Introdução
Portugal foi dos países mais atingidos pela crise de 2008 (Eurofound, 2015; OCDE, 2014) e que associada à crise da dívida pública nacional, em 2010, arrastou o país para uma situação financeira bastante grave que piorou no primeiro trimestre de 2011 (Mota, 2017). O combate à crise económica e financeira, a primeira do séc. XXI (Ross, 2016) e a primeira da Zona Euro (Mamede, 2020), levou à austeridade, não só em Portugal, como em vários países da União Europeia (UE).
A austeridade através do Memorando de Entendimento (MdE) celebrado em maio de 2011 entre o então governo de José Sócrates e a Troika - composta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE) - implicou a redução da despesa pública e o aumento da carga fiscal por parte do Estado português, através de um programa de ajustamento financeiro a ser executado até 2014, por conta de um desembolso de 78 mil milhões de euros. O setor da saúde constituiu uma das principais áreas do MdE, com mais de 50 medidas e ações a implementar (Pita Barros, 2012b), as quais exigiam uma poupança de 664 milhões de euros (Pita Barros, 2012a). Só que esta austeridade foi levada ainda mais longe do que o programa negociado com a Troika. Por exemplo, o XIX Governo Constitucional, em setembro de 2011, anunciou um corte de 11% no orçamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o dobro do inicialmente negociado através do MdE (European Intelligence Unit, 2011 citado por Morgan & Astolfi, 2013, p. 13).
A austeridade, como política económica, revelou-se devastadora para a saúde das populações (McKee et al., 2012; Stuckler & Basu, 2014; Stuckler et al., 2017), estando também associada ao aumento da mortalidade e da morbilidade e à diminuição do acesso e utilização de cuidados de saúde (Bernardo et al., 2014; Dias et al., 2013). Mais do que os efeitos da crise, são sobretudo as respostas dadas pelos governos que maiores repercussões têm na saúde pública (Green, 2018; Stuckler et al., 2017; Suhrcke & Stuckler, 2012). Para alguns especialistas, a crise económica e a austeridade representam uma ameaça à saúde pública (Karanikolos et al., 2013), em especial para os grupos mais vulneráveis (Marmot et al., 2012), onde se inclui a população idosa.
Os efeitos das crises económicas na saúde das populações têm sido muito debatidos, em particular aqueles que se relacionam com a crise de 2008 e as políticas de austeridade que se seguiram. A literatura destaca sobretudo os efeitos negativos, embora se verifiquem leituras no sentido oposto (ex.: Ruhm, 2000, 2016; Tapia Granados, 2014). Os efeitos negativos são heterogéneos, mas no topo das evidências surgem a deterioração da saúde mental e a prevalência dos suicídios (Parmar et al., 2016). Também é identificada a emergência e a elevada prevalência de problemas de saúde mental (Frasquilho et al., 2016) e o aumento de hospitalizações em psiquiatria (Silva et al., 2018). Em termos gerais, a saúde mental tem-se destacado como uma das áreas mais sensíveis às mudanças macroeconómicas (Karanikolos et al., 2015). No que respeita aos efeitos negativos na saúde dos mais velhos, num estudo incluindo vários países europeus, com exceção de Portugal, Stuckler et al. (2017) observaram um ligeiro aumento da mortalidade nesta população. Esta tendência, que o grupo de investigadores atribui à austeridade mais do que à crise, foi registada tanto em Itália como no Reino Unido. Estes resultados foram novamente confirmados no Reino Unido - entre os pensionistas mais pobres e muito idosos (85+) -, como resultado dos vários cortes nos apoios sociais a que foram sujeitos (Loopstra et al., 2016). Todavia, a investigação sobre os efeitos da crise e da austeridade na saúde dos mais velhos tem sido particularmente descurada, ao contrário das crianças, grupo onde estes efeitos mais têm sido examinados (Rajmil et al., 2020).
A escassa investigação sobre os efeitos da crise e da austeridade na saúde dos portugueses destaca a sua gravidade, em especial no grupo dos mais velhos e dos desempregados, a qual se viu traduzida num aumento muito significativo das consultas de psiquiatria (Cardoso et al., 2015). Num estudo mais recente, as conclusões apontam também que foram os portugueses mais velhos - e não os mais jovens - a sentir um maior sofrimento psicológico, por força da adversidade macroeconómica (Frasquilho et al., 2017).
