Introdução
A Organização Mundial de Saúde (2006), entende como cuidados de saúde de qualidade os que contemplam um elevado grau de excelência profissional, com riscos mínimos e resultados em saúde com ganhos para os doentes e eficiência na utilização dos recursos.
Apesar de a qualidade em saúde não se obter apenas com o exercício profissional dos enfermeiros, promover e implementar programas de melhoria contínua de qualidade dos cuidados de enfermagem constitui um importante indicador para o desenvolvimento da profissão e contribui e influencia os resultados e ganhos em saúde como um todo (Seabra, Sá & Amendoeira, 2013)
Os enunciados descritivos da qualidade do exercício profissional dos enfermeiros constituem-se assim, como um instrumento relevante para precisar o papel do enfermeiro junto dos clientes, dos outros profissionais, do público e das políticas (Ordem dos Enfermeiros, 2002).
Na prática, os programas de melhoria contínua da qualidade dos cuidados de enfermagem implicam o envolvimento dos enfermeiros no planeamento e implementação de mudanças que visem uma melhoria efectiva, de modo a oferecer cuidados de enfermagem que atendam e excedam as expetativas do cliente (Ordem dos Enfermeiros, 2008). Assim, a melhoria contínua da qualidade resulta da intencionalidade na mudança, para a obtenção de padrões mais elevados de cuidados de enfermagem.
Partindo da premissa de que a prestação de cuidados de Enfermagem às pessoas, e em concreto às crianças em sofrimento, como é o caso particular das crianças com dor, tem como finalidade o seu alívio e a promoção do bem-estar, cabe ao enfermeiro avaliar, diagnosticar, planear e executar as intervenções necessárias, ajuizando os resultados e considerando a dor como uma prioridade, no âmbito das respostas em cuidados de enfermagem de qualidade (Ordem dos Enfermeiros, 2008).
A Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem define dor como uma “perceção comprometida: aumento de sensação corporal desconfortável, referência subjetiva de sofrimento, expressão facial característica, alteração do tónus muscular, comportamento de autoproteção, limitação do foco de atenção, alteração da perceção do tempo, fuga do contacto social, processo de pensamento comprometido, comportamento de distração, inquietação e perda de apetite (International Coucil of Nurses, 2011).
Por seu lado, a Direcção-Geral da Saúde define dor como sendo “uma experiência pessoal, multidimensional desagradável, com grande variabilidade na sua perceção e expressão, sem indicadores específicos”. Reconhece ainda que a dor “acompanha, de forma transversal, a generalidade das situações que requerem cuidados de saúde” (Portugal, Ministério da Saúde, Direção Geral da Saúde, 2010).
Todos os profissionais de saúde têm a responsabilidade profissional e ética de providenciar um controlo da dor efetivo e seguro durante os procedimentos dolorosos. O controlo da dor “é um dever dos profissionais de saúde e um direito das crianças”, possibilitando a avaliação e reavaliação sistemáticas da dor o sucesso do seu controlo e permitindo, a forma como este é efetuado, avaliar a qualidade dos cuidados prestados (Portugal, Ministério da Saúde, Direção Geral da Saúde, 2010).
Foi neste contexto, e considerando a antecipação e resposta efetiva às situações de dor na criança hospitalizada de extrema importância para uma prática de qualidade, que surgiu o interesse em identificar resultados em saúde sensíveis às intervenções dos enfermeiros dirigidas à criança com dor, pelo que formulámos a seguinte questão:
Quais são os critérios/standards de qualidade a implementar na prestação de cuidados de enfermagem na gestão da dor da criança hospitalizada?
Definindo-se como objetivo orientador do estudo: Identificar critérios/standards de qualidade a implementar na prestação de cuidados de enfermagem na gestão da dor na criança hospitalizada.
1. Métodos
Realizou-se uma revisão sistemática da literatura de acordo com os procedimentos metodológicos descritos no Cochrane Database of Systematic Reviews (Higgins & Green, 2011).
A questão de investigação foi formulada seguindo a matriz PI[C]OD
P | Participants | Crianças hospitalizadas. |
I | Interventions | Intervenções de enfermagem na gestão da dor |
C | Comparisons | Não aplicável |
O | Outcomes | Critérios/Standards de qualidade |
D | Design | Ensaios clínicos aleatórios, estudos correlacionais; estudos de coorte transversal; estudos experimentais; estudos prospetivos, Estudos de revisão sistemática e revisão de peritos |
Para identificação de estudos relevantes dentro dos critérios definidos foi efetuada busca nas bases de dados científicas B-ON, Google Scholar, Scielo, PUBMED, Academic Search Complete, MedicLatina, Health Technology Assessments, Nursing & Allied Health Collection, Cochrane Database of Systematic Reviews (via EBSCO) de estudos publicados entre 2012 e 2019 nos idiomas português, inglês e espanhol.
