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Revista Portuguesa de Pneumologia

versão impressa ISSN 0873-2159

Rev Port Pneumol v.16 n.1 Lisboa jan. 2010

 

Tuberculose musculoesquelética – A propósito de um caso clínico

 

Teresa Mourato1, João Costeira2, Jaime Pina3

1 Interna do Internato Complementar de Pneumologia/Resident, Pulmonology

2 Assistente Hospitalar Graduado de Pneumologia/Consultant, Pulmonology specialist

3 Chefe de Serviço Hospitalar de Pneumologia e Director do Serviço de Pneumologia III/Head, Pulmonology Unit, director Pulmonology III Service

Hospital de Pulido Valente, Lisboa

 

Correspondência

 

Resumo

A tuberculose da parede torácica constitui 1 % a 5 % de todos os casos de tuberculose musculoesquelética.

Os abcessos da parede torácica constituem localizações raras da tuberculose. Porém, com o recrudescimento da tuberculose associada à síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA), aquele diagnóstico deve ser considerado mais frequentemente1.

Os autores apresentam um caso de tuberculose óssea com abcesso da costela em doente infectado pelo VIH. A combinação da apresentação insidiosa de sintomas e de imagens radiológicas compatíveis sugerem fortemente o diagnóstico. No entanto, a confirmação cultural ou histopatológica são essenciais para o diagnóstico definitivo.

Palavras-chave: Tuberculose musculoesquelética, abcesso, costela.

 

Musculoskeletal tuberculosis – a clinical case report

Abstract

Tuberculosis of the chest wall constitutes 1% to 5% of all cases of musculoskeletal TB. Abscesses of the chest wall are rare tuberculous locations. Because of the resurgence of the tuberculosis associated to AIDS, that diagnosis must be considered more frequently1.

The authors present a case of osseous tuberculosis with an abscess rib in a patient with HIV. The combination of indolent onset of symptoms and compatible radiographic findings, strongly suggests the diagnosis. However, the confirmation with positive culture or histopathologic are essential for definitive diagnosis.

Key-words: Musculoskeletal tuberculosis, abscess, rib.

 

Introdução

A tuberculose musculoesquelética ocorre em 1% a 3% dos doentes com diagnóstico de tuberculose

pulmonar. A parede torácica está envolvida em 1% a 5% de todos os casos de tuberculose musculoesquelética, representando 1% a 2% da totalidade dos casos de tuberculose1.

A seguir às metástases, constitui a segunda causa de destruição de costela e a mais frequente lesão inflamatória das costelas. A forma de apresentação multifocal é rara2, mesmo nos países em que a tuberculose é endémica, e em apenas um terço dos doentes existe concomitantemente doença pulmonar3,4.

A apresentação clínica inclui tumefacção subcutânea da parede torácica, dor local, febre e emagrecimento. Se existe envolvimento da coluna vertebral, pode existir rigidez do tronco, espasmo muscular e sinais neurológicos.

A radiografia torácica pode complementar o estudo diagnóstico e evidenciar envolvimento concomitante do parênquima pulmonar, mas não existem achados patognómicos neste tipo de tuberculose. A tomografia axial computadorizada (TAC) mostra habitualmente um processo de osteólise da costela, envolvimento das partes moles endo ou extratorácicas, com uma densidade quística ou líquida, reacção do periósteo e/ou sequestro5,6. Este exame é fundamental para uma adequada investigação das lesões das costelas, mostrando os tecidos e estruturas envolvidas e permitindo orientar biópsias dirigidas7. As confirmações bacteriológica aspirativa (PA) da massa a técnica utilizada na aquisição de material8,9.

O tratamento deve incluir a terapêutica antibacilar de primeira linha com isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol durante dois meses seguida de sete a dez meses de isoniazida e rifampicina, bem como a remoção cirúrgica do abcesso, embora a terapêutica mais adequada seja ainda controversa.

A propósito desta entidade clínica, os autores descrevem o caso de um homem imunocomprometido, com diagnóstico de tuberculose miliar e uma forma de apresentação rara de tuberculose musculoesquelética, um abcesso da costela com destruição óssea.

 

Caso clínico

Doente do sexo masculino, 36 anos, raça caucasiana, natural da ilha do Faial, Açores, e residente em Lisboa, fumador de 20 UMA, toxicofilia inalada e endovenosa durante 15 anos, em programa de substituição de opiáceos deste Setembro de 2007 e infecção VIH-1 conhecida desde há cerca de 12 meses, sem profilaxia ou terapêutica antirretroviral. Recorre ao serviço de urgência do Hospital de Santa Maria (HSM), Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN-EPE), por quadro com um mês de evolução de tosse com expectoração mucosa, por vezes mucopurulenta, febre não quantificada, dispneia de esforço, toracalgia incaracterística no terço médio do hemitórax direito, acompanhados de astenia, adinamia e perda ponderal de cerca de 10 kg.