Em Portugal, a investigação sobre os efeitos da crise e da austeridade na saúde é limitada (Legido-Quigley et al., 2016), quando comparada com outros países da Europa do sul e sobretudo no que respeita aos mais velhos. Não obstante, esta população não foi poupada à crise económica e à austeridade, tanto por via da degradação financeira dos orçamentos familiares e do aumento generalizado do custo de vida, como pela diminuição da despesa pública nos serviços de saúde (Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), 2012). Estamos perante um grupo vulnerável a situações de pobreza e exclusão social e dos mais desfavorecidos em termos económicos (Alves, 2015; Bruto da Costa, 2015; Lopes, 2010). São igualmente, e em conjunto com as profissões de risco, os que mais recorrem a serviços de saúde por motivos de doença (Santana, 2002). Em 2013, apenas 11,5% da população portuguesa maior de 65 anos se sentia bem com o seu estado de saúde, uma percentagem claramente abaixo da média (43,4%) e na cauda da tabela dos restantes países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE, 2015).
Existe, assim, um reconhecimento alargado de que em tempos de recessão económica e de austeridade, a saúde da população tende a ser afetada, e que a saúde mental é das mais penalizadas. Contudo, verifica-se um magro interesse da investigação sobre os efeitos da crise e da austeridade na saúde dos mais velhos, por comparação a outros grupos igualmente vulneráveis. E a realidade portuguesa não é uma exceção, antes pelo contrário. Apesar de Portugal ter sido fortemente atingido pela crise e pelas respostas à crise, os seus efeitos, particularmente na saúde dos mais velhos, têm sido pouco estudados do ponto de vista sociológico.
É justamente para se compreender este fenómeno ainda pouco estudado, que este artigo apresenta os resultados parciais da tese de doutoramento da primeira autora, os quais se focam, precisamente, nas consequências da crise e da austeridade na saúde autopercebida dos mais velhos. Privilegia-se um olhar em profundidade, alicerçado nas narrativas dos mais velhos, e que procura dar conta das suas experiências subjetivas, mais concretamente da forma como avaliam as consequências da crise e da austeridade nas suas condições de saúde. Para tal, recorreu-se a dois operadores analíticos: as “práticas familiares” (Morgan, 1996, 2011), construto que nos faz olhar para as famílias não por aquilo “que são” ou “para que servem”, mas “pelo que fazem” no seu quotidiano; e as “vidas interligadas”, um princípio resgatado à “perspetiva do curso de vida” (Settersten Jr., 2015), que remete para a ideia de que um evento crítico ou uma mudança na vida de um indivíduo pode levar a ajustamentos nas vidas daqueles lhes são mais próximos (Gouveia, 2014). Estes dois operadores analíticos estão interligados, pois as práticas familiares de uns interligam-se com as práticas familiares de outros. Por sua vez, as práticas familiares, decorrentes da interligação das vidas quotidianas, repercutem-se positiva ou negativamente nas vidas dos indivíduos envolvidos nessas práticas.
Abordagem metodológica e desenho da pesquisa
A estratégia de investigação adotada é qualitativa, com enfoque na Abordagem Biográfica/Narrativa (Bertaux, 2020; Gubrium & Holstein, 2008; Riessman, 2008). Através das narrativas de vida procura-se ter acesso não só às subjetividades e aos significados, mas também às dimensões sociais mais amplas que moldam as vidas humanas. A Abordagem Narrativa assenta na entrevista narrativa como técnica privilegiada de recolha de dados, a qual consiste numa “entrevista durante a qual um/a “investigador/a” (…) pergunta a uma pessoa (…) que lhe conte toda ou somente parte da sua experiência vivida, colocando a tónica (…) sobre o aspeto “vida social” (Bertaux, 2020, p. 1). O guião de entrevista organizou-se em torno dos seguintes temas: a) as perceções sobre a crise e a austeridade; b) as mudanças nas práticas familiares; c) os significados das mudanças ; e, por fim, d) as consequências na saúde e na qualidade de vida.
