Introdução
As paisagens religiosas brasileira e portuguesa vêm atravessando diferentes realidades ao longo dos séculos, resultando em contextos condizentes com as mudanças ocorridas no cenário religioso, não só de ambos os países, mas de todo o globo. A religião e as práticas religiosas vêm sofrendo drásticas modificações, evidenciando o quão dinâmica tornou-se esta questão, que passa a operar até mesmo com uma lógica de mercado (Vilaça, 2016). O Brasil, nas últimas décadas, assumiu uma posição até então desconhecida, ao tornar-se uma influência direta para a expressiva mudança na paisagem religiosa de Portugal, através da transnacionalização (Oro, 2013) e da missão invertida (Freston, 2010) que proporcionam uma inversão do mapa mundial, provendo de baixo e reconquistando os países que outrora disseminaram a sua religião, resultando assim numa expansão, principalmente nos grandes centros urbanos, tais como Lisboa e Porto.
Abordagem metodológica
O contexto religioso possui uma interligação com a questão migratória, em que Portugal, para os brasileiros, é não só um país de mesma língua e cultura relativamente próxima, mas também a porta de entrada para outros países da Europa (Gracino Junior, 2011). Neste contexto, questiona-se: de que forma os elementos de uma prática religiosa influenciam e/ou relacionam-se com os percursos de vida dos jovens brasileiros migrantes em Portugal?
Alicerçada numa revisão bibliográfica das paisagens religiosas brasileira e portuguesa, com uma subsequente abordagem da questão migratória existente entre ambos os países e sob a perspectiva de uma produção epistemológica qualitativa que valoriza as narrativas individuais e fontes primárias (Montagner, 2007), esta investigação se alinha numa perspectiva teórica e metodológica de uma microssociologia. Lahire (2005) afirma que esta tem como principal interesse compreender as bases individuais que atravessam os indivíduos e os influenciam, em diferentes contextos, cenários e instituições, em relação ao mundo social, que não está reduzido apenas ao geral e coletivo, mas também se apresenta a partir do individual, nas singularidades de cada indivíduo.
Foram selecionados - considerando a questão norteadora acima - três jovens da área metropolitana de Lisboa. Estes jovens sujeitos, identificados em visitas de campo a Igrejas evangélicas em Lisboa, participaram de duas entrevistas em profundidade, conduzidas a partir de um guião previamente elaborado no âmbito da realização de uma investigação de doutoramento em Sociologia, entre os anos de 2019 e 2021, em que recorreu-se às vantagens da pesquisa qualitativa que possibilita uma interação espontânea entre pesquisador e pesquisado (Becker, 1994).
Paisagem religiosa brasileira
Desde o Brasil colônia, os fluxos migratórios são significativos para compreendermos a formação e influência religiosas no país, que vivencia um sincretismo em que vários cultos possuem múltiplas influências e práticas, gerando assim um campo devocional singular. Podemos destacar a predominância do catolicismo europeu e das práticas religiosas africanas e indígenas no contexto brasileiro. Neste sentido, Alves et al. (2017, p. 216) apontam que, “com a miscigenação e o sincretismo religioso, as terras brasileiras tornaram-se palco do encontro de três grandes tradições culturais: a católica europeia, a nativa das Américas e a africana”. Diversificadas manifestações culturais e religiosas possibilitaram uma mescla entre o sagrado e o profano, entre deuses e demónios (Ruuth & Rodrigues, 1999). Tal miscigenação deve ser compreendida e analisada também a partir do genocídio, etnocídio e extermínio dos povos originários, bem como da escravização de diferentes povos africanos (Nascimento, 2016), compondo assim o contexto cultural e social da realidade brasileira.
O Brasil possui um expressivo contingente populacional católico, sendo o catolicismo uma religião tradicional que foi imposta durante o processo de colonização. Porém, atualmente, chama a atenção na paisagem religiosa brasileira devido ao seu constante decréscimo, principalmente em relação à perda de fiéis para as denominações evangélicas e para a categoria dos ‘sem religião’ (Almeida & Monteiro, 2001; Alves et al., 2017; Mariano, 2013b). Em 1980, os católicos correspondiam a 89,2 % da população brasileira, sendo em 2010 64,6 % (Alves et al., 2017; Mariano, 2013b), com um evidente processo de decréscimo ano após ano.
