O envelhecimento saudável entre a política e a vida quotidiana
A recente proclamação das Nações Unidas da Década do Envelhecimento Saudável (2020-30) alerta para o facto de um envelhecimento saudável advir da realização de todas as capacidades das pessoas mais velhas, dos estilos de vida saudável, da literacia em saúde, dos cuidados integrados, dos cuidados de saúde primários, do acesso a cuidados continuados, da participação social ativa e do adequado investimento público na saúde e apoio social (World Health Organization (WHO), 2017, pp. iv-v).
Em face de uma emanação política (top-down), deve perguntar-se como ocorre o envelhecimento saudável à escala da vida quotidiana das pessoas mais velhas, isto é, como o público-alvo de uma política a adota à microescala, se há correspondências ou não; não as havendo, quais são as justificações dadas; e como a microescala pode afetar a macro (buttom-up)?
Em termos teórico-analíticos, interessa questionar se as sociedades reflexivas - e, portanto, as ações sociais reflexivas que nelas ocorrem - são a emanação linear dos conhecimentos científicos e políticos, e dos seus sistemas periciais (racionalidades, profissionais, práticas) (Giddens, 2000, 2005), em particular no campo da saúde (Carapinheiro, 1993, 2006, 2014)? Ou podem ser afetadas pelas aprendizagens sociais e culturais que se fazem ao nível da história de vida e numa escala microssocial como é a vida quotidiana? Nos campos da saúde e do envelhecimento saudável, em que ponto se cruzam e influenciam os sistemas periciais e a vida quotidiana? Ou, pelo contrário, continuam a ser dimensões separadas e em conflito? Que determinantes socioculturais influenciam a saúde das pessoas mais velhas? (Estes & Wallace, 2013; Frank et al., 2020; Gilleard & Higgs, 2013; Katz, 2013; Paúl, 1997; Persaud et al., 2021; Phillipson, 2013; Scrimshaw et al., 2021; Tien et al., 2020)?
Neste artigo, a partir de relatos sobre saúde e doença de um grupo de pessoas mais velhas (≥ 65 anos de idade), pretende-se criar e adotar dois modelos teórico-analíticos qualitativos que permitem demonstrar que (i) as sociedades e as ações sociais reflexivas são duais porque as aprendizagens sociais e culturais são influenciadas por qualidades históricas com temporalidades sociais diferentes, (ii) e a história de vida é um processo (trajetória) de aprendizagem prática dessas qualidades (João, 2005; Lechner, 2009).
Estes relatos foram recolhidos durante uma investigação etnográfica realizada num projeto europeu Horizon 2020, o projeto SHAPES (https://shapes2020.eu/), que teve como objetivo compreender a diversidade das pessoas mais velhas na Europa e que impacto poderá ter na utilização quotidiana de tecnologias digitais que promovem um envelhecimento saudável durante mais tempo e com melhor qualidade de vida.
Além desta introdução, o artigo está dividido em quatro momentos. O enquadramento teórico que sintetiza os grandes paradigmas socio-históricos de saúde, a teoria da dualidade estrutural e a da ação social, faz uma definição teórica do envelhecimento, e termina com a formulação da problemática. A metodologia que apresenta os objetivos da investigação etnográfica do projeto SHAPES, descreve o trabalho de campo da equipa portuguesa (Universidade do Porto), e justifica o processo de análise de conteúdo que se apresenta neste artigo. Os resultados e discussão que mostram como as ações sociais das pessoas mais velhas em saúde são influenciadas pelas aprendizagens cognitivas, sociais e culturais adquiridas ao longo da vida e à escala da vida quotidiana, tendo ora para a heterogeneidade, ora para a identidade de uma geração. E a conclusão que compara as dimensões que definem o envelhecimento saudável das Nações Unidas com as ações sociais do grupo das pessoas mais velhas analisado neste artigo.
Saúde, dualismo estrutural, ação social, reflexividade, envelhecimento
Na Europa, até ao séc. XVIII, a saúde era uma realidade mística-religiosa que resultava da relação do indivíduo e comunidade com o divino. A relação que se estabelecia entre o espírito e o corpo determinavam a saúde ou a doença, e os profissionais da religião e do místico formavam a autoridade que mantinha essa relação ‘saudável’. Existiam conhecimentos e práticas empíricas em botânica e anatomia, mas só acessíveis a pequenas franjas da população (Silva, 2004, 2012; Thane, 2005).
A passagem para o paradigma positivo-experimental decorreu durante o séc. XIX e inícios do séc. XX. A saúde e a doença assumiram um papel social e político na construção das sociedades modernas, tendo-se desenvolvido as primeiras tecnologias e biopolíticas de controlo médico-sanitário da população: biomedicina, saúde pública higienista e estatística; conhecimentos especializados e racionais sobre saúde/doença e cuidados de saúde (medicina, saúde pública), e os seus contextos de formação (universidades); reproduziram-se grupos socioprofissionais licenciados para o exercício (médicos, higienistas, farmacêuticos, estatísticos) e institucionalizaram-se os espaços-tempos desse exercício (hospitais, laboratórios, centros de estudos) (Evans, 1997; Foucault, 2008; Nascimento & Nogueira, 2014).