A recolha de dados foi realizada em Faro que, em termos administrativos, é a capital do distrito do Algarve. Este concelho concentra a maior percentagem de residentes desta região. Fazendo uso de várias estratégias de amostragem (intencional, conveniência e bola de neve), foram selecionadas pessoas mais velhas, institucionalizadas ou não, de diferentes sexos, idades, posições sociais e situações conjugais. A amostra tem representatividade simbólica (diversificada em termos de idade, sexo, classe social, entre outros) e as entrevistas foram realizadas até se alcançar a saturação empírica. Os participantes são portugueses e residentes no concelho de Faro. Dezanove são mulheres e nove são homens. As idades variam entre os 69 e os 92 anos de idade, com uma média de idades de 77 anos. Cinco mulheres estavam institucionalizadas em lar de idosos. No entanto, este artigo dá conta apenas dos resultados relativos aos não institucionalizados. Isto prende-se com o facto de o número de pessoas institucionalizadas ser reduzido e, como tal, limitar uma análise comparativa entre institucionalizados e não institucionalizados.
O trabalho de campo foi conduzido entre outubro de 2016 e março de 2017 e salvaguardou, do início ao fim, o direito à informação e à autonomia, à participação voluntária, à garantia da confidencialidade dos dados, à privacidade e ao anonimato dos participantes. Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios. Uma das estratégias para aceder ao terreno visou o contacto direto com instituições com intervenção junto da população idosa do concelho. Por intermédio desta colaboração, foram recrutados dezoito participantes para a amostra.
A análise dos dados foi realizada de acordo com os procedimentos da Framework Analysis (Ritchie et al., 2014; Spencer et al., 2014), uma técnica de análise temática de conteúdo, que envolve uma série de fases interligadas, não necessariamente mecanizadas, e que não tem como objetivo a quantificação analítica.
Resultados
Em primeiro lugar, façamos a descrição dos perfis sociológicos dos participantes. O primeiro perfil “Socialmente Vantajoso”, que encontra correspondência nos padrões de vida de “Velhice Autónoma” e de “Velhice Distintiva” (Mauritti, 2004), é integrado por dez participantes e é principalmente composto por mulheres (integra apenas quatro homens). Os participantes têm idades entre os 69 e os 83 anos, sendo na sua maioria casados (sete participantes). Todos os participantes têm formação superior e no ativo ocupavam posições sociais mais favorecidas na estrutura de classes sociais. Todos têm filhos.
Quanto ao perfil “Socialmente Desvantajoso”, similar aos padrões de vida de “Velhice Precária” (Mauritti, 2004), inclui oito participantes e é sobretudo composto por mulheres (integra só dois homens). Têm idades entre os 70 e os 82 anos e predominam as viúvas. Cerca de metade destes participantes vive só e a outra metade vive acompanhada. Apresentam percursos escolares curtos, mais de metade tem um nível de escolaridade equivalente ou inferior à antiga 4.ª classe. Em relação às posições na estrutura de classes sociais, eram na sua maioria empregados executantes. A maioria tem dois filhos. É neste segundo perfil que as mudanças introduzidas nas práticas familiares, em especial, nas dimensões do consumo de bens e lazer foram particularmente expressivas e dolorosas. Os participantes viram-se obrigados a cessar o consumo de alguns bens alimentares e vestuário ou a cortar de forma radical as atividades de restauração, férias e viagens.
O terceiro perfil, designado de “Misto/Intermédio”, enquadra os participantes que não se encaixam no perfil “Socialmente Vantajoso”, nem no perfil “Socialmente Desvantajoso”. Integra cinco participantes, onde se encontra um ligeiro predomínio de homens (apenas duas mulheres), bem como de viúvos e divorciados (apenas um casado). Têm idades entre os 71 e os 90 anos e residem maioritariamente sozinhos. Os percursos escolares são heterogéneos, mas concentram-se especialmente na antiga 4.ª classe. Em termos de posições de classe, eram na sua maioria pequenos patrões do comércio. A maioria tem três filhos.
Os resultados desta investigação vêm apresentar dois padrões dicotómicos relativos às consequências da crise e da austeridade na saúde autopercebida dos participantes: i) a saúde ficou a perder com a crise e a austeridade; e ii) a crise e a austeridade passaram ao lado da saúde.
