Introdução
Os Cuidados Paliativos (CP) têm vindo a ser reconhecidos como um direito fundamental e a assumir uma posição de destaque nos cuidados de saúde, nomeadamente em Portugal onde a sua introdução progressiva, sobretudo após a criação da Rede Nacional de Cuidados Paliativos tem ocorrido (APCP,2016, OPCP, 2019).
Os CP para além de serem um sistema estruturado de cuidados, são também uma filosofia e têm como objetivos a promoção da qualidade de vida das pessoas e seus familiares, que em conjunto, encaram os problemas associados com doenças, que põem em risco a vida, através da prevenção e do alívio do sofrimento, recorrendo à identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial, emocional e espiritual (Zepeta et al, 2018).
Em CP a família não pode ser dissociada dos cuidados integrais ao doente. Esta, considerada como cuidador informal, para além de constituir-se como um importante mediador nos cuidados profissionais é também um importante referente emocional durante todo o processo de adoecimento. A doença não afeta somente o doente, mas também, tudo o que o rodeia, sendo a família uma rede complexa de relações. O impacto do cuidar recai sobre o doente e sobre todos os elementos da família (Almeida, 2012; Lei nº52/2012).
A Literacia em saúde (LS) é também uma preocupação presente, apresentando-se como caminho para a melhoria dos cuidados em saúde, na medida em que esta engloba um conjunto de competências cognitivas e sociais, permitindo ao individuo tomar decisões fundamentadas, no decurso da vida, do dia-a-dia, em casa, na comunidade, no local de trabalho, na utilização de serviços de saúde, no mercado e no contexto político. É uma estratégia de capacitação para aumentar o controle dos indivíduos sobre a sua saúde, para procurar informação avaliá-la de forma crítica e usá-la para exercer um maior controlo sobre as situações de saúde, assumindo responsabilidades (DGS, 2019; Pedro et al, 2016).
Existem já alguns estudos sobre a LS realizados em Portugal, tendo demonstrado um nível inadequado de LS na população portuguesa, com consequências significativas para os resultados e para a utilização dos serviços em saúde, com impacto nos gastos em saúde. Porém, são escassos e não existem referências no que concerne à família do doente internado em Cuidados Paliativos.
Pelo disposto, este estudo tem como principal objetivo analisar a relação existente entre as variáveis sociodemográficas do familiar do doente internado em Unidades de Cuidados Paliativos e o nível de Literacia em Saúde dos mesmos.
1. Enquadramento teórico
O envelhecimento populacional é um fenómeno generalizado nos países desenvolvidos, fenómeno este, relacionado com o aumento da esperança média de vida, melhores condições sociais e de acesso à saúde. Porém, com o envelhecimento, surgiram também diversas doenças relacionadas com a idade, e uma maior prevalência das doenças crónicas e degenerativas ou que originam diminuição de capacidades, o que não garante qualidade de vida e bem-estar (Silva, 2014 e Carneiro, 2012).
Os Cuidados Paliativos (CP) em crescente desenvolvimento no nosso país, assumem cada vez mais importância no contexto dos cuidados de saúde, visto constituírem-se como uma resposta eficaz face às necessidades físicas, psicológicas, sociais e espirituais da pessoa com doença incurável e/ou grave, progressiva e avançada, de modo a permitir um fim de vida digno e com qualidade (Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, 2017).
Importa definir Cuidados Paliativos, de acordo com a Lei nº 52/2012 (p.5119), os Cuidados Paliativos definem-se como “cuidados ativos, coordenados e globais, prestados por unidades e equipas específicas em internamento e domicílio, a doentes e suas famílias em situação em sofrimento decorrente de doença incurável ou grave em fase avançada e progressiva com o objetivo de promover o seu bem-estar e a sua qualidade de vida, através da prevenção e alivio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual, com base na identificação precoce e o tratamento rigoroso da dor e outros problemas físicos, mas também psicossociais e espirituais”.
Deste modo os CP assentam em quatro pilares fundamentais: o controle sintomático adequado, comunicação eficaz, apoio à família e o trabalho em equipa. Se algum destes pilares for desvalorizado na assistência ao doente/ família, a qualidade dos CP é fortemente afetada (DGS, 2005; Lopes, 2013; OE, 2011). Os princípios fundamentais que norteiam a sua estrutura de suporte, contemplam critérios de eficácia, efetividade, eficiência, baseados na evidência e respeitando a alocação racional de recursos (Capelas, Neto e Coelho, 2016).
Em cuidados paliativos a família deve ser incluída no plano de cuidados, pois importa também ter em conta que quando um familiar se encontra doente todo o sistema familiar enfrenta uma crise, daí o apoio à família ser crucial (APCP, 2016; Neto, 2004; Pereira e Lopes, 2012; Rocha, 2017).
Os direitos do doente paliativo e sua família constam na Lei nº 52/2012 e o conceito de família é definido como “a pessoa ou pessoas designadas pelo doente ou, em caso de menores ou pessoas sem capacidade de decisão, pelo seu representante legal, com quem o doente tem uma relação próxima, podendo ou não ter laços de parentesco com o doente” (p.5119).
O conselho internacional de Enfermeiros (2011, p.115) escrutina um pouco mais os laços familiares do doente, definindo-a como: “unidade social ou todo coletivo composto por pessoas ligadas através de consanguinidade, afinidade, relações emocionais e legais, sendo a unidade ou o todo considerado como um sistema que é maior que a soma das partes”.