A partir da segunda metade do séc. XX até aos dias de hoje, a saúde tornou-se um campo estritamente científico, político e económico global. Cada vez mais, as novas biopolíticas são produzidas e reguladas por agências políticas transnacionais (WHO) e as novas tecnologias da saúde são mais ‘programáticas’ (vacinas RNA); estão dependentes de uma economia da saúde que controla o desenvolvimento de produtos e saberes diferenciados (indústria, investigação, inovação), a comercialização, a distribuição, o consumo dos cuidados de saúde (mercados) e o acesso e sustentabilidade dos prestadores de saúde (Sistemas Nacionais de Saúde); têm determinado a adoção de ‘novidades’ (biotecnologia, nanotecnologia, genética, tecnologias digitais) com impactos diferenciados tanto nos profissionais (formação, deontologia, heterogeneidade, aceitação) como nos cidadãos leigos (individualização, acessibilidade, literacias, crenças) (Crisóstomo & Santos, 2018; Luz, 2014).
Adicionalmente, as novas biopolíticas e tecnologias de saúde estão a acentuar as desigualdades no acesso à saúde devido a condicionantes estruturais, como a pobreza, religião, conflitos, alimentação, infraestruturas, iliteracia; a aumentar os fenómenos de injustiça social e legal relacionados com a exploração de recursos naturais e comunitários que suportam a inovação em saúde; e a ser confrontadas com novas necessidades de saúde pública, nomeadamente o envelhecimento saudável, as identidades de género, os movimentos migratórios e a emergência de paradigmas de vida naturalistas (Nunes, 2011; Pussetti & Barros, 2012).
O dualismo estrutural da ação social e a reflexividade como síntese de aprendizagens
A teoria do dualismo estrutural ajuda a perceber a coexistência de diferentes qualidades históricas (marcas que distinguem e igualam as temporalidades sociais) nas sociedades e nas ações sociais; e a criticar as conceções evolucionista e funcionalista que tendem a minimizar a heterogeneidade interna das sociedades que se manifesta num ‘compósito’ de interesses, estratégias, conflitos, interpretações e histórias de vida (Giddens, 2000; Medeiros, 1994; Nunes, 1964).
Uma análise dos dualismos da ação social reclama uma teoria da ação social cuja reflexividade não se esgote na racionalidade científico-política, mas a entenda como a síntese ativa e prática de todas as aprendizagens que integram o reportório do indivíduo (capital cognitivo, social, cultural) e que este usa para criar a inteligibilidade/significado da ação social. Um reportório/capital que atua como: uma “mente cultural” (Iturra, 1997), i.e., uma interação com a realidade que integra aprendizagens das interações, relações, regras, estruturas, hierarquias, saberes, memórias, costumes; um “habitus” que cultiva (capacita) o agente para uma ação inteligível aos olhos do outro e do próprio (Bourdieu, 2001, 2011); racionalidades “subjetivo-culturais do saber prático de saúde” (Silva, 2012); e que tem por referência o “cultural, contextual e conjuntural” (Caria, 2000), i.e., as aprendizagens práticas do dia a dia.
Nesta perspetiva, a ação social não dissocia o que é da ordem do histórico, social, cultural, contextual e conjuntural do que é da ordem do universal, político, cognitivo, racional e científico. A reflexividade atua como a capacidade de sintetizar, durante a prática, as aprendizagens acumuladas, independentemente da sua fonte (escola, trabalho, literatura, arte, família, religião) e temporalidade (passado, presente, futuro).
A ação social das pessoas mais velhas na saúde
No caso das pessoas mais velhas, as ações sociais têm de ser interpretadas à luz de um processo de envelhecimento que, de acordo com a investigação em gerontologia e geriatria, é irreversível e afeta a saúde, a atividade física e a rede social no sentido da propensão para morbilidades, comorbidades, perda de autonomia e independência, isolamento e solidão; pode trazer ganhos como sabedoria, tempo livre, participação social, pertença à comunidade e um sentido transcendente para a vida; e, por fim, esta dicotomia (perda vs ganho) não é universal e linear, mas condicionada pelas inter-relações entre as estruturas bio-psico-socio-cultural (Dannefer & Phillipson, 2013; Kane et al., 2013).
Em particular, as ações sociais na saúde - a prática do envelhecimento saudável - são construídas por fatores biológicos (genéticos, epigenéticos), psicológicos (perturbações neurocognitivas), parapsicológicos (espiritualidade, experiências de quase morte), sociais (rede de suporte), económicas (acessibilidade, rendimento) e culturais (literacia, religião, tradições).
Nas sociedades complexas, como as europeias, as pessoas mais velhas têm de lidar com a sua saúde através de um ‘emaranhado’ macrossocial composto por organizações, grupos, práticas, relações, estratégias, cânones, conhecimentos, conflitos, desigualdades, reivindicações e inovações; mas, também, microssocial formado pelas suas próprias história de vida e comunidade(s) de pertença, experiências, sociabilidades, estilos de vida, auto e hétero perceções, aprendizagens, saberes, rotinas, rituais, crenças e predisposições (Beech et al., 2021; Calderón-Larrañaga et al., 2021; Cohn-Schwartz et al., 2021; Cudjoe et al., 2020; Ellwardt, 2021; França, 2014; Gilson, 2020; Martin et al., 2021a, 2021b; Ng et al., 2021; Lima-Costa, 2018; Sousa & Silva, 2020; Steptoe & Zaninotto, 2020; Yanguas, 2018).