Utilizaram-se os descritores em língua portuguesa e inglesa “Dor”, “gestão da dor”, “cuidados de enfermagem”, “criança”, “hospitalização” e “standards de qualidade” com os operadores booleanos “and” e “or” nas seguintes formulações: (pain) AND (management) AND (measures) OR (nursing practice) AND (care) AND (quality assurance) OR (standards) AND (child) OR (Pediatrics) and (Hospitalization). Da pesquisa resultaram 726 estudos, que após uma primeira análise foram reduzidos para 159, por serem artigos repetidos, não estarem relacionados com o tema ou não estarem acessíveis em formato completo.
Pela aplicação dos testes de relevância I e II de Pereira e Bachion (2006), foram selecionados 4 estudos para avaliação crítica da qualidade metodológica efetuada por dois investigadores independentes. Após esta análise, foram incluídos na revisão sistemática 4 estudos, 2 classificados com nível de evidência A (um estudo controlado randomizado e uma revisão sistemática) e dois com nível de evidência B (Estudos do tipo transversal analítico).
2. Resultados
Esta RSL identificou e incluiu quatro estudos de análise quantitativa dois de elevada e dois de moderada qualidade, que se centram na definição de boas práticas na gestão da dor em crianças hospitalizadas, dando assim resposta à questão inicialmente formulada.
Dos estudos selecionados será efetuada uma síntese narrativa dos achados que constituem o corpus deste estudo, reconhecidos como descrevendo resultados sensíveis às intervenções de enfermagem e que serão apresentados em tabela.
No Tabela 1 são apresentados os principais objetivos e resultados para uma prática de cuidados de enfermagem de qualidade na abordagem da dor na criança hospitalizada. Os estudos, deixam claro as intervenções necessárias a práticas de qualidade na gestão da dor em crianças hospitalizadas, tendo por base os resultados encontrados e as diversas guidelines que os suportaram, identificando por outro lado as barreiras ou dificuldades para uma implementação efetiva de algumas reconhecidas como de média qualidade (Czarnecki et al., 2011; Lee, Yamada, Kiololo, Shorkey, & Stevens, 2014). Evidenciam também as preocupações com o tema e com a necessidade de serem implementadas medidas adequadas aos contextos específicos da prática clínica.
3. Discussão
A necessidade de implementar sistemas de qualidade é uma realidade internacional e os enunciados descritivos da qualidade do exercício profissional dos enfermeiros constituem-se como um instrumento relevante para precisar o papel do enfermeiro junto dos clientes, dos outros profissionais, do público e das políticas de saúde. (Portugal, Ministério da Saúde, Direção Geral da Saúde, 2010).
Nesse processo, e quando o foco da intervenção é a inovação em saúde, o estudo de revisão sistemática da literatura permite identificar as melhores evidências disponíveis para a tomada de decisão no quotidiano dos cuidados, constituindo a prática baseada nas evidências o suporte da transformação das práticas para a qualidade dos cuidados de enfermagem (Cardoso, Trevisan, Cicolella & Waterkemper, 2019)
A problemática da gestão da dor em pediatria tem sido alvo da publicação de diversas guidelines, contudo, na sua implementação têm sido identificadas inúmeras barreiras que dificultam a aplicação dessas normas, tal como é afirmado em alguns dos estudos selecionados (Czarnecki et al., 2011; Rosenberg et al., 2016). Destas barreiras, todas elas com impacto na abordagem da dor, salienta-se a baixa prioridade dada ao tratamento da dor por parte da equipa médica, o que se reflete numa atuação não consensual de toda a equipa. Porém, justificações de ordem cultural ou de falta de iniciativa por parte das famílias para a utilização de analgésicos para alívio da dor, e sobretudo as crenças, a falta de tempo, de reflexão ou mesmo de informação sobre as suas vantagens, por parte das equipas de enfermagem, constituem os reais impeditivos da sua valorização e consequentemente de uma gestão adequada da dor na criança hospitalizada, com interferência direta na qualidade dos cuidados prestados pelos enfermeiros neste âmbito. Os standards de qualidade dos cuidados para o tratamento ideal da dor, reconhecidos nos mesmos estudos, corroboram o defendido pela DGS (2010), segundo a qual é de extrema importância a sua avaliação inicial enquanto sinal vital, com recurso a instrumentos válidos, seguros e clinicamente sensíveis, tendo-se sempre em consideração o tipo de dor, a situação clínica e a idade/desenvolvimento da criança. Porém, para que isto se torne realidade, a gestão sistemática da dor em pediatria deve ser definida como norma de boa prática, devendo a sua presença e intensidade, ser sistematicamente valorizadas, diagnosticadas, avaliadas e registadas. pois, tal como defendido, o sucesso das intervenções terapêuticas adotadas e mantidas até que a dor seja minimizada, dependem do conhecimento e treino, da capacidade de iniciativa e envolvimento de toda a equipa multidisciplinar incluindo a família e da definição de boas práticas e sua monitorização (Rosenberg et al., 2016; Almeida, 2015; Czarnecki et al., 2011).