Em oposição ao cenário de declínio católico, os evangélicos vêm ocupando um lugar cada vez mais relevante na paisagem religiosa do Brasil, saltando de 6,6 % da população em 1980, para 22 %, em 2010 (Mariano, 2013b), sendo este grupo o único a possuir um crescimento absoluto, tanto nos meios rurais quanto nos meios urbanos. Para Ricardo Mariano (2013a), estes movimentos, decrescentes (no caso dos católicos) e crescentes (para os evangélicos), sinalizam que vem ocorrendo uma descentralização das denominações religiosas; ou seja, há um intenso processo de pluralização que corresponde a uma maior oferta de práticas para diferentes contextos e, consequentemente, públicos, uma vez que as religiões também trabalham na lógica da oferta e da procura (Almeida & Monteiro, 2001).
Ao ocorrer de forma generalizada, o avanço evangélico não foi uniforme: enquanto algumas vertentes apenas mantêm seus fiéis, outras crescem exponencialmente - tal como os pentecostais, que têm presença expressiva entre os evangélicos do Brasil. O avanço pentecostal ocorre num contexto de organização social, e até mesmo política, que impulsiona a busca por uma religião que promove a “cura” física, social, espiritual e financeira (Mariano, 1999). Assim sendo, estes crentes formam um grupo diversificado entre si, mas com grande visibilidade e poder sobre a população e os meios de comunicação.
As constantes crises, económicas ou políticas, atravessadas no Brasil constituem-se como um terreno fértil para tais igrejas, uma vez que a população é levada a recorrer aos elementos sagrados e mágicos do pentecostalismo e da Teologia da Prosperidade, numa busca por bens materiais; com efeito, “a fé na providência divina e num plano de Deus para cada indivíduo desenvolve nestes o sentimento de que os acontecimentos irracionais e sofrimentos da vida têm um sentido e obedecem a uma lógica maior” (Mariz, 1991, p. 20). Por conseguinte, a Teologia da Prosperidade, ao se apresentar como um elemento central nas igrejas pentecostais e neopentecostais, propicia aos fiéis a obtenção de felicidade, saúde e riqueza, valorizando e enaltecendo a vida e o bem-estar neste mundo (Mariano, 1999).
Dessa forma, observamos que o campo religioso no Brasil vivenciou e vivencia constantes modificações, buscando referências de múltiplas origens e criando assim a própria pluralidade brasileira.
Paisagem religiosa portuguesa
O campo religioso em Portugal, na atualidade, reflete o contexto histórico, uma vez que a Europa foi um grande palco de monopólios religiosos, sendo o país marcado fortemente pela presença e influência do catolicismo.
A Constituição promulgada em 1976, cujos fundamentos básicos ainda prevalecem no país, estabelece, como inviolável, a liberdade de consciência, de religião e de culto, abrindo caminho para uma prática e liberdade religiosas nunca antes presenciadas no país (Vilaça, 2013). Contudo, com o início dos processos migratórios de maior fluxo, principalmente aqueles de retorno dos portugueses, ficou evidente que os nacionais retornados tinham sofrido influência das missões protestantes que atuavam nos países africanos de expressão portuguesa (Vilaça, 2016). Nesse contexto, evidencia-se um crescimento significativo (172,3 %) dos pentecostais/evangélicos. Inseridos na categoria de “outros cristãos”, denominações como a Congregação Cristã, Igreja Evangélica de Filadélfia Cigana e outras denominações religiosas pentecostais independentes, tiveram maior visibilidade e destaque no cenário religioso português (Vilaça, 2013).
Vilaça (2016) ressalta ainda a importância dos missionários e religiosos brasileiros para a constituição do campo evangélico português, a partir do processo de retorno dos portugueses que residiam no Brasil e propiciaram uma propagação do evangelismo brasileiro, caracterizado principalmente por congregações e assembleias.