Estudo etnográfico com pessoas mais velhas: Trabalho de campo e análise de conteúdo
No projeto SHAPES, foi realizada uma investigação etnográfica pan-Europeia para compreender a diversidade das identidades, histórias de vida, quotidianos, perceções, representações e sentidos para a vida das pessoas mais velhas na Europa. Participaram 94 pessoas (38 homens, 56 mulheres), com uma média de 75 anos de idade, oriundos de 8 países europeus (República Checa, Finlândia, Alemanha, Grécia, Itália, Irlanda do Norte, Portugal, Espanha); 47 % viviam com parceiros (esposa, esposo), 39 % sozinhas e 14 % com a família mais alargada (filhos, netos); metade vivia em zonas urbanas ou periurbanas, a outra em zonas rurais; 56 % residia em moradias, 41 % em apartamentos e 3 % viviam em estruturas residenciais para idosos.
A investigação foi liderada pela Universidade de Maynooth (Irlanda) que desenvolveu o protocolo, garantiu os requisitos éticos e acompanhou o trabalho de campo das equipas locais através de reuniões mensais (videochamadas). Devido à Pandemia da Covid-19, o método de recolha de dados foi a entrevista etnográfica com 9 temas: Covid-19; História de Vida e Identidade; Família, Vizinhança, Comunidade; Quotidiano; Trabalho; Casa, Objetos e Tecnologia; Saúde, Cuidado, Bem-Estar; Futuro.
Cada caso de estudo (participante) teve uma abordagem singular da entrevista. Por isso, as entrevistas foram longas/curtas, presenciais/distância, em espaços fechados/abertos, mais/menos estruturadas, com/sem registo fotográfico, notas de campo e observação participante, tiveram um/mais momentos de interação, mais/menos ‘presas’ aos temas e guião.
Trabalho de campo: Entrevista etnográfica em Portugal
O trabalho de campo da Universidade do Porto desenvolveu-se com 10 participantes (casos de estudo), recrutados com 5 critérios: ter ≥ 65 anos de idade; não ter perturbações neurocognitivas; assinar consentimento livre e informado; estar preparado/a para a conversação online (Skype, Zoom); e não conhecer previamente o investigador. Participaram 6 mulheres e 4 homens, entre os 65 e os 81 anos de idade; 8 pessoas da Área Metropolitana do Porto (Porto, Matosinhos, Maia) e 2 do distrito de Aveiro (Estarreja, Ílhavo); 6 tinham o Ensino Superior e 4 o Ensino Básico ou antigo Liceu (7.º ano).
A entrevista etnográfica ocorreu através de conversas longas entre o investigador e os participantes, com vários momentos de conversação. À exceção de duas pessoas que optaram por participar através de videochamada, as outras optaram pelo presencial, mesmo tendo experiência em videochamada. As entrevistas presenciais decorreram nas casas dos participantes e em espaços públicos (parques, esplanadas, na universidade).
Todas as entrevistas foram gravadas com a permissão dos participantes, ora assinada no consentimento informal, ora manifestada oralmente no início da entrevista. Os registos áudio foram transcritos e anonimizados, e essas versões foram validadas pelos participantes. As demais versões e registos áudio foram destruídas. As versões validadas foram traduzidas para inglês e integram a base de dados para futuras investigações. Entre agosto de 2020 e outubro de 2021, foram gravadas e transcritas 62 horas de conversação que resultaram de 32 interações (conversas) que, por cada participante, variaram entre 3 e 14 horas e 1 a 6 interações.
Análise de conteúdo: Sinopses e modelos teórico-analíticos
As transcrições validadas estão, agora, a ser objeto de análise de conteúdo indutiva, descritiva e interpretativa (Bardin, 1994; Demazière & Dubar, 1997; Poirier et al., 1999). Num primeiro momento, houve uma análise internacional através do software NVivo, da qual resultou o relatório “Understanding older people: Lives, communities and contexts” e as “SHAPES stories”, disponível no website do projeto. Posteriormente, cada equipa local foi convidada a analisar as próprias transcrições, com o objetivo de aprofundar a compreensão local e propor modelos analíticos e problemáticas.
Atualmente, a equipa da Universidade do Porto está a fazer a primeira análise de todas as entrevistas sem recurso ao software NVivo, mas através da sua leitura aprofundada. Da leitura inicial, isolaram-se os relatos da temática “saúde”, os quais foram reduzidos a sinopses que visam identificar o que cada participante disse sobre a sua relação quotidiana com a saúde e doença. Cada sinopse está numerada (C1), tem uma cor que permite identificá-la nos modelos (Azul), o pseudónimo (Alberto), a idade correta do participante à data da entrevista (71 anos), e o mês/ano em que esta foi realizada (agosto 2020) (Tabela 1).