A avaliação da dor em lactentes e crianças pequenas sempre foi uma tarefa difícil, principalmente porque as crianças dificilmente podem expressar ou explicar a intensidade da sua dor, dificultando assim uma intervenção adequada dos enfermeiros. (Crellin, Sullivan, Babl, O'Sullivan, & Hutchinson, 2007). Além disso, conhecer a causa da dor revela-se fundamental, dado que orienta na decisão e para a definição de estratégias para o seu controlo. Ao fazer um diagnóstico tendo como foco o estado de conforto ou de dor, o enfermeiro tem o papel de avaliar principalmente os sinais fisiológicos e comportamentais relacionados com a dor/mal-estar. O principal objetivo dessa avaliação é obter informações o mais autênticas possível sobre a sua localização, intensidade e os efeitos que esta causa na criança, quer física, quer psicologicamente, o que, sempre que possível, deverá ser feito através da autoavaliação da criança (Rosenberg, et al., 2016).
Neste sentido, o estudo de Lee, Yamada, Kiololo, Shorkey, & Stevens (2014) avaliou, através de uma RSL, a qualidade das guidelines para a gestão da dor aguda particularmente em procedimentos, em crianças hospitalizadas, de forma a fornecer recomendações. O estudo identifica uma sequência organizada e clara de estratégias e normas de boa prática para a gestão da dor neste âmbito, que enfatizam, para além das recomendações já referidas, o ajuste regular das ferramentas utilizadas, a importância de reconhecer fatores influenciadores da expressão e avaliação da dor pela criança, como o idioma, etnia e fatores culturais e ainda a necessidade de incluir a família através do aconselhamento e fornecimento de informações escritas, quer para o seu empoderamento, quer para a continuidade dos cuidados. A gestão diferenciada da dor tem como suporte a sua valorização, a sua avaliação e registo sistemáticos e o seu tratamento, utilizando medidas farmacológicas complementadas com medidas não farmacológicas (Lee, Yamada, Kiololo, Shorkey, & Stevens (2014)). O sucesso da estratégia terapêutica está dependente da monitorização regular da dor e de uma abordagem em todas as suas vertentes. (Portugal. Ministério da Saúde. Direção Geral da Saúde, 2003). Para isso, as escolhas dos instrumentos de avaliação devem atender “ao tipo de dor, idade da pessoa, situação clínica, propriedades psicométricas, critérios de interpretação, escala de quantificação comparável, facilidade de aplicação e experiência de utilização em outros locais” (Portugal. Ministério da Saúde. Direção-Geral da Saúde, 2003). Neste âmbito, “a aquisição e atualização de conhecimentos sobre dor é uma responsabilidade que deve ser partilhada pelas instituições de ensino, de prestação de cuidados e pelos enfermeiros individualmente” (Portugal. Ministério da Saúde. Direção-Geral da Saúde, 2003) A mesma entidade afirma que a “efetividade do controlo da dor decorre do compromisso das instituições de saúde, tendo os enfermeiros com responsabilidade na gestão das organizações de saúde, o dever de promover políticas organizacionais para o seu controlo”. (Portugal. Ministério da Saúde. Direção-Geral da Saúde, 2003). Avaliar as crenças dos enfermeiros pediátricos e as práticas de controlo da dor antes de iniciar qualquer programa e após um programa de intervenção, tal como descrito por Vincent, Wilkie & Wang (2011), é uma prática que revelou resultados sensíveis a uma melhoria efetiva dos cuidados de enfermagem e que vão ao encontro das expetativas do cliente, aumentando a sua satisfação, importante indicador da qualidade dos cuidados prestados. A melhoria contínua da qualidade resulta do processo, cuja intencionalidade terapêutica para a transformação das práticas tem como resultado a satisfação do cliente e a elevação dos padrões de qualidade dos cuidados de enfermagem (Machado, 2014).
A experiência de dor é singular na sua perceção e resposta, dado que é influenciada por fatores biológicos, cognitivos, psicológicos e socioculturais, fatores a ter em particular atenção na avaliação da dor nas crianças, tal como recomendado por Rosenberg et al (2016), porquanto, esta não poderá ser adequadamente avaliada se baseada na subjetividade, experiência individual, critérios e crenças do profissional de saúde.
