Introdução
Atualmente o cancro é considerado um fenómeno preocupante do ponto de vista da saúde pública e epidemiológico, pois os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2018) evidenciam, a nível mundial, 18 milhões de novos casos, sendo 23,4% na europa. Esta patologia surge, globalmente, como a segunda causa de morte e foi responsável por 9,6 milhões de óbitos em 2018, verificando-se que os tumores malignos ocorrem mais frequentemente a nível do pulmão, mama, colorretal, próstata, pele (não melanoma) e estômago. Em Portugal, a incidência da doença oncológica aumenta, em média, cerca de 3% por ano, tendo-se observado 50 000 novos casos em 2018 (OMS, 2018).
Os sobreviventes de cancro, para além de serem uma população em crescimento, possuem um conjunto de necessidades físicas e psicossociais muito particulares, resultantes da doença oncológica ou dos efeitos adversos associados às diferentes modalidades terapêuticas (Reigle, Campbell, & Murphy, 2017), que podem impactar de forma significativa a qualidade de vida. Portugal tem atualmente cerca de 500 mil sobreviventes de cancro (Liga portuguesa contra o Cancro, 2017).
A Reabilitação é considerada um serviço de saúde essencial para indivíduos com uma ampla variedade de condições de saúde, ao longo do ciclo de vida e durante todas as fases de tratamento. Esta especialidade foca-se no funcionamento da pessoa e não na sua doença, dando ênfase à educação e capacitação da mesma, de forma a que esta possa gerir a sua condição de saúde, adaptar-se à sua situação e permanecer o mais independente e ativa possível (OMS, 2019). A intervenção do enfermeiro de cuidados gerais engloba o cuidado com a vertente reabilitativa, porém compete ao Enfermeiro Especialista em Enfermagem de Reabilitação (EEER) intervir de acordo com as suas competências específicas. A Enfermagem de Reabilitação não se reduz a uma especialidade das Ciências de Enfermagem, pois assume-se como uma filosofia de prestação de cuidados, impregnada de um espírito que demonstra um verdadeiro interesse pela pessoa, sem a diminuir à sua condição de saúde ou às suas características (Santos, Pêla, Ferreira, & Trindade, 2014).
O EEER tem um papel a cumprir na equipa multidisciplinar, pois esta deve estar dotada de recursos diferenciados, de forma a oferecer à pessoa uma autêntica combinação de competências. Assim, através desta revisão narrativa da literatura, pretendemos aprofundar os conceitos da enfermagem de reabilitação no âmbito específico da assistência em oncologia, e simultaneamente, refletir sobre a prática clínica especializada, a educação, investigação e o papel das organizações profissionais.
1. Revisão narrativa da literatura
Os tratamentos oncológicos podem provocar uma morbilidade importante e esta surge durante a fase ativa de tratamento ou meses ou anos após o seu términus (American Cancer Society- ACS, 2016). Dentro dessas morbilidades podemos destacar a fadiga, o linfedema, a dor, as neuropatias periféricas, o desequilíbrio, alterações da mobilidade, disfunção intestinal ou vesical, disfonia e outras alterações da comunicação, disfagia, disfunção sexual, problemas de ordem cognitiva e psicossocial, entre outras (Silver, Baima, & Mayer, 2013 cit. por Alfano & Pergolotti, 2018; ACS, 2016), sendo que uma intervenção específica no âmbito da reabilitação tende a ser favorável na sua maioria (Alfano, Cheville, & Mustian, 2016 cit. por Reigle, et al., 2017). Atualmente, de acordo com Reigle, Campbell, e Murphy (2017), a maioria dos modelos de prestação de cuidados não integram cuidados específicos no âmbito da reabilitação durante a trajetória de tratamento da doença oncológica. Ou então, segundo outros autores, os cuidados de reabilitação que amenizam efetivamente a deficiência física ou previnem a incapacidade, são subutilizados de forma importante em todas as fases de tratamento (Morris et al., 2016).