C1. Alberto, 71 anos, território periurbano, agosto 2020 Sou um cidadão com uma saúde física debilitada, mas em plenas faculdades intelectuais. A médica é uma pessoa fantástica e tenho relação direta com ela através de email. O meu médico é meu grande amigo, ligou ao colega e disse “vai para aí um paciente meu”. Portanto, isto é uma teia. Uso a aplicação SNS24. Uso o privado para os dentes e outras especialidades, mas hospitais privados não, porque tratam a saúde como mercadoria. |
C2. Leonor, 66 anos, território urbano, agosto 2020 Felizmente, tenho saúde e posso fazer coisas que sejam úteis à sociedade e à minha cabeça. As rotinas fazem-me bem à saúde física e mental. A saúde resolvo-a bem, porque tenho a sorte de ter uma médica de família que era a médica da minha mãe e conhece-nos há muitos anos, conhece as doenças de família. Tenho uma boa relação próxima com um enfermeiro do centro de saúde, que também escreve no Facebook, porque começou a carreira dele comigo ali na minha escola. Também peço opiniões a um familiar que é médico, e tenho muita confiança nele. |
C3. Rosa, 73 anos, território periurbano, agosto 2020 Graças a Deus, tenho saúde para dar e vender. Quando estou doente, bebo uma cachaça quente com mel e uma aspirina. Mas a cachaça tem de ser aquecida numa caneca de bronze, senão não funciona. Se continuar assim, vou ao meu médico de família e como tenho ADSE, nem tenho de estar na fila do centro de saúde, e morrer ali como outros. E vivo assim, não preciso de tomar medicamentos. Mas nunca se sabe, por isso tomo aquelas vitaminas que se vendem na televisão e faço as minhas caminhadas diárias. |
C4. Ana, 69 anos, território urbano, dezembro 2020 Ter saúde? Às vezes, estamos bem e depois estamos mal. Não gosto muito de estar sempre a falar em doenças, faz-me mal. Quando estou doente, vou ao médico. Se não gosto desse, vou a outro, ao lado. Tive um médico de família muitos anos e depois passei a ter outro. Acho que eles deviam partilhar as nossas informações uns com os outros, se for para o nosso bem. Quando é doenças de mulheres, vou a uma ginecologista porque gosto muito dela e sinto-me mais à vontade. |
C5. Luís, 70 anos, território urbano, fevereiro 2021 Tenho a sorte de viver num país com um sistema nacional de saúde público, privado e cooperativo. Como fui funcionário do Estado, tenho a ADSE. Para algumas coisas, uso o público, para outras, o privado. Às vezes, dói-me a cabeça ou tenho um desarranjo intestinal. Não vou logo ao médico. Antes, faço uma análise, o que comi, o que fiz. Muitas vezes, acerto. Quando não acerto, aconselho-me com as pessoas que me rodeiam. Só tomo um medicamento para o sono, e não confio nas tecnologias e nas indústrias da saúde que me querem impingir uma saúde que eu não tenho de ter, com a minha idade e condição física e psicológica. |
C6. Lígia, 75 anos, território urbano, março 2021 Não tomo medicamentos porque não tenho problemas de saúde. Mas, sei que o organismo se degrada e que, hoje, canso-me com mais facilidade. Nesta altura (Pandemia da Covid-19), preciso de um medicamento, mando um email. É uma questão de bom-senso. Quando não consigo mandar um email para o centro de saúde, porque a caixa está cheia, mando diretamente para a enfermeira. De repente, começou-me a aparecer uma dor insuportável na coxa. Comecei a pensar, “queres ver que isto é uma artrose”, e fui direitinha à médica e ela manda-me fazer uma radiografia. Mas não alinho nas fantochadas das notícias; admito que há um vírus, mas não sair de casa, usar máscara na rua, uma vacina feita em um ano, eu acho isso uma fantochada tremenda. |
C7. Olga, 74 anos, território urbano, março 2021 Com a minha médica de família, faço o que quero. Quero fazer um exame, ela manda-me. Ligo-lhe para casa porque ela me autorizou. Acho um abuso, mas é uma maravilha. Não tomo medicamentos. Sou anti medicamentos. Mesmo antes da Pandemia (Covid-19), fui à médica e disse “doutora, quero fazer uma endoscopia” e ela, “se quer, faça”. Foi-me detetado um linfoma. O médico disse que não era preciso quimioterapia, mas mesmo que dissesse que sim, eu não fazia. Só vou ao médico quando estou mesmo a morrer. Mas vou sempre ao homeopata. Ele avalia-me totalmente, pede-me os exames que faço, prepara-me os medicamentos, modificou a minha alimentação toda, e estou bem assim. Gasto um bocadinho porque os medicamentos e as consultas são caros. |
C8. Ivo, 81 anos, território urbano, abril 2021 Há pessoas com 80 anos que não fazem o que eu faço. Quando apareceu o Bungee Jumping aqui, fui logo. Só não faço mais porque a minha mulher me travou. Mas mantenho-me em forma. Todos os dias vou ao ginásio aqui em casa e temos uma alimentação saudável. Sinto-me indestrutível. Acontece aos outros, mas a mim não. Tenho um seguro de saúde que cobre tudo. Pago-o, mas cobre tudo e gere toda a minha saúde. A gente paga, temos direito a tudo, sempre que quiser, vou ao privado, ou vou ao público. Quando vou ao sistema nacional de saúde, tenho de andar em filas, e no privado, quando quero, é na hora. É egoísmo, mas tem de ser. No privado, tenho telemedicina, no público não. Se ligasse para o público, só daqui a 3 anos. Mas das vezes que necessitei, impecáveis. Estive internado um mês no público e uma limpeza incrível, enfermeiras impecáveis, casa de banho impecável. Um médico tem de ser um amigo, um padre. |
