Introdução
A implementação de um sistema médico pré-hospitalar permite oferecer, nos primeiros minutos, à pessoa vítima de quadros clínicos complexos, patológicos ou traumáticos, diversos, uma resposta clínica adequada, e com isso promover uma estabilização hemodinâmica efetiva (Alarhayem et al., 2016; Silva, Tipple, Souza, & Brasil, 2010). Os benefícios deste socorro são, à partida, de grande importância, na medida em que contribuem para a diminuição da probabilidade de instalação de um quadro clínico de maior nível de gravidade em que a sobrevivência da vítima, na ausência de assistência rápida, ficaria seriamente comprometida ou a possibilidade de advirem sequelas/morbilidades de enorme impacto pessoal, social e económico muito agravada.
A presença de profissionais de saúde diferenciados nos meios de socorro pré-hospitalar permite que a assistência seja, além de precoce, mais ajustada às necessidades existentes, o que, naturalmente, permite otimizar a assistência global de todo o Serviço de Saúde. A assistência pré-hospitalar assegura cuidados de saúde complexos, como são exemplo as medidas de reanimação, suporte avançado de vida, ou o transporte mais seguro dos doentes em estado crítico (Rodrigues & Martins, 2012).
A gestão destes profissionais vai depender da política organizacional de cada país e, em cada país, da política organizacional de cada uma das diferentes regiões que o constituem. A presença de enfermeiros no contexto pré-hospitalar é uma realidade em diferentes países europeus como a Suécia, Finlândia, Bélgica, Inglaterra, País de Gales, Espanha, Holanda (Soren, Linda, & Veronica, 2015) e Portugal.
A inclusão de enfermeiros no pré-hospitalar em Portugal ocorreu em 1981, ano em que foram realizados os primeiros cursos de formação a médicos e enfermeiros sobre técnicas de Emergência Médica (Instituto Nacional de Emergência Médica, 2017). Depois de uma longa participação dos enfermeiros no socorro pré-hospitalar, nas Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação e nos Helicópteros do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), em 2007 foram implementadas as Ambulâncias de Suporte Imediato de Vida (SIV), um novo meio de assistência pré-hospitalar constituído por um enfermeiro e por um técnico de emergência pré-hospitalar (Oliveira & Martins, 2013). As ambulâncias SIV, destinadas ao socorro das vítimas de acidente ou doença súbita, ao apoio diferenciado na prestação de cuidados no Serviço de Urgência e ao transporte inter-hospitalar de pessoas em situação crítica, cuja resposta se exige diferenciada (Ministério da Saúde, 2014a, 2014b), distinguem-se dos outros meios de socorro pelo facto de serem o primeiro meio onde o enfermeiro assume o papel de team leader - competência acrescida, que nos restantes meios é assumida pelo médico. A formação dos enfermeiros das ambulâncias SIV é específica e a sua atuação é protocolada, sob controlo médico e supervisão clínica da estrutura profissional do INEM.
Com esta reflexão, objetivou-se analisar o papel dos enfermeiros no socorro pré-hospitalar em Portugal.
1. Desenvolvimento
A Enfermagem, enquanto disciplina e profissão, precisa de manter os seus alicerces ao nível do cuidado em saúde a diferentes níveis e à escala mundial, vinculando, assim, a necessidade maior de manter firmes as suas bases disciplinares, direcionadas para o cuidado-cura-saúde (Watson, 2017). O contexto pré-hospitalar imprime, contudo, preocupações acrescidas à Enfermagem. A identidade profissional, ao nível do pré-hospitalar, deve assentar em três pontos fundamentais: gestão dos cuidados de Enfermagem em contexto de urgência/emergência; gestão das equipas pré-hospitalares assumindo os enfermeiros o papel de team leaders; produção e disseminação de conhecimento científico que otimize as práticas autónomas e interdependentes do enfermeiro.