A integração da Reabilitação na trajetória de tratamento da doença oncológica
A Reabilitação, sendo uma especialidade multidisplinar, compreende um corpo de conhecimentos e procedimentos específicos que permite auxiliar as pessoas com doenças agudas, crónicas ou com as suas sequelas, a maximizar o seu potencial funcional e independência. Assim, o seu intuito é melhorar a funcionalidade, promover a independência e ainda a máxima satisfação da pessoa, preservando a autoestima (Regulamento nº 392/2019). Hesbeen (2003), defende que esta disciplina é o testemunho de um espírito peculiar pelo interesse demonstrado pelo futuro da pessoa, ainda que a cura ou a reparação do seu corpo não seja de todo possível. Assim, a reabilitação combina uma disciplina e um espírito cuja finalidade é trabalhar em prol da pessoa e das populações portadoras de uma incapacidade ou deficiência, de forma a que sejam o mais independentes possível tendo em conta as situações presentes no seu quotidiano, dando mais vida ao tempo que passa (Hesbeen, 2003).
Independentemente do prognóstico da doença oncológica, Reigle et al. (2017), afirmam que os indivíduos com potencial de recuperação devem ser incluídos na reabilitação de índole preventiva, reestruturante, de suporte ou paliativa. A reabilitação em situação de doença oncológica é definida como um cuidado que deve ser integrado ao longo do período de tratamento do cancro. Este deve ser realizado por profissionais treinados em reabilitação, que orientam a sua prática no sentido de diagnosticar e tratar as complicações de ordem física, psicológica e cognitiva, associadas à patologia e aos seus tratamentos, com o intuito de recuperar a função, reduzir a multiplicidade de sintomas, maximizar a independência e incrementar a qualidade de vida nesta população tão complexa, do ponto de vista médico (Silver & Mayer, 2013 cit. por Reigle et al., 2017).
De acordo com Alfano e Pergolotti (2018), este é um momento crítico no que respeita à reabilitação na doença oncológica, pois a mudança de paradigma para a prestação de cuidados baseada em valores e a necessidade de identificar as intervenções que melhorem os resultados da pessoa, enquanto se reduzem os custos, tem aumentado o interesse em colocar a par a reabilitação com o tratamento oncológico. Atualmente, são necessários 4 esforços sinérgicos para incluir os cuidados de reabilitação como parte integrante do tratamento da doença oncológica: (1) implementar um modelo prospetivo de vigilância da reabilitação no tratamento do cancro, avaliando e referenciando as pessoas com doença oncológica para os cuidados de reabilitação desde o diagnóstico; (2) realizar uma avaliação, no domínio da reabilitação, que englobe a pessoa na sua totalidade, incluindo a funcionalidade, incapacidade e a saúde, e os objetivos devem focar-se em maximizar a funcionalidade e atividade e melhorar a capacidade da pessoa para participar plenamente no trabalho, lazer e no desempenho de outros papeis; (3) definir a intensidade e as intervenções no âmbito da reabilitação, que devem ser adaptadas em função da informação clinica, fisiológica, psicossocial e dados obtidos a partir da pessoa, e perceber se o intuito é recuperar a função, melhorar a participação e/ou prevenir os efeitos tardios associados aos tratamentos; e por fim (4), desenvolver diferentes tipos de estudos, com novos objetivos, destacando a eficácia e términus do tratamento oncológico, a prevenção dos efeitos tardios do tratamento, a participação da pessoa na atividade laboral e a utilização ulterior dos cuidados de saúde e respetivos custos, que possam demonstrar o valor da reabilitação na pessoa com diagnóstico de cancro (Alfano & Pergolotti, 2018).