C9. Carla, 65 anos, território urbano, outubro 2021 Com a Pandemia, parei, mas ia anualmente ao centro de saúde para manter a ligação ao centro de saúde e levar o que fizesse em médicos fora. Agora, anda tudo à rasca e pensei “deixa ir quem precisa ao centro de saúde, eu como vou fora, daqui a algum tempo eu vou lá”. Porque tenho a ADSE e vou a um médico no privado, de meio em meio ano. Graças a Deus, só preciso de ortopedista porque tenho uma estrutura óssea má. Com esses médicos, tenho uma relação cordial, de simpatia. É muito bom. De resto, faço uma alimentação saudável: é preciso comer carne, peixe, hortaliça, sopa, fruta, pouco pão, arroz, batatas. Com a doença, não é preciso entrar logo em pânico. Respirar fundo, esperar um dia e se continuar doente, vamos às urgências do hospital. |
C10. Carlos, 71 anos, território urbano, outubro 2021 Quando comecei a urinar sangue, fui ao médico no centro de saúde, que me disse “tem de ser já operado” e começou a aconselhar-me clínicas privadas. Não gostei e fui a um médico no privado, que me disse a mesma coisa e mandou-me para o público. Fui operado por ele no público e até lhe disse, “Sr. Dr., quem tem amigos não morre na prisão”. Mas desde que mudei para este centro de saúde, a médica de família tem sido 100 %. Marca consultas, manda análises e receitas por email. Mas deu-me um raspanete porque não tenho nada na ficha clínica de ter sido operado. |
Esta análise revelou uma diversidade de práticas e ideias em relação à saúde e doença, com alguns pontos em comum. Para compreender esta diversidade e semelhanças, foram construídos dois modelos teórico-analíticos com base na história dos paradigmas da saúde e nas teorias da dualidade e ação social.
O primeiro modelo é constituído por dois planos de observação. Um plano horizontal formado por tempos (virtuais) de uma trajetória de vida, distinguidos em função da idade legal da maioridade (18 anos), vida profissional e entrada para a reforma (ou pré-reforma). E um plano vertical formado pelas qualidades das estruturas sociais, económicas e culturais consideradas pela teoria do dualismo (género, território, economia doméstica, escolarização, profissão, agregado doméstico; rural/urbano, agricultura/indústria, ensino básico/liceal/superior, setor económico da profissão, número de filhos), e outras consideradas na história da saúde recente, como os sistemas de cuidados de saúde e de proteção social (público, privado, ambos). A interseção destes planos descreve a trajetória estrutural de uma história de vida, derivando daí a mobilidade social e os capitais adquiridos (Figura 1).
O segundo modelo, também, é constituído por dois planos: um plano horizontal formado pelas temporalidades sociais clássicas (pré-modernidade, modernidade, pós-modernidade), tempo histórico (passado, presente, futuro) e qualidade estrutural no presente (tradição, transição, inovação). E um plano vertical formado pelas qualidades históricas de cada temporalidade, ora no campo específico da saúde, ora no campo geral da sociedade, económica e cultura. A interseção dos planos discrimina quatro temporalidades sociais: temporalidade 1 (pré-modernidade e preserva a tradição); temporalidade 2 (modernidade emergente e inova a tradição); temporalidade 3 (modernidade hegemónica e preserva a inovação); e temporalidade 4 (pós-modernidade e afirma a inovação futura). Este modelo tem um instrumento de avaliação do nível da ação social em cada temporalidade, distinguindo: a ação social dominante quando as qualidades de uma temporalidade são centrais na ação/pensamento do seu agente; uma ação estratégica quando estas são usadas para complementar a temporalidade dominante; e uma ação secundária quando as qualidades são usadas como ‘último recurso’ (Figura 2).
Ações sociais das pessoas mais velhas na saúde: Histórias de vida e qualidades históricas
Quem nasceu, em Portugal, durante a 1.ª metade do séc. XX (e ainda não morreu), vive numa “sociedade dualista em evolução” (Nunes, 1964) e a sua história de vida está, direta ou indiretamente, ligada à transição entre uma sociedade predominantemente pré-moderna para outra predominantemente pós-modernas. Não obstante, a sociedade portuguesa mantém características sociais, económicas e culturais de uma “semiperiferia no sistema mundial” (Santos, 1985; Santos & Reis, 2018), em particular o desenvolvimento segmentado e descontinuado que dá origem a um ‘Portugal’ de diferentes ‘Portugais’ (Mateus, 2013; Rocha-Trindade, 1987; Silva, 1998, 2012).
Histórias de vida numa sociedade dualista em evolução
As histórias de vida dos casos de estudo mostram como a sociedade dualista em evolução se materializou em trajetórias estruturais que, atualmente, caracterizam uma geração em Portugal: infâncias em ambiente rural (C:2,3,5,6,7,8,9) e urbano (C:1,4,6,7,10); transição para o ambiente urbano ao longo da vida (C:1-10); economias domésticas das famílias agrícola, comercial (C:1,2,4,3,8,9) e industrial (C:1,2,4,6,8,9), e a transição predominante para a economia de serviços (C:2,3,4,5,6,7,9); escolarização polarizada entre qualificações básica/média (C:2,3,7,10) e superior (C:1,2,5,6,8,9); prevalência de agregados familiares com filhos (C:1,3,4,5,6,8,9,10), e a tendência clara para a redução do número de filhos; idade de reforma simetricamente distribuída entre 50-60 anos de idade para as mulheres (C:2,3,6,7,9) e os 60-70 anos de idade para homens(C:1,4,5,8,10); um acesso universal aos sistemas públicos de pensões e de saúde (C:1-10), e uma tendência para a privatização da saúde (determinada pelo número participantes integrados no subsistema da ADSE que permite o acesso aos prestadores privados e públicos de saúde) (Figura 1).