A saúde ficou a perder com a crise e a austeridade
O primeiro padrão dá conta de impactos negativos na saúde autopercebida. A saúde ficou a perder, em particular a saúde mental, manifestando-se através de perturbações do humor, ansiedade e depressão, e perturbações do sono. Estes impactos decorrem de dificuldades vividas pelos descendentes dos entrevistados, especialmente pelos filhos, e encontram-se maioritariamente junto de mulheres (mães e avós).
Perturbações do humor, ansiedade e depressão
Miguel sente-se triste, sobretudo pelo facto de o seu filho mais velho se ter visto obrigado a emigrar em 2012. Foi em busca de melhores condições de vida, aquelas que Portugal não lhe oferecia. Miguel também esteve várias décadas emigrado na Austrália e quando regressou a Faro estabeleceu um negócio por conta própria, na expetativa de proporcionar aos filhos uma vida melhor. Sabe bem o que é a vida de emigrante e sente-se mais em baixo psicologicamente, porque tinha idealizado outros planos para o seu filho, que não se concretizaram, por culpa da crise. Confessa-nos que a parte mais afetada da sua saúde foi o humor:
Talvez o humor, a pessoa fica mais triste. Não é tão feliz. Na parte sentimental. As coisas podiam ter sido diferentes. Custou-me ver o meu filho sair de Portugal, a minha netinha pequenina (…). | Miguel, 72 anos, Casado, Comerciante Reformado | | Perfil Misto/Intermédio |
Já Joana passou a sofrer, porque o filho também estava a sofrer. O filho adulto passou a viver consigo, depois de várias experiências de emigração que não foram bem-sucedidas. Refere que o custo de vida disparou e que “o dinheiro não dá para nada”. Entretanto, as despesas em casa duplicaram. Além de lhe proporcionar um teto para morar, Joana também começou a ajudar o filho a pagar as despesas do seu dia a dia. Só que este estava emocionalmente muito frágil, dado o risco de poder cair uma vez mais nas malhas do desemprego e esta situação acabou por fazer aumentar, ainda de que forma involuntária, os níveis de ansiedade da mãe:
O meu filho anda muito nervoso, muito nervoso, porque não sabe o dia de amanhã. E eu fico ansiosa. E é mau porque já fui operada ao coração/aorta. A minha saúde é muito frágil e toda esta incerteza perturba. Sofro porque os meus sofrem. | Joana, 77 anos, Viúva, Auxiliar de Serviços Domésticos, Reformada | | Perfil Socialmente Desvantajoso |
No caso de Adélia, esta viu-se a braços com a instabilidade laboral das duas filhas adultas, ambas divorciadas e com filhos menores. A filha mais velha, vendedora na área das telecomunicações, tinha um bom salário. Só que a empresa, para fazer face às dificuldades da crise, mudou as regras das comissões e os rendimentos familiares caíram a pique. A mais nova ficou desempregada. Adélia sublinha que “tinha passado a receber menos” e “viu-se obrigada “a ajudar mais”. A participante, que já tinha outros problemas de saúde crónicos (diabetes e hipertensão), referiu-se a este período como “foi muito mau”. Esta intranquilidade familiar teve repercussões não apenas no seu estado de saúde, como no do seu marido (doente oncológico), ao ponto de ambos terem de recorrer a medicação antidepressiva. O desabafo de Adélia é bastante ilustrativo:
esta situação| (…). Deixou-nos marcas. Sei lá se volta tudo ao mesmo! E se a minha filha é mandada embora! Já tem 50 anos, onde é que vai arranjar emprego. Mas veja, a última vez que mudei de emprego eu tinha 50 anos (…). Tudo isto nos deixa ansiosos. Falta de segurança, seja naquilo que for (…). E saber que, de um momento para o outro, tudo pode virar. (…) Eu todos os dias passei a tomar um antidepressivo. O meu marido também. | Adélia, 70 anos, Casada, Agente de Viagens Reformada | | Perfil Socialmente Desvantajoso |
Perturbações do sono