Cuidados de Enfermagem no Pré-hospitalar
A ausência de um modelo teórico que dê suporte às práticas dos enfermeiros no pré-hospitalar fragiliza substancialmente a identidade destes profissionais, que se veem desprotegidos de um modelo conceptual que personaliza a Enfermagem enquanto disciplina e profissão. Os cuidados de Enfermagem assentes em protocolos terapêuticos e de intervenção são amplamente utilizados a diferentes níveis da prestação de cuidados de saúde, e no pré-hospitalar esta é também uma realidade. Diferentes algoritmos respondem a diferentes quadros clínicos. Os enfermeiros conduzem as suas intervenções e tomam as suas decisões de acordo com a melhor evidência científica, seguindo protocolos terapêuticos previamente delineados, e tendo em consideração a eficácia previsível da sua atuação (Oliveira & Martins, 2013). Os protocolos são construídos e fundamentados tendo em consideração a componente patológica de uma vítima, contudo, não respondem às necessidades humanas básicas que resultam do quadro patológico. A construção de uma visão holística da pessoa no decorrer de todo o socorro pré-hospitalar é a abordagem que se exige à Enfermagem, já que é essa abordagem que a distingue de outras profissões. A ausência de um modelo teórico de Enfermagem que norteie a totalidade das intervenções acaba por afastar os enfermeiros da sua verdadeira identidade, aproximando-os, por outro lado, da identidade de outros intervenientes do socorro pré-hospitalar. Assim, a necessidade de se implementarem cuidados emergentes com o objetivo de salvar vidas, oferece à Enfermagem um desafio tão ambicioso quanto arriscado - a construção de um modelo teórico que suporte a prática clínica da Enfermagem na emergência pré-hospitalar (Mota et al., 2019).
A inclusão de uma vítima, com um determinado quadro clínico, num ou em vários desses protocolos terapêuticos, redunda redutora e insuficiente para as reais necessidades do ser humano, e, por conseguinte, muitas das respostas necessárias são negligenciadas por deficiência da abordagem adotada. A Enfermagem ao evoluir para se adaptar às diferentes dimensões de cuidados e aos diferentes contextos de prestação de cuidados, deve procurar manter-se fiel à sua essência. Ela tem na sua génese o ato instintivo de cuidar, como garantia da proteção da pessoa, mas só a partir da organização e sistematização do seu saber foi possível cimentar a Enfermagem Moderna, oriunda de Florence Nightingale (Geovanini, Moreira, Schoeller, & Machado, 2019). Retirar à Enfermagem a visão unitária de mundo, onde a saúde se associa à justiça social e moral, num sistema de processos e resultados é roubar a sua verdadeira identidade (Watson, 2017). As teorias de médio e grande alcance permitem modular os cuidados de Enfermagem, contudo, a realidade pré-hospitalar assenta fundamentalmente na dicotomia saúde-doença, cuja necessidade maior é a implementação de intervenções imediatas, capazes de garantir a manutenção das funções vitais.
Conhecer as fronteiras que delimitam a prestação de cuidados com vista à recuperação da estabilidade hemodinâmica e nelas incorporar uma assistência suportada pelas pedras basilares que modelam a essência da Enfermagem - Pessoa, Saúde, Ambiente e Cuidados de Enfermagem - é oferecer às vítimas a garantia, não só, da sua sobrevivência como também da salvaguarda do respeito, dignidade, fragilidades e necessidades que “ultrapassam” o bom funcionamento das funções vitais. Se por um lado os protocolos de intervenção são fundamentais, por outro, a definição de um planeamento de cuidados à luz da singularidade de cada indivíduo pode e deve ser assegurada. Assim, a intervenção clínica do enfermeiro no meio pré-hospitalar inclui: a estabilização do indivíduo vítima de acidente e/ou doença súbita, no local da ocorrência, garantindo a manutenção das funções vitais; o acompanhamento e a vigilância durante o transporte primário ou secundário da vítima, desde o local da ocorrência até à unidade hospitalar de referência, garantindo a prestação de cuidados de enfermagem que se exigem para a manutenção das funções vitais durante o transporte; a informação e o acompanhamento à família da vítima de forma a minimizar o seu sofrimento (Ordem dos Enfermeiros, 2007).
O enfermeiro é o único profissional de saúde que incorpora todos os meios medicalizados do INEM. De acordo com o modelo de organização estrutural e funcional da carreira especial de enfermagem no INEM, os enfermeiros são responsáveis por dois níveis de intervenção: o da gestão e o da prestação de cuidados (Magalhães, 2014).
A gestão dos cuidados de Enfermagem não pode ficar enclausurada em protocolos, deve ser capaz de se reconstruir num novo modelo que contemple também a avaliação das necessidades da pessoa num contexto muito peculiar, que não se perderam com a instalação de um evento patológico ou traumático urgente/emergente. Se por um lado a rigidez dos protocolos constitui uma mais-valia na decisão terapêutica é, por outro lado, frágil quando resume o ser humano a uma doença ou a um traumatismo (Mota et al., 2019). A essência da Enfermagem no socorro pré-hospitalar é cuidar no processo de cura/saúde. Não o conseguindo, arrisca-se a ser transformada numa disciplina puramente tecnicista, infinitamente redutora para a condição humana, e com isso, cair inútil às mãos de outras profissões já existentes.