Por volta de 1980, outro elemento de relevância surgiu no cenário religioso português - o fenómeno neopentecostal. A Igreja Universal do Reino de Deus, oriunda do Brasil, e a Igreja Maná, fundada por um português, entre outras, introduziram profundas mudanças no segmento protestante evangélico (Rodrigues & Silva, 2014; Ruuth & Rodrigues, 1999). O segmento pentecostal provocou uma maior liberdade religiosa, com novas ritualidades, usos e costumes, inserindo-se também nos meios de comunicação e evidenciando uma forte competitividade pela busca por fiéis.
The enlargement of the religious market occurred especially in the 1980s, with the arrival of the first Brazilian Neo-Pentecostal churches. This phenomenon was intensified, from the 1990s, with the more massive influx of Brazilian immigrants and new Brazilian evangelical churches, causing rapid and significant changes in the “Portuguese religious supermarket. (Rodrigues, 2014, p. 138)
Portanto, o cristianismo evangélico foi introduzido e vem sendo propagado em Portugal, maioritariamente através dos imigrantes, resultando, desta forma, num crescimento em determinadas regiões do país, especialmente nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa.
A região de Lisboa e Vale do Tejo é aquela que melhor espelha a diversidade religiosa em Portugal. Encontram-se aí 55,2 % dos não crentes, os quais representam já 16,1 % do total da população nesta região. Mais de 50 % da população com religião não católica, concentra-se também em Lisboa e Vale do Tejo, com especial destaque para os protestantes/evangélicos e os pertencentes a outras religiões, cuja maioria se localiza aí (…). (Vilaça, 2016, p. 206)
Essas novidades no campo religioso português provocaram uma mudança de conceção acerca das religiões e das práticas religiosas em Portugal:
Portugal still is a predominantly Catholic country. However, in the last three decades there has been an enlargement of the Portuguese religious field. In this context, the old and new religious movements with most visibility are: (Neo)Pentecostal churches, Christian Orthodox, Islamism, Hinduism and Afro-Brazilian religions. Buddhism, Judaism, the historical Protestant churches, Spiritism-Kardecism, New Age and other Eastern religions are also present. (Rodrigues, 2014, p. 137)
Em 2011, 88 % da população se declaravam católicos, e os não-católicos eram apenas 3,6 %, segundo os dados dos censos. Contudo, esta realidade está a mudar. O crescente fluxo de imigrantes - principalmente de brasileiros - provocou o aparecimento de inúmeras igrejas multiétnicas e uma pluralidade de denominações e igrejas independentes, com grande destaque para o movimento Testemunhas de Jeová (Vilaça, 2016). Portanto, o contexto histórico atual, plural e religioso de Portugal, aponta para um crescimento significativo das denominações evangélicas, materializado numa constante abertura de novos templos religiosos.
É notória a relevância dos imigrantes brasileiros e angolanos para o crescimento da vertente neopentecostal no país. O número de fiéis destas denominações nos países de origem, como o Brasil, é muito elevado. Sendo assim, no processo migratório, os indivíduos tendem a buscar uma filiação religiosa que seja próxima daquela que já conhecem, tal como as igrejas pentecostais (Rodrigues, 2014), predominantes no cenário religioso brasileiro.
Migração entre Brasil e Portugal
Sabe-se que, há mais de quinhentos anos, existe uma forte relação, em vários domínios, entre Brasil e Portugal. A relação política, diplomática, económica, cultural e entre os cidadãos e os governos vem passando por constantes mudanças e percepções que acompanham os diferentes tempos e processos históricos ligados também ao contexto global (Baeninger, 2012; Rocha-Trindade, 2009).
Igor José Machado (2006) ressalta que a imigração dos brasileiros para Portugal é uma dualidade: por um lado, representam ainda antigas relações que remetem à colonização, por outro trazem também novidades.
As identidades brasileiras construídas a partir da experiência da imigração são distintas entre si, cortadas por: 1) questões de classe entre a população imigrante, 2) por questões de temporalidade da imigração, 3) por questões de gênero e sexualidade, 4) de ascendência portuguesa (por sua vez diferenciada por graus diferentes de ascendência), 5) por questões de cor/raça, 6) por questões de ocupação no mercado de trabalho, 7) por questões de origem regional e, finalmente, 8) questões de religião, entre outras possíveis. (Machado, 2006, p. 126)
No mesmo sentido, constata-se que Portugal possui múltiplas pertenças, uma vez que está inserido na União Europeia. Porém, compartilha de outros sistemas e acordos que são resquícios ainda do Império português, tal como o sistema migratório entre os países lusófonos citado anteriormente, que está em constante modificação, devido aos fortes laços e relações entre os países lusófonos. Contudo, Bógus (2007) ressalta que a migração dos brasileiros para Portugal é motivada também por “ser considerado país-irmão, com proximidade linguística e cultural, o que tem favorecido de maneira crescente a busca daquele país (Portugal) como área de destino” (Bógus, 2007, p. 41).