Dina e o seu marido não tiveram outra hipótese senão socorrer-se das suas reformas (uma delas sujeita a um corte significativo) e do património imobiliário da família para dar apoio aos três filhos, em particular ao mais velho, que ficou desempregado por força da reestruturação do banco onde um dia chegou a ser gerente. Este é o filho que de longe concentra as suas maiores preocupações, pois “tinha posição, casa própria, carro. Uma vida estabilizada” e “agora aos 49 anos, é tudo uma incógnita.” Esta grande preocupação de Dina tem-se refletido na sua saúde, ao ponto de ter iniciado medicação para conseguir dormir:
Olhe, não tenha dúvida, uma pessoa anda muito mais enervada. Passei a tomar um comprimido para dormir. Preocupa-me muito. É muito difícil arranjar um emprego agora, sobretudo dentro daquele nível que ele tinha. | Dina, 75 anos, Casada, Professora do Antigo Ensino Primário Reformada | | Perfil Socialmente Vantajoso |
À semelhança de Dina, também Marta viu a sua reforma ser substancialmente cortada e o seu estado de saúde ser desgastado com as preocupações com os filhos. A filha mais nova que trabalhava no aeroporto havia sido alvo de um despedimento coletivo. De um dia para o outro, ficou no desemprego e para complicar ainda mais as contas familiares, passou por um divórcio atribulado e ficou com dois filhos a cargo. Entretanto, conseguiu arranjar emprego numa agência imobiliária, mas a opinião de Marta é a de que “aquilo é muito incerto” e, por isso, continua a ajudá-la, mais precisamente a ajudar “Os miúdos, a pagar as explicações”. Marta também dá apoio a uma das suas seis netas, que é artista e vive em Lisboa. A propósito da sua saúde, a antiga professora primária foi bastante categórica ao afirmar que esta sensação de incerteza permanente fez com que as suas noites de sono nunca mais fossem as mesmas:
Ainda hoje posso dizer que durmo mal. Eu fujo dos médicos. Ainda hoje passei pela farmácia e pedi alguma coisa para as dores. Ando a fazer fisioterapia ao ombro, mas não tem servido de nada. A gente ficou com receio do dia de amanhã. | Marta, 83 anos, Viúva, Professora do Antigo Ensino Primário Reformada | | Perfil Socialmente Vantajoso |
A crise e austeridade passaram ao lado da saúde
O segundo padrão referente às consequências da crise e da austeridade na saúde autopercebida dos participantes remete para a ideia de que a crise e a austeridade “passaram ao lado” da saúde individual. Neste padrão, encontramos mais homens do que mulheres, mas o denominador comum é o facto de os filhos ou os familiares mais próximos não lhes terem trazido preocupações de maior nesta fase das suas vidas.
Vejamos, em primeiro lugar, o caso de Duarte que vive com a mulher, o enteado e o filho de ambos. Os quatro filhos fruto do primeiro casamento, já adultos, têm as suas vidas relativamente estabilizadas. Este médico reformado que “tinha um certo padrão de vida” antes da crise, viu-se levado a introduzir mudanças no lazer, em particular, sacrificando férias em destinos fora do país. A sua reforma havia sido substancialmente cortada, pois como refere “O ilíquido é muito bonito, são 4000 e tal euros” e depois “passei então a levar 2200 euros para casa!”. Porém, Duarte clarifica que todas estas mudanças não se repercutiram negativamente na sua saúde:
Deixei de poder viajar. Foi uma desilusão. (…) Fiz sacrifícios, abdiquei de algumas coisas (…). A minha mulher trabalha, não é um salário elevado, mas na altura, não trabalhava. Tinha três estudantes e viviam todos cá em casa, por conta da minha reforma. Senti uma vez ou outra um incómodo, mas não ao ponto de afetar a minha saúde. | Duarte, 76 anos, Casado, Médico Reformado | | Perfil Socialmente Vantajoso |