A partir de relatos autobiográficos das entrevistas etnográficas, verifica-se que as histórias de vida de uma geração são heterogéneas devido à permeabilidade das qualidades históricas do tempo, em particular, das estruturas sociais, na definição das trajetórias. A mesma geração viveu em:
Comunidades com economia rural, uma infraestruturação básica ou inexistente (energia, saneamento, equipamentos e serviços públicos básicos), isolamento social, elevado índice de emigração, onde predominam o analfabetismo e os papeis sociais e os valores culturais tradicionais: “Nós vivíamos numa aldeia sem luz, sem água… com gente que vivia do pastoreio… então vivia a sobrinha do padre também… o meu tio era um padre muito fora do comum, eu acho que adquiri isso um bocadinho dele” (C6).
Pequenos aglomerados urbanos, com uma economia industrial e terciária, com infraestruturação média e acessível (energia, saneamento, equipamentos e serviços públicos básicos, comunicação, digitalização), densidade populacional, onde predominam as qualificações médias e técnicas, a mobilidade social ascendente, e coexistência entre papeis sociais e os valores culturais mais tradicionais e modernos: “Sou natural de Lisboa, o meu era contabilista e influenciou-me a ir para o técnico e tirar engenharia” (C1).
Centros urbanos metropolitanos, cosmopolitas e multiculturais, uma infraestruturação (energia, saneamento, equipamentos e serviços, comunicação, digitalização), densidade e atratividade populacional crescente, onde predominam elevadas qualificações, a mobilidade social ascendente advém, e coexistem vários papeis e valores sociais e culturais: “Fui para a Bélgica e então formei-me em química. Foi uma experiência ótima, porque na Universidade onde eu estava havia 30 ou 40 nacionalidades diferentes… fiquei amigo deles, olhe um deles chegou a ser embaixador” (C8).
E em comunidades migrantes espalhadas por todo o mundo, em que coexistem os papeis sociais e os valores culturais mais tradicionais com os papeis, valores e desenvolvimentos sociais, culturais e económicos dos países de migração: “O meu pai disse que eu ia para a Alemanha. O meu pai já tinha contactos com ele, às vezes ao fim de semana encontravam-se, iam a casa um do outro, com as esposas… a minha mãe… o meu cunhado disse ‘tens de conhecer o meu irmão’, porque o meu marido jogava futebol lá” (C5).
Qualidades históricas das ações sociais na saúde
A análise das sinopses dos casos de estudo mostra como as ações sociais em saúde podem ser permeáveis a diferentes qualidades históricas, mas também que a permeabilidade está relacionada com a trajetória estrutural da história de vida (Figura 2).
As qualidades da temporalidade 3 são dominantes para a maioria dos casos de estudo (C:1,2,4,5,6,9,10), em particular o acesso aos serviços de saúde, aos produtos farmacêuticos e dispositivos médicos: “Uso a aplicação SNS24. Uso o privado para os dentes e outras especialidades, mas hospitais privados não, porque tratam a saúde como mercadoria” (C1); “A saúde resolvo-a bem, porque tenho a sorte de ter uma médica de família que era a médica da minha mãe e conhece-nos há muitos anos, conhece as doenças de família” (C2); “Tenho a sorte de viver num país com um sistema nacional de saúde público, privado e cooperativo” (C5).
As qualidades da temporalidade 2 são estratégicas para a maioria dos casos e usadas como reforço das qualidades da temporalidade 3 (C:2,3,4,5,6,8,9,10), nomeadamente a alimentação e a atividade física: “As rotinas fazem-me bem à saúde física e mental” (C2); “Não gosto muito de estar sempre a falar em doenças, faz-me mal” (C4); “Faço uma alimentação saudável: é preciso comer carne, peixe, hortaliça, sopa, fruta, pouco pão, arroz, batatas. Com a doença, não é preciso entrar logo em pânico. Respirar fundo, esperar um dia e se continuar doente, vamos às urgências do hospital” (C9).
As qualidades da temporalidade 4 são secundárias para a maioria das pessoas e usadas para ter um acesso individualizado às qualidades das temporalidades 3 e 2 (C:2,4,5,6,10): “Nesta altura (Pandemia da Covid-19), preciso de um medicamento, mando um email. É uma questão de bom-senso” (C6); “Marca consultas, manda análises e receitas por email” (C10).
A Figura 2permite observar casos de estudo em que a ação social dominante mobiliza ora as qualidades da temporalidade 1 (místico e religioso), ora da 2 (naturalismo e biopolítica), ora da 4 (mais avançadas tecnologias da saúde e individualização dos cuidados): “Quando estou doente, bebo uma cachaça quente com mel e uma aspirina” (C2); “Só vou ao médico quando estou mesmo a morrer. Mas vou sempre ao homeopata” (C7); “No privado, tenho telemedicina, no público não. Se ligasse para o público, só daqui a 3 anos” (C8).