A atuação do EEER na pessoa com doença oncológica
A Reabilitação pode ser entendida como um processo, que surge enquadrado no seio da equipa interdisciplinar, e inclui o conhecimento da enfermagem, com especial destaque para o EEER. O conhecimento aprofundado do enfermeiro especialista traduz-se, no caso do EEER, por competências específicas em diferentes domínios: no cuidado de pessoas com necessidades especiais, ao longo do ciclo de vida, em todos os contextos da prática de cuidados; na capacitação da pessoa com deficiência, limitação da atividade e/ou restrição da participação para a reinserção e o exercício da cidadania; e na maximização da funcionalidade, desenvolvendo as capacidades da pessoa (Regulamento nº 392/2019).
O core da atividade do EEER é constituído pelo potencial funcional e pela independência. Contudo, espera-se um cuidado holístico por parte destes profissionais, que considere a Pessoa um ser único, num contexto específico e com as suas crenças e particularidades (Caldeira, 2016). Os conhecimentos e as competências especializadas destes enfermeiros, na área da reabilitação, estão dirigidas à recuperação funcional motora, sensitiva, cognitiva, cardiorrespiratória, da comunicação, da alimentação, da eliminação e da sexualidade da pessoa com necessidades especiais. O EEER, através da sua atividade, tem como objetivo recuperar e capacitar a pessoa vítima de doença aguda ou crónica que acarrete défices funcionais de natureza ortopédica, músculo-esquelética, cardiovascular e respiratória (Regulamento nº 392/2019). No entanto, estes profissionais são detentores de uma variedade de competências, que ultrapassam a intervenção ao nível funcional, e que lhes permite promover a recuperação, a readaptação, o autocontrolo, o autocuidado, facilitando os processos de transição saúde/doença e capacitam a pessoa e o cuidador para a reinserção social. Assim, permitem melhorar a qualidade de vida, partindo do incremento da funcionalidade e da autonomia, envolvendo a dimensão social e emocional (Pestana, 2016).
Na perspetiva de Reigle et al. (2017), a reabilitação na doença oncológica implica uma abordagem multidisciplinar de forma a garantir a qualidade dos cuidados para a pessoa com cancro. Surge então a necessidade de ter conhecimentos no domínio da biopatologia do cancro, sobre as morbilidades resultantes dos tratamentos e saber identificar quais as morbilidades associadas à doença ou aos seus tratamentos que são passíveis de cuidados de reabilitação. Desta forma, o papel do EEER na reabilitação da pessoa com doença oncológica é similar ao das outras populações: presta cuidados diretos baseados na evidência, apoio psicossocial, educação da pessoa/família, gestão de cuidados e a promoção da saúde, ao longo do percurso de tratamento, sendo uma abordagem consistente com o modelo de competências, independentemente do diagnóstico da pessoa.
Hesbeen (2003), defende que a reabilitação, assumindo as suas diversas particularidades, torna-se um contexto propício ao desenvolvimento e à afirmação da enfermagem, permitindo ainda uma renovação de todos os modelos de prática de cuidados.
O contributo do modelo teórico de Orem
Um dos modelos teóricos que tem sustentado os cuidados especializados de enfermagem de reabilitação é o do Défice de Autocuidado da Teoria de Enfermagem de Orem (1971), que engloba três teorias interrelacionadas: a Teoria do Autocuidado, a Teoria do Défice de Autocuidado e a Teoria dos Sistemas de Enfermagem. Nesta teoria, o autocuidado é percebido como uma capacidade ou condição humana reguladora, com tríplice característica: universal, de desenvolvimento e de desvio de saúde (Orem, Taylor, & Renpenning, 2001). Considerando a perspetiva da Teoria dos Sistemas de Enfermagem de Orem, que estabelece a estrutura e o conteúdo da prática de enfermagem, a capacitação da pessoa é planeada de forma sistémica e as intervenções podem ser compensatórias, parcialmente compensatórias ou educativas, em resposta às necessidades de autocuidado. As intervenções compensatórias são percebidas como realizadas exclusivamente pelos enfermeiros, enquanto que as intervenções parcialmente compensatórias são executadas com a participação da pessoa e as de índole educativa incluem toda a instrução, apoio ou informação necessária à capacitação para o autocuidado (Reis & Bule, 2016; Petronilho & Machado, 2016).