Olhemos agora o caso de Tiago. Quando viajou com os seus pais para o interior de Angola ainda era uma criança. Naquela altura, o Estado português dava casa aos colonos e hectares para serem cultivados. Só regressou a Portugal quando se viu obrigado por causa da guerra civil que, entretanto, se instalara naquele país. Decidiu voltar, mais precisamente para o Algarve, onde, com a mulher já falecida, abriu um negócio local. Não teve filhos, mas tem dez sobrinhos, dos quais é bastante chegado. A crise e a austeridade levaram-no a fazer “cortes em tudo” e nem a sua reforma conseguiu escapar à Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES). Contudo, não hesita em afirmar que a sua saúde não foi minimamente afetada:
Não, já passei tanto na minha vida, as pessoas superam as coisas de uma outra forma. Aquela estadia em África, fez-nos homens de aço. Nós penámos muito. Em vez de andar na universidade, andei no mato”. |A crise e austeridade| Foi mais uma fase na minha vida. | Tiago, 71 anos, Viúvo, Comerciante Reformado | | Perfil Misto/Intermédio |
Por seu lado, Manuel é um bancário reformado que vive sozinho é e pai de duas filhas. Ambas têm apenas o 12.º ano e não têm tido, apesar da crise, grandes dificuldades em arranjar emprego. E também não foram afetadas nos salários porque “o que costumam receber é o ordenado mínimo”, acrescenta o pai. Contudo, Manuel não pode dizer o mesmo. Além do corte, viu a sua reforma congelada, ao contrário do previsto no Contrato Coletivo de Trabalho. Teve de fazer alguns cortes nas idas a restaurantes e continuou a poupar como sempre fez. Manuel foi bastante assertivo ao afastar quaisquer interferências no seu estado de saúde, e fez questão de destacar a reversão de uma das medidas de austeridade que havia sido implementada no setor:
Não, comigo não se passou isso. (…) E na saúde, eu não faço muitas contas com os SAMS. Eu tomo medicação, mas vou ao SNS e pago 2,5 euros, porque o Costa baixou, foi muito bom isso e se fosse ao SAMS teria que pagar 6 euros. | Manuel, 71 anos, Separado, Bancário Reformado | | Perfil Misto/Intermédio |
Por último, temos o caso de Inês, enfermeira reformada, mãe de duas filhas, uma inspetora tributária e a outra agrónoma. A Inês e o marido (também reformado) viram as suas reformas sujeitas a cortes, acrescidas dos descontos para o subsistema de saúde, os quais se tornaram uma “brutalidade”. Além disso, confessa que o Imposto sobre o Rendimentos sobre os Singulares (IRS) “é uma roubalheira!” para quem já não está na vida ativa. Pese embora ter sido afetada, a Inês põe de parte qualquer influência da crise e da austeridade no seu estado de saúde, e justifica este facto do seguinte modo:
As minhas filhas não passaram por nenhuma situação de desemprego. A minha filha mais nova conseguiu entrar na função pública, há 6, 7 anos, numa fase que coincidiu mais ou menos com este período que estamos a falar. E tenho as minhas filhas já com a vida delas. Ajudo-as quando é preciso. | Inês, 70 anos, Casada, Enfermeira Reformada | | Perfil Socialmente Vantajoso |
Discussão dos resultados
A compreensão dos efeitos da crise e da austeridade nas vidas dos mais velhos ainda peca por escassa (Walsh et al., 2012). Neste artigo procurou-se perceber até que ponto é que a crise e a austeridade tiveram consequências ao nível da saúde dos mais velhos, um tema ainda pouco explorado, particularmente no nosso país. Os resultados mostram dois padrões a este respeito. O primeiro padrão dá conta dos casos em que a saúde dos mais velhos ficou a perder com os efeitos da crise e da austeridade nas vidas de familiares próximos, enquanto o segundo padrão agrupa aqueles em que não se deram quaisquer repercussões na saúde individual. Contudo, há um ponto que é importante sublinhar desde já, ou seja, estes resultados - uma vez que são recolhidos a partir das perspetivas dos mais velhos - são referentes à saúde autopercebida.