A análise, também, permite compreender relações entre as histórias de vida e as ações sociais em saúde. Os casos em que as ações sociais dominantes se posicionam na temporalidade 3, viveram uma estrutura económica familiar ligada à propriedade agrícola, comércio e serviços (pequena burguesia), concluíram o ensino superior, trabalharam nos serviços ou na indústria, vivem em contexto urbano, e têm um sistema de proteção social e de saúde público que dá acesso a prestadores de cuidados de saúde públicos e privados (C:1,2,5,6,9).
Nestes casos, o capital económico, social e cultural explica o recurso às temporalidades 2 e 4: têm capital financeiro e cultural para aceder a bens e serviços de bem-estar, nalguns casos financiado pelo subsistema de saúde (ADSE); e têm uma rede social informal que inclui profissionais de saúde especializados que aumenta o acesso individualizado ao sistema de saúde: “O meu médico é meu grande amigo, ligou ao colega e disse ‘vai para aí um paciente meu’. Portanto, isto é uma teia” (C1); “Felizmente tenho saúde e posso fazer coisas que sejam úteis à sociedade e à minha cabeça. As rotinas fazem-me bem à saúde física e mental. Tenho uma boa relação próxima com um enfermeiro do centro de saúde porque começou a carreira dele comigo” (C2); “Como fui funcionário do Estado, tenho a ADSE. Para algumas coisas, uso o público, para outras, o privado. Quando não acerto, aconselho-me com as pessoas que me rodeiam” (C5); “Comecei a pensar, ‘queres ver que isto é uma artrose’, e fui direitinha à médica e ela manda-me fazer uma radiografia” (C6); “De resto, faço uma alimentação saudável: é preciso comer carne, peixe, hortaliça, sopa, fruta, pouco pão, arroz, batatas” (C9).
O caso em que ação social dominante se posiciona na temporalidade 1, viveu uma estrutura económica familiar ligada à agricultura (campesinato) com experiência de trabalho infantil, teve a escolarização básica (obrigatória) e uma carreira ligada aos serviços públicos da administração local, a qual garante um subsistema de saúde (ADSE) que dá acesso a prestadores de saúde públicos e privados. Este caso mostra como o acesso (gratuito ou a baixo custo) a sistemas de saúde não é, necessariamente, um requisito para a sua utilização dominante; que a sua utilização secundária é determinada pelo acesso generalizado a todos os prestadores de saúde (públicos, privados) e, também, pela experiência de falhas generalizadas no sistema público (tempo de espera, falta de médicos de família); e que as aprendizagens sociais e culturais complementam os sistemas periciais: “Graças a Deus, tenho saúde para dar e vender. Quando estou doente, bebo uma cachaça quente com mel e uma aspirina. Mas a cachaça tem de ser aquecida numa caneca de bronze, senão não funciona. Se continuar assim, vou ao meu médico de família e como tenho ADSE, nem tenho de estar na fila do centro de saúde, e morrer ali como outros” (C2).
O caso em que a ação social dominante se posiciona na temporalidade 2, viveu uma estrutura económica familiar ligada à servidão (emprega doméstica), teve uma escolarização média e uma carreira ligada ao comércio (empregada de balcão), a qual garante um sistema público de proteção social e de saúde que permite recorrer apenas aos prestadores de saúde públicos. Este caso mostra que o acesso aos sistemas de saúde não tem de ser prioritário, mesmo quando os capitais económico, social e cultural são baixos: “Sou anti medicamentos. Foi-me detetado um linfoma. Só vou ao médico quando estou mesmo a morrer. Mas vou sempre ao homeopata. Ele avalia-me totalmente, pede-me os exames que faço, prepara-me os medicamentos, modificou a minha alimentação toda, e estou bem assim. Gasto um bocadinho porque os medicamentos e as consultas são caros” (C7).
O caso em que a ação social dominante se posiciona na temporalidade 4, viveu uma estrutura familiar ligada à propriedade agrícola e comercial (média/alta burguesia), fez o ensino superior em universidades estrangeiras, teve uma vida profissional ligada à gestão e administração, que assegura um sistema de pensões e de saúde tanto privado (predominantemente) como público. Este caso mostra como a relação entre sistemas de proteção social e de saúde privados e públicos se articulam para alcançar as mais avançadas tecnologias de saúde e a individualização dos cuidados de saúde, mas está dependente de muito capital financeiro ao longo da vida: “Tenho um seguro de saúde que cobre tudo. Pago-o, mas cobre tudo e gere toda a minha saúde. A gente paga, temos direito a tudo, sempre que quiser, vou ao privado ou vou ao público. Quando vou ao SNS, tenho de andar em filas e no privado, quando quero, é na hora. É egoísmo, mas tem de ser. No privado, tenho telemedicina, no público não. Se ligasse para o público, só daqui a 3 anos” (C8).
A ação social na saúde das pessoas mais velhas: Heterogeneidade e identidade geracional
A análise das histórias de vida mostrou que, desde os anos 40 do séc. XX até aos dias de hoje, não existiu um processo de mobilidade social ascendente significativa. Pelo contrário, houve a manutenção dentro da mesma classe social, com melhorias internas nas condições de classe, nomeadamente pela via do trabalho e do acesso a serviços públicos universais. Portanto, os casos com piores condições de vida na infância foram os casos com piores condições de vida na vida adulta e no envelhecimento, à exceção do acesso aos sistemas de pensões e de saúde (que são públicos e universais).