Por tudo isto, a Enfermagem, no pré-hospitalar, expõe-se a uma condição única na realidade portuguesa. A vítima deposita no enfermeiro a esperança de garantir a sua sobrevivência, não descurando, no decorrer de todo o processo, que o cuidar, intimamente ligado à génese da Enfermagem, seja também salvaguardado.
Gestão de Equipas no Socorro Pré-hospitalar
A gestão das equipas de socorro pré-hospitalar é parte integrante da função dos enfermeiros das Ambulâncias SIV. O enfermeiro das ambulâncias SIV tem, em muitas circunstâncias, a função de team leader, não apenas do meio que habitualmente lidera, mas também de outros meios de socorro que estejam a atuar no local da ocorrência, nomeadamente, as tripulações dos bombeiros.
A liderança em Enfermagem é uma matéria largamente estudada na academia, contudo, e à semelhança de outras, continua a não estar explorada no contexto pré-hospitalar. Aos enfermeiros com funções de gestão, são exigidos conhecimentos, habilidades e atitudes adequadas para implementar as suas funções com eficácia. Estes enfermeiros podem desenvolver as suas práticas de liderança durante a sua atuação, informando a equipa in loco do que precisa fazer, apelando aos valores das pessoas, motivando para que assumam responsabilidades, capacitando para a ação e encorajando a equipa para que esta se sinta motivada (Silva et al., 2017). O enfermeiro gestor é também responsável por garantir a segurança dos cuidados de saúde, através da implementação de metodologias de gestão do risco e do desenvolvimento de estratégias de gestão para a segurança dos serviços. Para o efeito, esta segurança terá que ser mais abrangente e complexa do que apenas a segurança do doente. Ela poderá estar dependente da própria segurança do enfermeiro (Correia, Martins, & Forte, 2020).
No contexto pré-hospitalar, e em ambientes particularmente hostis, como acidentes rodoviários com várias vítimas de trauma, pessoas em paragem cardiorrespiratória, e outras, a capacidade de gestão assume contornos mais complexos e de maior dificuldade, pelo que se impõem tomadas de decisão firmes, mas solidárias, suportadas pela melhor evidência científica, mas ajustadas às singularidades dos envolvidos. É ainda fundamental que a tomada de decisão seja sujeita à avaliação quanto à sua eficácia global. Sem um modelo de avaliação da qualidade dos cuidados implementados, todo este processo de gestão fica, em certa medida, negligenciado.
A tomada de posição enquanto gestor destas equipas implica que o enfermeiro team leader consiga orientar vários profissionais que, muito possivelmente, nem conhecia antes da ocorrência. Esta realidade acarreta desafios acrescidos. Importa referir que a função de gestor nestas circunstâncias, não inibe ao enfermeiro a obrigatoriedade de prestar cuidados urgentes e de alta complexidade às vítimas, pelo contrário, esta função mantém-se, também ela, como prioritária. A capacidade de gerir este processo não pode ser obtida sem que haja, na retaguarda, modelos de formação de base específicos e direcionados para esta realidade muito particular, e não pode ser mantida e otimizada sem que haja, periodicamente, formação contínua ministrada e supervisionada por entidades especializadas em matéria de gestão de risco.
A imprevisibilidade que caracteriza o socorro pré-hospitalar repercute-se numa expectável dificuldade acrescida dos enfermeiros para gerir em toda a ocorrência. O Nursing Leadership Institute categoriza as competências de gestão em Enfermagem em seis domínios: domínio pessoal; eficácia interpessoal; gestão financeira; gestão de recursos humanos; cuidados com os diferentes profissionais, com os doentes e consigo; e pensamento sistematizado (Sherman, Bishop, Eggenberger, & Karden, 2007). O perfil do enfermeiro pré-hospitalar deve agregar um conjunto de atributos pessoais e profissionais que o habilitem para ser capaz de responder, com eficácia, a todas a necessidades já apontadas.
Ao nível da gestão organizacional, importa frisar que estão previstas três categorias de intervenção, desde a direção até à gestão intermédia: enfermeiro diretor; enfermeiros, com funções de chefia, um por cada delegação regional; enfermeiros com funções de chefia na coordenação de meios, em cada delegação regional (Magalhães, 2014).