Por outro lado, a criança, pelas suas características desenvolvimentais é particularmente sensível à dor e frequentemente sujeita a procedimentos dolorosos em ambiente hospitalar, sendo a dor neste caso, frequentemente acompanhada por sentimentos antecipatórios de medo e ansiedade. Assim sendo, é de extrema importância que os enfermeiros, em parceria com os pais/cuidador principal, saibam avaliar e interpretar o estado emocional da criança, para que possam intervir corretamente. (Ordem dos Enfermeiros, 2013). Neste âmbito, o estudo de Rosenberg et al (2016) revelou como o incremento do indicador de utilização de anestésico tópico teve como consequência a eficácia desta prática e a satisfação da criança/pais, concluindo-se que a utilização de lidocaína tópica é uma estratégia fundamental para diminuir a dor secundária a procedimentos invasivos, mas que infelizmente nem sempre é utilizada. As justificações para a não utilização identificadas no estudo de Czarnecki, et al (2011), revelaram-se idênticas às da gestão da dor no geral, salientando-se o tempo insuficiente para pré medicar as crianças antes dos procedimentos, falta de solicitação por parte dos pais/crianças, falta de protocolos/guidelines, falhas na prescrição; não ter disponível anestésico tópico, não refletir sobre as vantagens da sua utilização e falta de informação/conhecimentos sobre o assunto. No mesmo sentido, o sucesso do programa de intervenção promovido por Rosenberg et al., (2016) centrou-se na definição de políticas interdisciplinares, criação de uma rede de “patronos” e liderança responsável e de uma equipa motivada após implementação de um programa de formação multimédia, criando assim os fundamentos teóricos para promover esta abordagem. Além disso foi considerado como primordial preparar a criança e os pais/cuidador principal para os procedimentos Rosenberg (2016) e de Lee (2014), o que se revela uma prática consistente com a filosofia de parceria de cuidados tão frequentemente utilizada em pediatria.
No mesmo sentido, a Ordem dos Enfermeiros e a DGS (2012) reforçam que a gestão da dor deve ser efetuada segundo protocolos de atuação multiprofissionais atualizados, devendo o enfermeiro prevenir e tratar a dor decorrente de intervenções de enfermagem e de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos agrupando-os e reduzindo o seu número. Além disto, estes devem ser realizados em sala própria, num ambiente calmo e agradável, recorrendo a intervenções não farmacológicas em complementaridade com as farmacológicas, revelando-se estas práticas de grande eficácia se associadas a uma preparação psicológica da criança e pais/cuidador principal antes dos procedimentos, orientando-os para como devem proceder, envolvendo-os assim no apoio à criança mas nunca na sua restrição física. Nos lactentes, deve ainda considerar-se o uso de contenção facilitada, amamentação ou sacarose com sucção não nutritiva.
O reconhecimento da individualidade da dor na criança e a sua variação, quer na perceção, manifestação, quer nas respostas alcançadas, leva os enfermeiros a prestar cuidados diferenciados e auxiliam a criança a lidar com cada situação de dor, facilitando a sua expressão. Planear intervenções individualizadas de autocontrolo da dor, promove a melhoria contínua da qualidade dos cuidados prestados (Ordem dos Enfermeiros, 2013).
Assim, definir indicadores de qualidade é um dos requisitos de qualquer programa de melhoria contínua e tal como divulgado no estudo de. Czarnecki, et al (2011) esta definição descreve o desempenho esperado para determinada intervenção, comprometendo a equipa para o processo e os resultados.
Conclusões
A melhoria dos cuidados de saúde está na agenda da maioria dos sistemas de saúde. Esta RSL, permitiu identificar, critérios/standards sensíveis às intervenções dos enfermeiros dirigidas à criança com dor. Estes podem ser sintetizados em medidas aplicáveis nos diversos domínios da prestação de cuidados, salientando-se as seguintes:
ao nível da organização dos cuidados: definição de políticas interdisciplinares com criação de protocolos/guidelines de boas práticas para gestão da dor, instituindo lideres para a sua monitorização e avaliação regular;
ao nível da prática de cuidados: implementação do programa de gestão da dor, respeitando a documentação dos cuidados; aplicação das escalas de avaliação específicas para as diversas faixas etárias ou estadios neuro-desenvolvimentais pediátricos assim como, o uso em complementaridade das estratégias farmacológicas e não farmacológicas de alívio da dor e das medidas promotoras da parceria de cuidados com a família; defender cuidados culturalmente sensíveis neste âmbito;
ao nível da formação/investigação: promover a atualização contínua dos enfermeiros neste âmbito, escolhendo formas motivadoras de aprendizagem, porquanto as evidências demonstram o seu significativo contributo na intencionalidade terapêutica e consequentemente na qualidade das práticas.