programas institucionais e governamentais e as suas (des)adequações, no contexto das novas formas de (des)habitar. Importa também, sob o ângulo da interdisciplinaridade, interrogar o papel das diversas áreas de conhecimento, bem como as características e potencialidades dos métodos de investigação e de intervenção que propõe, com especial acuidade no que respeita à participação e à promoção do bem-estar e da qualidade de vida.
Discutir a experiência da mobilidade contemporânea, que, como referiu Cresswell tão cedo quanto 2006, é o “sangue vital da modernidade e ao mesmo tempo o vírus que ameaça destruir tudo” [destaque nosso] (Cresswell, 2006, p. 18), conduziu-nos, por um lado, a pensar a mobilidade como produtora de experiências, sentidos e modos de vida ; por outro, a analisar como a mobilidade resulta de estruturas e condicionalismos, acções, planos, projectos e intenções. Os textos que integram este dossiê foram seleccionados de entre as diversas comunicações apresentadas ao seminário de 2018 e posteriormente submetidos ao crivo do processo de arbitragem científica da Forum Sociológico. Destacando-se inicialmente pela qualidade e relevância das temáticas abordadas, à selecção e organização dos textos presidiram também critérios de pluridisciplinaridade, complementaridade de abordagens teóricas e diversidade de contextos empíricos. O dossiê agora constituído espelha aquilo que foi um encontro feito de muitos encontros, de uma participação ampla, rica e criativa, multidisciplinar e multiformato, e permite, através e além dele, compreender a complexidade das várias experiências e sentidos do viver em|a mobilidade, nos seus percursos, permanências e registos.
Versam sobre percursos na cidade os artigos que iniciam o dossiê. Justamente porque a cidade é comumente conceptualizada como espaço de liberdade, são muitas as perplexidades suscitadas quando perspectivada pela lente da mobilidade. Em “Sujeitas públicas, narrativas anônimas : Espacializando o medo e a (im)permanência da mulher no âmbito urbano em Maceió/AL - Brasil”, Júlia de Freitas Correia Lyra explora a cidade enquanto agente activo na (re)produção das relações sociais, incluindo as relações de género. Apoiando-se na recolha de autonarrativas de usuárias do bairro da Jatiúca (Maceió/AL - Brasil), o artigo traz uma leitura da posição social da mulher na cidade e, partindo do pressuposto de que o género produz experiências urbanas distintas para homens e mulheres, procura apontar quais (e como) são os espaços de medo que não são vivenciados plenamente pelas mulheres. Ao mesmo tempo que os resultados demonstram as especificidades da vivência da mulher, dão visibilidade à multiplicidade das experiências dessas sujeitas, ilustrando a urgência de repensarmos os espaços públicos para garantir a autonomia das mulheres em estruturas urbanas.
A cidade é também o espaço de experiências múltiplas nos percursos adoptados por “J”, a narrativa privilegiada pelo Coletivo Aleph no artigo “Um olhar não heteronormativo sobre mobilidade e permanência em espaço urbano”. Este colectivo intergeracional e contemporâneo, que investiga as diferentes abordagens do espaço na cidade com o objectivo de estimular a discussão crítica sobre o direito à cidade diversa, flexível e inclusiva, discute neste texto experiências vividas e atmosferas sentidas nos espaços público e privado, pertencentes ao quotidiano de estudantes com diferente identidade e expressão de género e orientação sexual, conduzindo à discussão sobre a concepção heteronormativa do espaço urbano à luz do pensamento feminista. O olhar não heteronormativo de “J” permite desconstruir a associação de senso comum entre lugares de proximidade, familiaridade e comunidade como lugares de acolhimento, protecção e inclusão, ao mesmo tempo que recusa uma associação directa entre lugares estranhos e opressão. Os percursos narrados na primeira pessoa conduzem “J” pelo espaço da sua própria casa e pela dos avós, passando pelo bairro até à escola básica, a travessia do Tejo, os parques públicos da cidade de Lisboa, o Estádio Universitário ou a cidade de Londres, e dão conta de processos ambíguos entre o espaço privado e o espaço público, percepcionados em relação directa com a identidade e expressão de género e orientação sexual, ora como opressão e exclusão, ora como liberdade e inclusão.
Em “Contributos para a compreensão da mobilidade : Uma análise às travessias pedonais”, Márcia Silva, Emília Araújo e Rita Ribeiro interrogam-se sociologicamente sobre este objecto, até certo ponto negligenciado no entendimento e intervenção nas esferas da segurança rodoviária nas cidades. Concebidas primordialmente como obras de engenharia e elementos “naturais” do planeamento urbano, é parca a literatura sociológica sobre as travessias pedonais. Neste artigo cruzam-se contributos de diversas áreas científicas acerca dos tipos e usos das travessias pedonais e analisam-se os resultados de um estudo realizado sobre uma travessia pedonal sem sinais luminosos localizada na cidade de Braga. O estudo, que pretendeu caracterizar o atravessamento da travessia, por parte dos peões e dos automobilistas, serve de fundamento empírico para a construção de um esboço de uma problemática, com pistas importantes ao nível do planeamento e tipologia de travessias pedonais, assim como o reforço do trabalho interdisciplinar.