A partir dos anos 1970, observa-se uma intensificação do processo migratório, em que Portugal se torna o destino de centenas de milhares de brasileiros. Ao delimitarmos a análise dos processos migratórios, estamos claramente optando por uma divisão teórica/analítica já existente e amplamente utilizada, acerca das migrações de brasileiros para Portugal. Esta análise compreende assim as diferentes características dos fluxos migratórios ao longo dos últimos cinquenta anos, uma vez que, “embora recente, a imigração para Portugal regista já duas vagas caracterizadas por um conjunto de traços distintivos” (Bógus, 2007, p. 32).
A primeira vaga migratória, como é intitulado o fluxo inicial, começa nos anos 1970 e prolonga-se até o final da década de 1990 (França & Padilla, 2018). É considerada um fluxo migratório de pequena escala (com poucos indivíduos), composta por pessoas profissionalmente qualificadas, tais como dentistas, advogados, informáticos e publicitários, que encontraram no mercado de trabalho português uma realocação equivalente às suas qualificações (França & Padilla, 2018). Essa fase atravessa diferentes momentos políticos e económicos do Brasil, como a instabilidade económica e a tentativa de controle da inflação, bem como a entrada de Portugal para o bloco da Comunidade Económica Europeia, influenciando, deste modo, as diferentes dimensões culturais, políticas e sociais (Pinho, 2007).
Lucia Maria Bógus aponta alguns indicadores, com base nos dados oficiais do INE, concluindo que, entre os anos 1980 e 1990, os brasileiros consistiam no grupo imigrante com maior escolaridade em Portugal: “28,4 % eram profissionais liberais, 27,3 % estudantes, 16 % encontravam-se alocados em empregos de média qualificação (técnicos, empregados de escritórios, bancários), 10,3 % trabalhavam como professores e apenas 5,3 % em setores não qualificados, incluindo o da construção civil” (Bógus, 2007, p. 50).
Tais dados reforçam as características principais da primeira vaga e legitimam uma melhor inserção profissional dos brasileiros, aspetos que deixaram de predominar ao longo dos anos e com a intensificação das migrações dessa população para Portugal. Em seguida, por um curto período, ocorre uma desaceleração deste processo migratório. Posteriormente, há uma retomada do crescimento das migrações de brasileiros para Portugal, mas agora com outras características, iniciando assim a segunda vaga:
A desaceleração do crescimento económico, em meados dos anos 90, levou a uma diminuição das entradas. O novo ciclo de expansão do final dos anos 90 levou a nova intensificação dos fluxos - que, perante os novos enquadramentos legais (espaço Schengen) e as novas redes organizadas, atingiu números até então desconhecidos. (Peixoto & Figueiredo, 2007, p. 89)
A segunda vaga tem início no final dos anos 1990 (França & Padilla, 2018; Machado, 2014; Malheiros, 2007). Compreende um significativo aumento do número de indivíduos, sendo composta predominantemente por profissionais de serviços, ou seja, indivíduos que vêm para ocupar postos de trabalhos não qualificados: “ligados principalmente à hotelaria, eram quase todos garçons, trabalhadores de restaurantes, churrasqueiros, etc.” (Machado, 2014, p. 231). “(Os) brasileiros da 2.ª vaga têm encontrado mais oportunidades de emprego em tarefas não qualificadas, incrementando-se o desajuste entre as qualificações possuídas e as qualificações necessárias para a prática de certas profissões em sectores como a construção civil” (Pinho, 2007, p. 28).