Como antecedentes pessoais, referência a pneumonia bilateral em 1997 e infecção crónica ao vírus da hepatite C. Sem antecedentes familiares relevantes.

Ao exame objectivo, o doente apresentava-se consciente, orientado, colaborante, emagrecido, polipneico, acianótico, subfebril, com saturação periférica normal, subfebril (TT–38,2ºC), descorado mas hidratado e hemodinamicamente estável.

À auscultação pulmonar tinha diminuição do murmúrio vesicular nas bases, alguns sibilos bilaterais e a auscultação cardíaca era rítmica e sem sopros audíveis. A nível abdominal apresentava uma hérnia umbilical, redutível e indolor, e hepatomegalia dolorosa.

Analiticamente tinha anemia microcítica (Hb – 9,2 g/dl, VGM – 69,1 fl), PCR de 8,2 mg/dl, sem leucocitose, LDH de 1112 U/l e hiponatremia de 127 mEq/l.

A gasometria arterial (FiO2 – 21 %) evidenciava uma alcalose respiratória ligeira, com hipoxemia (pH – 7,47; pCO2 – 33,2 mmHg; pO2 – 64,9 mmHg; sat O2 – 94%).

A radiografia do tórax (PA) mostrava um padrão micronodular/miliar difuso em ambos os campos pulmonares e imagem de hipotransparência no terço médio à direita, com extensão à pleura e parede torácica (Fig. 1).

 

Fig. 1 – Radiografia tórax (PA) – Padrão miliar difuso, hipotransparência do terço médio à direita, com extensão à pleura e parede torácica

 

A pesquisa de bacilos ácido-alcool resistentes (BAAR) em exame directo da expectoração foi negativa.

O doente é admitido e transferido para a unidade de imunodeficiência do Hospital de Pulido Valente, CHLN, EPE, com a hipótese de infecção respiratória no contexto de infecção VIH. Foi medicado empiricamente com levofloxacina e cotrimoxazol e pedida broncofibroscopia que não evidenciou alterações endobrônquicas.

O líquido da lavagem broncoalveolar (LLBA) foi negativo, quer para pesquisa de bacilo de Koch (BK) em exame directo, quer para pesquisa de Pneumocystis jiroveci, quer ainda no exame bacteriológico, directo e cultural.

A biópsia brônquica revelou um processo inflamatório crónico inespecífico.

Dos exames solicitados durante o internamento, destaca-se o seguinte:

– Antigenúrias para o Streptococcus pneumoniae e para a Legionella serotipo 1 negativas;

– Hemoculturas em aerobiose e anaerobiose negativas;

– Uroculturas negativas;

– TAC torácica, que revelou padrão de disseminação miliar, em provável relação com processo específico e imagem de densidade de partes moles (líquida), com aparente destruição óssea da costela no hemitórax direito, que na janela óssea apresentava corticalização (Fig. 2);

 

Fig. 2 – TAC tórax – Padrão de disseminação miliar, imagem de densidade de partes moles com aparente destruição óssea da costela no hemitórax direito

 

– Punção lumbar, com saída de líquido cefalorraquidiano cristal-de-rocha, com ADA normal (7UI/l), bioquímica com aumento das proteínas (0,74 g/l) e diminuição da glicose (55 mg/dl). Os exames bacteriológico, directo e cultural, bem como o micológico, foram negativos. O exame micobacteriológico directo e a pesquisa de Mycobacterium tuberculosis por técnica de PCR foram negativos.

Verificou-se melhoria clínica e laboratorial progressiva, mas cerca de 15 dias após o início do internamento o doente inicia febre.

Entretanto, o exame cultural para pesquisa de BK no LLBA e na expectoração vêem positivos, pelo que o doente é transferido para o serviço de pneumologia III (unidade de tuberculose) do mesmo hospital e inicia terapêutica antibacilar de primeira linha com isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol, tal como demonstrou o perfil de sensibilidade daqueles produtos biológicos.

Mais tarde estes exames são complementados pela positividade dos exames culturais em meio de Lowenstein-Jensen, quer da expectoração, quer do LLBA.

Por persistência da toracalgia à direita e aumento discreto da imagem radiológica de hipotransparência direita (Fig. 2), o doente é submetido a punção aspirativa (PA) da colecção de partes moles, com saída de pus, cuja pesquisa de BAAR foi positiva no exame directo, deduzindo tratar-se de um abcesso de etiologia tuberculosa.

A TAC torácica de controlo, realizada cerca de um mês depois da primeira, revelou aumento volumétrico da lesão (7×6 cm axiais), bem delimitada, localizada na parede torácica direita, com crescimento para dentro do hemitórax direito, associada a lise óssea do 5.º arco costal, para além de um ligeiro agravamento da disseminação miliar da tuberculose a nível do parênquima pulmonar (Fig. 3).