Na mesma lógica, a análise das qualidades históricas das ações sociais demonstrou que os posicionamentos nas temporalidades sociais estavam relacionados com a história de vida, no sentido de que quanto mais alta era a classe social a que se pertenceu ao longo da vida, mais ‘futurista’ era a temporalidade da ação social dominante, e o contrário também.
Apesar da heterogeneidade social do grupo, a análise dos conteúdos das sinopses mostrou pontos em comum, nomeadamente as representações e práticas em relação aos sistemas periciais de saúde (racionalidade e prestadores de saúde): a ideia de que a racionalidade médica não é o único garante de uma boa saúde e que deve ser completada com atividade física e boa nutrição; a perceção de que a racionalidade médica só tem de ser mobilizada para resolver a doença aguda, enquanto a atividade física e a nutrição são cuidados preventivos; a ideia de que as falhas do sistema nacional de saúde público justificam a adoção de estratégias individualistas para aceder aos seus serviços e profissionais, sobretudo usar a rede social para aceder a serviços e opiniões profissionais (quando esta é constituída por profissionais de saúde).
Esta análise sustenta a ideia de que a geração das pessoas mais velhas que nasceu, em Portugal, entre os anos 30 e 50 do séc. XX, é socialmente heterogénea devido a histórias de vida que não tiveram um sentido convergente, mas reproduziram as divergências históricas. Ainda hoje, a sociedade dualista em evolução reproduz os dualismos estruturais da sociedade portuguesa. Ao transportar as qualidades históricas para o presente, essa reprodução determina as aprendizagens cognitivas, sociais e culturais que os indivíduos fazem ao longo da história de vida e, portanto, a reflexividade inerente à ação social.
A análise dá conta de uma identidade dentro da heterogeneidade geracional, nomeadamente na forma como se constroem as interações entre um ‘Nós’, que advém das aprendizagens da história de vida e a sua aplicação na vida quotidiana, e um ‘Outro’, que advém sistemas periciais em saúde formados pelas racionalidades científico-políticas e os prestadores formais de saúde. Percebe-se que nesta situação, as ações sociais das pessoas mais velhas tendem para o sentido prático (de se tornar inteligível para o ‘Outro’ e inteligente para o ‘Nós’), independentemente da heterogeneidade que diferencia os agentes.
Conclusão: Envelhecer com a melhor da saúde
A Década do Envelhecimento Saudável será relevante se, também, impulsionar o conhecimento e as políticas sobre as práticas/saberes que as pessoas mais velhas usam no seu dia a dia para assegurar a saúde durante o envelhecimento, sobretudo quando os sistemas periciais falham ou são insuficientes. Para tal, não basta anunciar uma racionalidade e política única para definir o envelhecimento saudável, mas conhecer a diversidade das práticas e das representações em relação à saúde e à doença que advêm do grupo social e geracional constituído pelas pessoas mais velhas (≥ 65 anos de idade), analisando a construção social e histórica das racionalidades subjacentes.
À escala da vida quotidiana, isto é, das práticas rotineiras do dia a dia, o envelhecimento saudável pode acontecer sem todas as características apontadas pelas Nações Unidas, e, nalguns casos, como uma resposta direta à sua ausência. Ao nível da ação social, as variações à política devem ser objeto de estudo para: (i) compreender em que pontos a política do envelhecimento saudável não está a chegar, efetivamente, à vida das pessoas mais velhas; (ii) saber quais são as soluções práticas para manter o envelhecimento saudável; (iii) e criar racionalidades multiculturais que integrem as práticas quotidianas das pessoas mais velhas e as emanações políticas e científicas em saúde.
Quando se compara as emanações políticas do envelhecimento saudável das Nações Unidas com as ações sociais em saúde dos casos de estudo, verifica-se uma conformidade quando se trata da realização das capacidades, ter estilos de vida saudável e promover participação social; e, pelo contrário, desconformidade quando se trata da relação com os sistemas periciais de saúde (racionalidades, organizações).
Nas dimensões em que há uma conformidade entre política e ação social, verifica-se uma maior heterogeneidade na ‘tecedura’ que os casos de estudo fazem das qualidades históricas que formam a reflexividade da ação social, associada a diferentes histórias de vida na mesma geração. Nas dimensões que há uma desconformidade entre política e ação social, verifica-se uma maior identidade no posicionamento nas qualidades históricas que determinam a reflexividade da ação social, associada ao conflito entre as aprendizagens de uma história de vida, sintetizadas na ação social pela reflexividade, e as práticas e racionalidades dos sistemas periciais.
Portanto, há mais heterogeneidade geracional nas ações sociais do envelhecimento saudável relacionadas com promover capacidades individuais, estilos de vida saudável e participação social; enquanto há mais identidade geracional quando se trata de relacionar-se, na prática, com os sistemas periciais de saúde, tanto as racionalidades como as organizações. As ações sociais das pessoas mais velhas procuram, no dia a dia (na vida quotidiana), envelhecer com a melhor da saúde, mobilizando todas as aprendizagens adquiridas ao longo da vida para tornar inteligente e inteligível a sua relação prática com as realidades da saúde, doença e dos cuidados de saúde.