A presença e o direcionamento dos brasileiros da segunda vaga para os grandes centros urbanos, como Lisboa e Porto, evidenciam outro caráter dessa vaga migratória:
(É) um indicador direto de uma imigração mais laboral, uma vez que Lisboa é o mercado de trabalho mais dinâmico e diversificado do país, com características urbanas, e não foi, em termos relativos o local central na história da emigração portuguesa para o Brasil. (Malheiros, 2007, p. 21)
Partindo de perspectivas recentes a respeito das vagas migratórias, observa-se a existência de uma terceira vaga, que evidencia um número elevado de brasileiros, com distintas inserções e qualificações profissionais, num contexto migratório que sofre uma abrupta interrupção devido à crise financeira global de 2008 (Fernandes et al., 2021). Por último, a quarta vaga, compreendida entre o ano de 2014 e o contexto pré-pandémico, evidenciou uma diversidade ainda maior e um fluxo mais intenso de trabalhadores qualificados e não qualificados, num contexto legitimado a partir do aumento significativo do número de concessões para residir em Portugal (Fernandes et al., 2021).
Portanto, a dinâmica migratória e económica resulta de uma flexibilização da legislação trabalhista, impulsionando a falta de interesse de cidadãos nacionais em se inserir em alguns segmentos do mercado de trabalho, especialmente aqueles com menores remunerações e sem vínculos contratuais, relegando tais ocupações para as populações migrantes. O mercado de trabalho para os brasileiros, além da limpeza e da construção civil, está diretamente associado às supostas características de simpatia e alegria, valorizadas no comércio e na restauração (Peixoto & Figueiredo, 2007).
Observa-se que a migração brasileira, apesar de se beneficiar de alguns acordos bilaterais2 de regularização dos trabalhadores, ou mesmo do Estatuto de Direitos e Deveres3, cria uma aproximação entre os indivíduos, sendo também os brasileiros o grupo com maior facilidade de integração (Malheiros, 2007). A segunda vaga se diferencia pelo aumento do número de migrantes e pela precarização dos trabalhadores; traz em si novos e interessantes elementos, como o aumento de evangélicos, de mulheres, de estudantes e de aposentados.
A partir de 2014, no contexto da quarta vaga, com a nítida melhoria da economia de Portugal, a migração de brasileiros ganhou novamente força e projeção nos meios de comunicação social. Trata-se de jovens, empreendedores e pessoas de classe média, que buscam maior segurança e qualidade de vida, trazendo também investimentos financeiros. Outros aspetos que contribuem para o aumento da migração de brasileiros com destino a Portugal estão associados à instabilidade política brasileira, que afeta a economia e a segurança pública, áreas que se tornaram ainda mais frágeis após o ato de ‘impeachment’ da presidente Dilma Rousseff4.
Migração e religião
A prática religiosa e a própria figura de um Deus soberano surgem constantemente nas narrativas dos jovens enquanto elementos que produzem sentido e exercem a função de fornecer inspiração, motivação, força e resiliência. Para os nossos jovens sujeitos, diversas são as mensagens que recebem de Deus, seja através dos sonhos, seja através de profecias apresentadas dentro de igrejas.
A dimensão religiosa, portanto, torna-se uma preciosa ferramenta de reinterpretação da realidade, na tentativa de conciliar o presente e o passado, num complexo e sofrido processo de “negociação identitária”. Antes que a fuga, portanto, o recurso à religião visa o enfrentamento simbólico da realidade. (Marinucci, 2012, p. 8)
A prática religiosa, aqui relacionada diretamente à fé individual dos jovens, ultrapassa as próprias fronteiras de uma determinada instituição religiosa, como relatado por Daniel, Jonas e Afonso, nossos entrevistados. Para Hérvieu-Léger (2015), o peregrino constitui-se a partir das próprias modificações do campo religioso contemporâneo, onde as trajetórias individuais fundem-se com as trajetórias religiosas, constituindo, assim, um caminho dotado de um sentido - no caso dos jovens: evangelizar a Europa, trazer a palavra, ser líder de um grande ministério, ganhar vidas para Cristo, entre outros.
Os jovens, enquanto peregrinos, mantêm-se em movimento, evidenciando o sentido religioso que dão às próprias escolhas, recursos e disposições vivenciadas. Nota-se em suas trajetórias que as dificuldades enfrentadas, as angústias vividas e as incertezas atravessadas tornam-se elementos de uma narrativa coerente, que corresponde justamente à constante construção e (re)construção biográfica do peregrino em movimento (Hérvieu-Léger, 2015).