 

Fig. 3 – TAC tórax – Aumento do volume da lesão com crescimento para dentro do hemitórax direito, lise óssea do 5.º arco costal. Agravamento da disseminação miliar

 

Estabelecido assim o diagnóstico de abcesso costal com destruição óssea, o doente foi submetido a empiemectomia com ressecção parcial do 4.º e 5.º arcos costais à direita, ressecção atípica do LSD e da massa quística (abcesso). O resultado anatomopatológico da peça operatória foi de empiema crónico.

O pós-operatório decorreu sem complicações, tendo o doente alta, melhorado e mantendo terapêutica antibacilar durante um ano, com evolução favorável (Fig. 4).

 

Fig. 4 – Radiografia tórax – Resolução do abcesso após tratamento cirúrgico e sob terapêutica antibacilar

 

Discussão

A tuberculose da parede torácica é uma entidade rara e constitui um desafio diagnóstico e terapêutico, representando entre 1% a 2% da totalidade dos casos de tuberculose.

A tuberculose óssea resulta da extensão directa da doença pleuropulmonar subjacente10, disseminação hematogénea dos bacilos a partir de um foco de primoinfecção nos pulmões11 ou da extensão directa de uma linfadenite da parede torácica12. A erosão óssea resulta do tecido de granulação que ao crescer leva a necrose do osso, mas também pela acção directa e invasiva dos microrganismos.

As colecções extraparenquimatosas (subpleurais) são compostas de material caseoso resultantes de gânglios linfáticos necrosados e designam -se “abcessos frios”. Estes podem crescer e fazer procidência na parede torácica, formando tumefações visíveis no exterior, sem causarem eritema ou dor, o que explica a contiguidade destas lesões aos gânglios linfáticos afectados, em cerca de metade dos doentes. Os gânglios da cadeia mamária interna são os mais frequentemente envolvidos.

Os abcessos tuberculosos da parede torácica podem envolver, por ordem decrescente de frequência, o esterno, as costelas, as articulações costocondrais e costovertebrais e as vértebras. Em mais de metade dos casos não existe destruição óssea. A associação de uma massa de partes moles, lesão osteolítca e sequestro na TAC torácica sugere tuberculose da parede torácica6.

A dimensão destes abcessos varia habitualmente entre os 4 e os 10 cm, no seu maior diâmetro13, e frequentemente pode surgir um ponto de drenagem espontânea, nomeadamente nos doentes em que o início da terapêutica antibacilar é protelado.

A forma de apresentação mais característica é a de um abcesso frio, que se traduz por uma massa sem inflamação, habitualmente única, tal como sucede neste doente. Também pode ser dolorosa, palpável, de consistência mole a elástica ou sólida, e pode ter flutuação14. A dor e o eritema local traduzem sobreinfecção.

Na série de Faure, em 83% dos casos existe história de tuberculose pulmonar, estando activa em 33% dos doentes11. O doente apresentado tinha uma tuberculose miliar activa que motivou o seu internamento, na sequência do qual foi investigada a toracalgia que conduziria ao diagnóstico de abcesso costal.

O diagnóstico definitivo assenta na confirmação micobacteriológica ou histológica de material colhido por PA8,9, embora nem sempre os doentes reúnam condições clínicas para o fazer. Por vezes só o exame histopatológico da peça cirúrgica fornece o diagnóstico.

A abordagem terapêutica continua a ser controversa. Estudos têm demonstrado que o tratamento médico é insuficiente, pelo que se recomenda o desbridamento cirúrgico associado aos fármacos antituberculosos8. A técnica cirúrgica mais adequada inclui a ressecção alargada e completa da massa e costelas que eventualmente possam estar envolvidas15, sendo o procedimento mais efectivo com baixo risco cirúrgico e mandatório, a fim de evitar recidivas8,16. A duração aceitável da antibioterapia é de 9 a 12 meses17,18,19.

 

Conclusões

Com base neste caso, tecem-se algumas considerações no que diz respeito ao diagnóstico de tuberculose musculoesquelética, valorizando a importância do elevado grau de suspeição clínica, particularmente em áreas de alta prevalência de tuberculose e SIDA.

Reforça-se a abordagem terapêutica mais adequada e a necessidade de tratamento cirúrgico, complementados pela medicação antibacilar para a completa resolução do abcesso costal e redução da taxa de recidivas.

 

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Correspondência

Serviço de Pneumologia III

Director: Jaime Pina

Hospital de Pulido Valente, Centro Hospitalar Lisboa Norte, EPE

Alameda das Linhas de Torres, 117

1769-001 Lisboa

e-mail: joaocosteira@sapo.pt

 

Recebido para publicação/received for publication: 09.04.26

Aceite para publicação/accepted for publication: 09.06.09