Os percursos cruzam-se, outras vezes dão lugar a permanências mais ou menos duradoiras. Neste dossiê privilegiamos as que derivam das mobilidades de lazer e turísticas, que contrastamos nos cenários igualmente históricos da Lisboa “urbana” e “massificada” e dos territórios de baixa densidade, “rurais” e “diferenciadores” do interior do país. No artigo “Mobilidades temporárias na cidade turística : O caso do centro histórico de Lisboa”, Luís Vicente Baptista, Jordi Nofre e Maria do Rosário Jorge tratam de como o surgimento de “novas” mobilidades coloca o homo/mulier mobilis (Amar, 2010) como actor-chave da cidade contemporânea. Visitantes, turistas, estudantes universitários e migrantes transnacionais mudam e re-significam o(s) quotidiano(s) urbano(s) de múltiplas formas, moldando uma nova topografia social do consumo. Apesar de constituir uma forma por excelência de mobilidade temporária, o turismo tem visíveis impactos nos territórios, urbanos e globais, como fica bem patente pela análise particular do estudo do centro de Lisboa.
Enquanto o Bairro Alto e Alfama servem de terreno empírico para explorar as diferentes escalas fenomenológicas (transnacional/urbana/microlocal) e os seus múltiplos protagonistas, práticas e dinâmicas territoriais na cidade, a rede de Aldeias Históricas de Portugal é utilizada por Paula Reis e Maria da Saudade Baltazar para ilustrar as percepções diferenciadas de visitantes e residentes em territórios rurais do interior sobre as alterações na vida das comunidades. Em “Mobilidade e diferenciação dos espaços de lazer e de turismo : Percepções dos visitantes e dos residentes de um destino turístico do interior”, as autoras exploram precisamente como, em face da intensificação da mobilidade nas sociedades contemporâneas e dos novos comportamentos e hábitos de consumo, os territórios rurais de baixa densidade emergem como destinos turísticos “alternativos” e de “diferenciação” para o desenvolvimento de actividades turísticas e de lazer. Paralelamente, avançam com pistas interessantes para se compreender como o crescente interesse pelos destinos do interior não pode ser interpretado à margem de considerações multidisciplinares que envolvem os consumidores urbanos, justamente os visitantes que escolhem tais destinos como espaços de refúgio para curtos períodos de lazer e turismo em contacto com os recursos histórico-arquitectónicos e culturais.
Por fim, olhando para os registos, este dossiê é também especialmente importante pelo reconhecimento e afirmação da pluralidade metodológica subjacente aos estudos de mobilidade e, principalmente, da renovação metodológica e epistemológica em curso por via das metodologias móveis. Sem prejuízo do recurso a técnicas clássicas de recolha de dados como as documentais, o inquérito por questionário e os diversos tipos de entrevista, nas linhas e entrelinhas que se sucedem destaca-se a triangulação metodológica e a afirmação progressiva de abordagens criativas na pesquisa sobre mobilidade, incluindo o recurso a interfaces digitais para a recolha de dados ou a software de análise qualitativa para a sua análise e interpretação. Alinhado com esta tendência, o último artigo do dossiê explora a potencialidade do sketching nos estudos de mobilidade. Em “Desenhando a mobilidade”, Rosalina Pisco Costa, Catarina Sales Oliveira e A. Márcia Barbosa cruzam as preocupações e especificidades das metodologias móveis com as questões levantadas pelo uso das metodologias criativas, nomeadamente as baseadas na arte em ciências sociais, em particular na sociologia (Kara, 2015). A experiência de organização e condução de um workshop de metodologias móveis no contexto do seminário “Viver em|a mobilidade” constitui o mote para problematizar o recurso ao desenho enquanto ferramenta ao serviço das metodologias móveis a partir de três questões principais : o aparente determinismo imposto pelas competências e skills preexistentes ; a importância do tempo na observação da passagem do tempo ; por fim, as questões éticas associadas ao acto de desenhar in loco.
A concluir este editorial, queremos agradecer aos autores que contribuíram com o envio de manuscritos, aos revisores anónimos pelas inúmeras sugestões e comentários construtivos para a melhoria dos textos finais, ao Conselho de Redação da Forum Sociológico pelo entusiasta acolhimento do dossiê temático e, por fim, à Rita e à Brenda pelo inexcedível apoio editorial nas várias fases deste processo. Agradecemos a todos a generosidade e a dedicação a este projecto em circunstâncias particularmente exigentes. Às coordenadoras não restam dúvidas de que, apesar do tempo suspenso que vivemos, existe mais de contemporaneidade do que de extemporaneidade neste dossiê. E, do mesmo modo que o tempo agora é de suspensão, assim também esperamos que seja de leitura, reflexão e, se não trabalho, pelo menos inspiração.
Évora/Covilhã/Braga, Julho de 2020