Apesar de apresentarem uma desinstitucionalização religiosa no início do processo migratório, os jovens, assim que chegaram a Portugal, se integraram rapidamente a uma determinada igreja: Jonas e Daniel, membros da Igreja Sarah Nossa Terra, e Afonso, membro da Bola de Neve Church, ambas oriundas do Brasil e possuindo uma forte disseminação no exterior. A rápida filiação e inserção dos jovens evidencia o quanto consideram a igreja como um espaço seguro para os imigrantes (Ribeiro, 2007); tal como evidenciado por Oliveira (2012), a Igreja desempenha funções de cunho social, material e logístico para a vida quotidiana do imigrante.
A motivação e o desejo de migrar estão diretamente associados a um parâmetro religioso e afetivo, que incluir o desejo central de desenvolvimento pessoal. É possível compreender - com Daniel e Afonso - que existe também o desejo de uma condição social diferente, mas este não se alinha necessariamente a uma melhoria financeira, uma vez que, em Portugal, ambos exercem funções profissionais com um status social inferior ao que exerciam no Brasil: Afonso era funcionário de inovação tecnológica de um banco e Daniel estudante de Psicologia; Jonas por vezes evidencia uma oscilação tênue acerca das suas motivações, ora dando ênfase à religião, ora mencionado querer apenas estar com a namorada, que já havia emigrado.
Sendo assim, é notório que compreender os processos migratórios, a partir de histórias de vida, faz com que nos aproximemos ainda mais de uma miscelânea de problemáticas relacionadas principalmente à paisagem religiosa de ambos os países.
Oriundo do interior de São Paulo, Jonas emigrou para Portugal aos 21 anos, em 2012. O processo migratório começou a ser cogitado desde um relacionamento amoroso com uma antiga colega de escola que havia migrado para Portugal com toda a família. Durante meses, o jovem relacionou-se apenas virtualmente, chegando até mesmo a romper tal vínculo, porém o reatando posteriormente. A namorada de Jonas fora ao Brasil, em visita à sua cidade natal - que era a mesma de Jonas -, e permaneceu por lá um mês. Morando na mesma cidade, a ocasião possibilitou aos jovens intensificar e consolidar o relacionamento, provocando em ambos o desejo de estarem juntos, independentemente do país.
No entanto, a partir da narrativa de Jonas, observamos que o seu processo migratório foi também atravessado por alguns elementos religiosos: ele iniciou a sua conversão do catolicismo para o pentecostalismo, ainda no Brasil, motivado pela namorada (hoje a sua atual esposa). Um dos seus grandes propósitos consistia justamente em alcançar toda a documentação e dinheiro que fosse necessário para migrar para Portugal. Numa certa ocasião - de desespero, por não conseguir sequer agendar a solicitação do passaporte -, ele entrou na Igreja do Evangelho Quadrangular - escolha aleatória, pois era a igreja que estava mais próxima - e começou a orar - pedindo o auxílio de Deus para que o seu processo migratório prosperasse. Durante o período em que esteve em oração - orar ainda era algo que não tinha prática em fazer, pois estava em processo de conversão -, foi interrompido por uma mulher que lhe disse: “Deus não é um Deus de troca, é necessário fazer algum sacrifício para que as portas se abram” (J. Pereira, comunicação pessoal, 25 setembro, 2019).
Após alguns minutos refletindo, a mulher se aproximou novamente, e continuou: “Você vai fazer uma viagem que vai mudar a sua vida. Ele tem um grande plano para você, para você ele tem chave de ouro, bandeja de ouro” (J. Pereira, comunicação pessoal, 25 setembro, 2019).
Jonas, intencionando satisfazer as necessidades para sua migração, onde seguia a sua fé, assumiu um propósito que, segundo ele, foi um dos mais difíceis - abandonar o vício do cigarro, que já o acompanhava há alguns anos. Nas semanas seguintes, após orações incessantes, recebeu a ligação da marcação para emitir o passaporte - processo esse extremamente burocrático no contexto em que Jonas migrou para Portugal. A surpresa do jovem consistiu justamente no fato de que a espera média para a emissão do documento era de seis meses; porém, ele o conseguiu em poucas semanas - após o propósito de abandonar o vício do cigarro e a crença dele na mensagem que recebera na Igreja Quadrangular.