Investigação Científica em Enfermagem Pré-hospitalar
A pertinência de se fomentar investigação no âmbito da prestação de cuidados de emergência no pré-hospitalar é uma das estratégias mais relevantes para que a Enfermagem consolide o seu espaço. Seguir um modelo assente em protocolos de intervenção, não deve impedir a inclusão de modelos de planeamento de cuidados que promovam a saúde física, emocional e social das pessoas socorridas no pré-hospitalar. Para o efeito, contudo, é imperativo que a investigação procure como e porquê. A Enfermagem pré-hospitalar não pode nem deve continuar a receber de outras disciplinas as principais linhas de conhecimento para suportar as suas práticas. Esta posição poderá colocar em risco, numa primeira instância, a própria identidade da profissão no contexto pré-hospitalar, e em segundo, pôr em risco a própria existência de enfermeiros no pré-hospitalar.
A prática baseada na evidência assume-se como a metodologia mais coerente, segura e sistematizada de determinar as práticas profissionais. O resultado desta metodologia repercute-se na implementação das intervenções mais adequadas, com a melhor otimização dos recursos disponíveis, apoiando-se na melhor e mais recomendada tomada de decisão (Bandeira, Witt, Lapão, & Madruga, 2017). O desenvolvimento de investigação pelos enfermeiros do pré-hospitalar em Portugal reclama maior urgência, para que a profissão se solidifique como um todo, num campo cuja indefinição de profissões é, em si, uma preocupante ameaça. A investigação oferece identidade, na sua ausência, a identidade dilui-se numa incerteza preocupante. A emancipação de profissões tecnicistas tende a ocupar os espaços profissionais mais indistintos, e profissões como a Enfermagem arriscam-se a ficarem reduzidas à sua ineficaz resposta identitária. É emergente que a Enfermagem marque uma posição clara no contexto pré-hospitalar e a forma mais exequível de a fazer é com recurso à investigação científica, é com recurso à prática baseada na evidência.
A literatura contemporânea evidencia que a natureza do trabalho dos enfermeiros em cuidados pré-hospitalares é complexa e a competência destes profissionais foi identificada como um fator importante para a prestação de cuidados de alta qualidade e seguros, contudo, verifica-se que esta “competência” em cuidados pré-hospitalares continua a não ser explorada de forma mais detalhada (Nilsson, Johansson, Nordstrom, & Wilde-Larsson, 2020). Para os mesmos autores a investigação no domínio dos cuidados de saúde de emergência revela a necessidade de estratégias para avaliar o desenvolvimento de competências entre os enfermeiros. O desenvolvimento da disciplina de Enfermagem no âmbito do pré-hospitalar carece, portanto, de uma abordagem mais complexa e determinada, com linhas muito bem definidas de investigação. Manter fiel a arquitetura histórica da profissão sem fragilizar o seu próprio futuro.
A imagem disruptiva que parece emergir quando analisamos a literatura científica inerente à Enfermagem pré-hospitalar deverá servir de mote para explorar todos os cuidados de saúde relativos ao socorro. Deverá servir, também, para alavancar a própria construção da identidade profissional dos enfermeiros, em contexto dos cuidados de Enfermagem no pré-hospitalar, que teima em se esconder, ora por apatia, ora por inércia.
Conclusões
A Enfermagem pré-hospitalar deve assentar as suas premissas no cuidar durante o processo de cura/saúde, salvaguardar a segurança dos cuidados de saúde, através da implementação de metodologias de gestão do risco e do desenvolvimento de estratégias de gestão para a segurança do socorro e, por último, desenvolver, potenciar e estimular a investigação no âmbito da prestação de cuidados de emergência que potenciem toda a sua assistência.
No pré-hospitalar a Enfermagem não pode esgotar-se numa competência acrescida, é necessário que a diferenciação técnica e humana que lhe é pedida no quotidiano seja precedida por formação, também ela, diferenciada. Não é exequível exigir-se aos enfermeiros atributos e competências que ultrapassam a formação atualmente disponibilizada e formalmente exigida. Novos modelos de ensino devem ser desenvolvidos para que estes profissionais continuem a honrar as necessidades dos doentes, para que continuem a honrar a essência da Enfermagem na sua globalidade e, no fundo, para honrar o próprio futuro: o cuidar para a cura/saúde.
Importa também explorar qual a experiência profissional dos enfermeiros antes de iniciarem as suas funções nas ambulâncias SIV e qual o número médio de anos em atividade. Definir-se um perfil ideal de enfermeiro pré-hospitalar será uma enorme mais-valia para otimizar o socorro na sua globalidade.
Estudar a realidade pré-hospitalar é indispensável para garantir a qualidade dos cuidados prestados. Assim, recomenda-se que a discussão desta matéria seja promovida em todas as instâncias, clínica, científica, pedagógica e formativa, com o rigor e contraposições merecidas, e devolvida à clínica, onde, por certo, fará toda a diferença.