No primeiro padrão, os efeitos negativos ao nível da saúde dos mais velhos são motivados pela insegurança laboral e pelo desemprego, principalmente dos filhos. Isto é claramente indicador de que as consequências da crise e da austeridade têm diversas ramificações e que não se circunscrevem (única e exclusivamente) aos eventos e mudanças ocorridas nas vidas dos mais velhos (alguns tiveram cortes nas pensões, que se repercutiram nas suas práticas familiares), mas também às vidas dos seus familiares. Isto demonstra a importância das “vidas interligadas” (Settersten Jr., 2015), um dos princípios centrais da “perspetiva do curso de vida” (especialmente no que diz respeito às relações familiares), mas ainda pouco estudado tanto empírica como metodologicamente (Carvalho et al., 2021). Os participantes mais velhos sofreram como pais e avós, pois os respetivos filhos e netos passaram por dificuldades inesperadas, e isto distanciou a velhice vivida da velhice imaginada, esta última mais despreocupada e livre de responsabilidades familiares. Os filhos voltaram, por força das circunstâncias, a estar dependentes dos pais, numa fase em que supostamente tal já não deveria acontecer, isto é, fora do “relógio social” (Elder Jr. & Rockwell, 1976). Estas práticas familiares, e a interligação destas, estão, assim, na génese dos problemas reportados ao nível da saúde mental dos mais velhos, o que vai ao encontro dos resultados de outros estudos (ex.: Cardoso et al., 2015; Frasquilho et al., 2017).
A premissa “eu sofri porque os meus sofreram” revelou ser transversal aos três perfis sociológicos, ao contrário do sugerido por outros estudos (ex.: Marmot et al., 2013) de que as mudanças económicas se repercutem negativamente, sobretudo, na saúde dos mais desfavorecidos. Contudo, este resultado de que os efeitos negativos na saúde mental dos mais velhos foram transversais a todas as classes sociais deve ser aceite com alguma prudência dadas as limitações da amostra. Os resultados também parecem mostrar que as mães foram as mais perdedoras com estas situações, embora não se possa afirmar com segurança que assim foi. Contudo, não se pode excluir esta possibilidade, dado que os cuidados (e preocupações) familiares continuam a ser protagonizados sobretudo pelas mulheres (Perista et al., 2016).
No que respeita ao segundo padrão, é de salientar a ausência de situações de emprego precário e de desemprego entre os filhos ou familiares. Coloca-se aqui a questão de saber se estes participantes também reportariam consequências negativas ao nível da saúde mental, caso estes pressupostos se verificassem. É uma questão para a qual não temos uma resposta cabal, embora os resultados obtidos apontem nesse sentido. Os participantes mais velhos aqui inseridos tiveram que proceder a “cortes” em diversos domínios das suas vidas (em virtude, nalguns casos, de cortes nas pensões), mas estes não se repercutiram negativamente nas suas condições de saúde. O facto de terem um perfil “Socialmente Vantajoso” ou “Misto/Intermédio” terá tido o seu contributo. Não se tratará tanto de uma questão de “resiliência individual” (Luthar et al., 2000), mas sobretudo da ausência de determinadas circunstâncias penalizadoras, principalmente por via das vidas dos seus familiares próximos. Mais uma vez, daqui sobressai a importância da interdependência entre percursos e trajetórias de vida de uns e percursos e trajetórias de vida de outros, isto é, entre práticas familiares de uns e práticas familiares de outros.
Notas Finais
Uma das principais limitações deste estudo prende-se com a amostra, principalmente com a baixa proporção de homens e com a circunscrição ao concelho de Faro. A relação de masculinidade desfavorável aos homens nas faixas etárias mais avançadas explica, em grande parte, a dificuldade em recrutar homens mais velhos para as pesquisas empíricas. A circunscrição da amostra a este concelho em específico, prende-se, sobretudo, com razões pragmáticas, pois a primeira autora trabalha no concelho de Faro. Estas limitações impõem cautelas no respeitante aos resultados que têm a ver com o papel do género e, para além disto, impedem também a análise do papel do território. Não obstante estas limitações, os resultados desta investigação qualitativa são um passo importante para a compreensão dos efeitos da crise e da austeridade nas vidas dos indivíduos mais velhos, mais especificamente nas condições de saúde destes, ainda que se reportem a uma saúde autopercebida. Para além disto, do ponto de vista das políticas públicas, estes resultados mostram-nos que devemos tirar ilações com os “erros” do passado não muito distante e, como tal, eleger a saúde mental dos mais velhos como uma das áreas prioritárias de intervenção em futuras crises económicas e evitar uma austeridade “cega” e com elevados custos sociais.