Ganhos em saúde sensíveis aos cuidados especializados de enfermagem de reabilitação
A enfermagem de reabilitação contribui para a obtenção de ganhos em saúde, sendo que o EEER, através das suas intervenções, é o responsável por esse fenómeno (APER, 2010). De forma a poderem comunicar os ganhos em saúde sensíveis aos cuidados de enfermagem de reabilitação, estes profissionais monitorizam a implementação e os resultados dos programas de reabilitação, avaliando e realizando os ajustes necessários, o que lhes possibilita analisar a eficácia das atividades realizadas (Ordem dos Enfermeiros - MCEER, 2015a).
A Ordem dos Enfermeiros definiu os Padrões de Qualidade dos Cuidados Especializados em Enfermagem de Reabilitação, de forma a elaborar um instrumento para a promoção e melhoria contínua dos cuidados de enfermagem de reabilitação, que se torna ainda um referencial para a reflexão sobre a prática especializada. Este processo de melhoria contínua incentiva os EEER a alcançar metas cada vez mais ambiciosas, enquanto almejam atingir a excelência do exercício profissional especializado em Enfermagem de Reabilitação (Ordem dos Enfermeiros - MCEER, 2018). Em consequência desse trabalho, foram elaborados os bilhetes de identidade dos indicadores do “Core de Indicadores por Categoria de Enunciados Descritivos dos Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem de Reabilitação” (aprovado em assembleia da MCEER em 2015), onde se incluíram indicadores sensíveis aos Cuidados Especializados em Enfermagem de Reabilitação (CEER) e indicadores não sensíveis, contudo pertinentes no contributo para os resultados sensíveis aos CEER e resultantes de intervenções não específicas do campo de atuação do EEER. Este documento foi desenvolvido de forma a ajudar na tomada de decisão dos EEER e garantir a efetividade da sua prática, e assim promover mais e melhor saúde para a população e influenciar as políticas de saúde, uma vez que se torna um instrumento singular e efetivo na demonstração dos ganhos em saúde sensíveis aos cuidados de enfermagem de reabilitação, ao colocar em evidência os resultados da prática especializada (Ordem dos Enfermeiros - MCEER, 2018).
Assim, o EEER, entre os diferentes profissionais que integram a equipa de reabilitação, possui competências específicas que lhe permite conceber, implementar e avaliar planos de intervenção no âmbito da sua área de atuação, resultando ganhos em saúde consideráveis, tornando-se desta forma imprescindível a presença destes profissionais em todos os contextos da prática clínica (Pestana, 2016), nomeadamente em Oncologia.
Conclusões
No que respeita à Especialidade em Enfermagem de Reabilitação, tendo em conta a abrangência da mesma e a necessidade dos cuidados de enfermagem especializados em áreas emergentes, bem como o desenvolvimento do conhecimento, é indispensável integrar continuamente as novas descobertas da investigação na sua prática, desenvolvendo uma prática baseada na evidência, direcionada para os resultados sensíveis aos cuidados de enfermagem. Acresce ainda a necessidade de participar em projetos de investigação com o intuito de aumentar o conhecimento e o desenvolvimento de competências próprias desta área de especialidade em enfermagem.
Tendo em conta o que foi referido anteriormente, consideramos que a temática da reabilitação na pessoa com doença oncológica é um assunto atual, que carece ainda de ser estudado e desenvolvido, até pelas previsões crescentes do número de sobreviventes de cancro nas próximas décadas. A Enfermagem enquanto ciência, e particularmente a especialidade em enfermagem de reabilitação, não pode ficar alheia a esta problemática, sendo necessário produzir conhecimento que possibilite uma prática especializada baseada na evidência e uma prestação de cuidados de qualidade a esta população específica e tão singular, com evidentes ganhos em saúde.