Para concretizar financeiramente o processo migratório, recorreu a uma poupança que a mãe fizera desde a sua infância, para que ele optasse por comprar um carro ou iniciar um curso superior. Portanto, a poupança foi completamente consumida com o processo migratório - emissão de documentos, compra do bilhete (passagem) e outros gastos necessários para entrar em Portugal como turista e permanecer indocumentado no país.
Para a mãe, o filho não teria coragem para emigrar, pois, segundo Jonas (J. Pereira, comunicação pessoal, 25 setembro, 2019): “O máximo que já tinha passado longe da minha mãe foram sete dias, ela não acreditava que eu teria coragem e só acreditou quando estávamos indo pro aeroporto”.
O jovem Daniel é oriundo de Alagoas e residia em Arapiraca, interior do estado. Veio para Portugal aos 20 anos de idade, em outubro de 2013. Inicialmente, o seu processo migratório sofre influências da própria mãe, que já havia morado nos Estados Unidos da América. Porém, para Daniel, tal sonho começou aos 14 anos de idade quando
Deus colocou um desejo forte no meu coração de ir morar em outro país, mas não tinha um país específico, tinha apenas um desejo muito forte, e sabia que Deus me queria fora do Brasil, sempre tive muitos sonhos em relação a isso… Quando eu tinha 16 anos, estava na sala de casa orando, e quando eu fechei os olhos me vi em outro país, não sabia qual país era, e nesse momento eu me vi falando de Jesus para várias pessoas. Eu enxerguei essa experiência e voltei, foi muito marcante, já tem mais de dez anos e ainda me lembro perfeitamente. (D. Silva, comunicação pessoal, 25 de setembro, 2019)
O jovem continuou seguindo seu caminho, com os seus sentimentos, sonhos e estudos, buscando o melhor para a sua vida e sempre muito assíduo com os compromissos religiosos. Aos 20 anos de idade, em meio ao contexto de estudos e trabalho, Daniel e sua mãe tiveram o mesmo sonho:
Eu já tinha no meu coração que ia sair do Brasil, minha mãe também sonhava com isso, para ela não era um chamado de Deus, mas uma vontade de tentar algo novo, no meu caso era realmente para uma experiência com Deus. (D. Silva, comunicação pessoal, 25 de setembro, 2019)
Durante uma apresentação religiosa que realizou com outros membros da Igreja, o jovem recebeu uma indicação clara de Deus para prosseguir com o sonho de migrar:
Fiz uma oração, pedi pra Deus falar comigo, sobre sair ou não do Brasil, criei algumas perguntas para Deus e pedi a ele que alguém me respondesse, pois estava num local com milhares de pessoas de todos os lugares, e queria a confirmação se eu deveria sair ou não (D. Silva, comunicação pessoal, 25 de setembro, 2019).
Nesse contexto, um jovem pediu para orar pelo grupo e especificamente por Daniel. O rapaz, até então desconhecido, disse que viu Daniel atravessando o Oceano Atlântico, perguntando-lhe se as malas já estavam prontas. A partir daquele momento, Daniel obteve a confirmação que esperava, compartilhando os planos com a mãe e organizando todos os detalhes para ambos migrarem.
Para o jovem, Portugal não foi a primeira escolha, mas uma consequência, pois o plano inicial era estabelecer-se na Alemanha. Porém, apenas em Portugal conseguiram emprego e moradia com facilidade, o que os impulsionou a estabelecerem-se no país.
Oriundo de Barueri, na região metropolitana de São Paulo, Afonso, com 24 anos de idade, realizou o seu primeiro processo migratório para Dublin, em abril de 2014 e, em seguida, para Portugal, em julho do mesmo ano. Esse processo ocorreu motivado constantemente pela fé e pelos diversos sonhos com indicações diretas do que deveria fazer: “Deus me disse que eu viria para a Europa, ele me disse para vir e procurar um lugar que vendia café, eu deveria entregar as moedas para o garçom e deveria ganhar aquela alma para Cristo” (A. Pires, comunicação pessoal, 14 de agosto, 2019). Após este sonho, ficou imensamente incomodado. Em menos de um mês, teve outro sonho: O sonho foi muito real, me deixou desnorteado, eu estava numa aldeia, numa vila da Europa, eu sabia que estava na Europa… Tinha jovens brincando, e tinha um senhor sentado ao meu lado, e ele me dizia “pelo jeito você é nascido de igreja”, porém eu afirmei que não e esse velho afirmou “então você é rebelde”, e nesse momento eu ouvi a voz de Deus dizendo que eu tinha vindo para ensinar as pessoas a nascerem de Cristo e não mais da igreja. (A. Pires, comunicação pessoal, 14 de agosto, 2019)
O jovem que já vinha se dedicando à evangelização no interior do Mato Grosso, após esses sonhos, intensificou as orações e começou a ouvir profecias de outros fiéis, que ressaltaram que seria esta a sua missão: supostamente se mudar para a Europa e se tornar um líder religioso. No ano de 2013, participou de uma conferência profética sobre a Europa e nessa ocasião passou a ter ainda mais certeza sobre a sua missão.
Como relatado, com a documentação, partiu primeiro para Dublin, na Irlanda, sendo recebido por outro jovem, também membro da Igreja Bola de Neve, denominação a que Afonso pertencia no Brasil. Assim como no caso de Daniel, Portugal não foi a primeira opção de Afonso, mas na Irlanda não conseguiu emprego e teve imensas dificuldades em aprender a língua. Neste contexto, teve outro sinal: “No sonho Deus me falava que, se não desse certo em Dublin, eu deveria ir para Portugal, para a cidade do Porto, pois lá eu conseguiria trabalho e teria facilidade com a língua” (A. Pires, comunicação pessoal, 14 de agosto, 2019).
Em poucas semanas, o jovem saiu da Irlanda e embarcou rumo a Portugal, sustentado em grande medida pela sua fé e pelos sonhos que tivera:
O sonho é algo significativo, é um passo de fé, literalmente. E o gosto da conquista é melhor ainda, pois vê que se tornou realidade, por conta do que conquistei, como a igreja, a família, o emprego; todas essas conquistas estavam alinhadas. (A. Pires, comunicação pessoal, 11 de novembro, 2019)
A partir dos dados coletados e analisados sobre esses jovens, é possível apontar que eles constroem, não só um suporte para a saída do Brasil, mas também uma força de adaptação e sobrevivência num outro país, a partir do sonho de emigrar baseado na fé. Faz-se notório o poder simbólico exercido pela religião, que tem como principal função, nesse contexto, impulsionar os jovens a que, por meio da fé, realizem um processo migratório e busquem um apoio religioso/institucional ao chegarem no país de destino, usufruindo assim daquilo que a comunidade religiosa, por vezes também migrante, pode lhes oferecer.
Considerações finais
A partir da problematização das temáticas do campo religioso em Portugal e no Brasil, e de uma breve análise do histórico da migração entre os dois países, possibilitou-se mesclar ambas as temáticas, evidenciando assim a influência da religião para o processo migratório; neste caso, analisando brevemente o percurso de vida de três jovens brasileiros migrantes. Tais percursos atravessam as incontáveis relações estabelecidas entre a religião e a migração, numa perspectiva de individualização da crença, do trânsito religioso e sobretudo de um “propósito” divino que coincide, intencionalmente, com um contexto migratório já existente entre ambos os países.
Sendo assim, este trabalho buscou ampliar a observação de processos migratórios, contribuindo para uma análise distante das teorias clássicas, em que o fator económico é central se não mesmo o único (Nolasco, 2016). Apontamos elementos para a compreensão do processo migratório numa perspectiva de jovens que migram, mas que não apontam/evidenciam uma relação exclusivamente e/ou primordialmente financeira.
Dessa forma, observou-se que os jovens brasileiros sujeitos desta investigação, residentes na área metropolitana de Lisboa, possuem percursos de vida diretamente relacionados às práticas religiosas que, oriundas do Brasil, continuam a ser exercidas em Portugal. Para estes jovens, a religião foi um elemento central e decisório para o processo migratório e para a adaptação em Portugal.