Atualmente a família possui um significado mais amplo, mais do que a consanguinidade que os liga é consensual entre os diferentes autores a significância emocional e afetiva que o doente dá a esse elemento, sendo sinónimo de convivente significativo ou pessoa significativa (Ferris et al, 2002; OE, 2002; OPCP, 2018).
Desta forma, é necessário que os profissionais de saúde estejam preparados para implementar intervenções paliativas de qualidade. O Enfermeiro está numa posição de destaque para avaliar e cuidar do doente terminal e da sua família, dada a sua diferenciação técnico-científica, competência humana e relacional, e o seu tempo de permanência junto do doente/família, tornando-se um elemento fundamental na equipa de cuidados (CNCP, 2017; Lopes,2013). Capelas e Coelho (2014) reforçam a ideia de que a elevada qualidade e complexidade destes cuidados requer uma equipa interdisciplinar bem coordenada, bem formada e treinada, com competências comunicacionais e relacionais necessárias.
O conceito de Literacia em Saúde tem vindo a adquirir destaque nas últimas décadas enquanto conceito fundamental para um papel mais ativo, promovendo o espírito crítico por parte dos cidadãos no que diz respeito à sua saúde e aos cuidados de saúde, apresentando-se como um desafio da saúde pública em Portugal, mas também na agenda europeia para a saúde e Organização Mundial da Saúde (OMS) (DGS, 2019; Pedro et al, 2016).
Porém, para uma melhor compreensão do que é a Literacia em Saúde é importante definir este conceito. Apesar deste conceito ter surgido pela primeira vez em 1974, as primeiras definições remontam para finais da década de 90. A OMS em 1998 define Literacia em Saúde como o conjunto de “competências cognitivas e sociais e a capacidade da pessoa para aceder, compreender e utilizar informação de forma a manter uma boa saúde” (DGS,2019; Fundação Calouste Gulbenkian, 2016; Pedro et al, 2016).
O conceito tornou-se mais vasto, tendo evoluído de uma definição simplesmente cognitiva para uma definição que abarca as componentes pessoal e social do individuo, sendo a definição mais atual e completa como, “a capacidade para tomar decisões fundamentadas, no decurso da vida, do dia-a-dia, em casa, na comunidade, no local de trabalho, na utilização de serviços de saúde, no mercado e no contexto político. É uma estratégia de capacitação para aumentar o controle das pessoas sobre a sua saúde, para procurar informação e assumir responsabilidades” (Kickbusch et al, 2005 cit inPedro et al, 2016).
Existem dois elementos fundamentais na Literacia: as tarefas (tasks) e as competências (Skills). O mesmo autor faz referência a três tipos ou níveis de Literacia: a Literacia Funcional (ou básica), a Literacia Interativa (comunicacional) e a Literacia Crítica (Idem).
É consensual que, uma pessoa com um baixo nível de LS apresente maior dificuldade e por isso mesmo menor probabilidade de compreensão da informação (oral e escrita) fornecida pelos diferentes técnicos de saúde, mas também ocorrer uma menor probabilidade de serem capazes de navegar no sistema de saúde, obtendo os serviços de que necessitam, mas também dificuldade na realização dos procedimentos necessários e seguir indicações prescritas. De uma forma geral este baixo nível de LS correlaciona-se com um baixo conhecimento ou perceção quer dos serviços de prestação de cuidados, quer dos próprios resultados em saúde.
No nosso país, a promoção da Literacia em Saúde tem vindo a alcançar posição de destaque tendo em vista a melhoria dos cuidados de saúde, assumindo-se como fundamental na definição de políticas de saúde. Por tudo isto, nesta última década têm sido desenvolvidos vários esforços e tem sido realizada investigação no sentido de conhecer os níveis de Literacia em saúde, limitações à mesma, de forma a orientar ações no sentido da sua melhoria (Pedro et al, 2016).
Foram exemplos: a tradução, validação e aplicação do Questionário Europeu à Literacia em Saúde para Portugal (HLS - EU - PT - European Health Literacy Survey Portugal) promovido em 2014 pela Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, em parceria com a DGS/PNS e toda uma vasta rede académica, bem como da iniciativa do Programa Inovar em saúde da Fundação Calouste Gulbenkian (2016), com a aplicação em 2015, do Inquérito sobre a Literacia em Saúde em Portugal (ILS-PT); trabalhos com bases e conclusões semelhantes. Uma vez que o HLS-EU foi pioneiro, será este a base científica a analisar no decorrer do trabalho (Fundação Calouste Gulbenkian, 2016; Pedro et al, 2016).
O Inquérito Europeu à Literacia em Saúde (HLS - EU - European Health Literacy Survey), financiado pela comissão europeia, liderado pela Universidade de Maastricht, foi aplicado pela primeira vez em 2011 a um conjunto oito países europeus (Áustria, Alemanha, Bulgária, Espanha, Grécia, Irlanda, Holanda e Polónia). A sua aplicação veio impulsionar novos desenvolvimentos nesta área de investigação, tendo-se revelado como uma primeira tentativa para investigar, com metodologia ampla, a Literacia em Saúde na Europa, baseada na elaboração e aplicação de um questionário semelhante entre os países de recolha de informação. A utilização do mesmo instrumento de colheita de dados pelos países participantes permitiu a comparabilidade dos resultados entre os mesmos (Pedro et al, 2016). De acordo com este autor, este instrumento mede o nível de LS por autoperceção e é composto por 47 questões, estruturadas de acordo com um modelo conceptual, que integra 3 domínios importantes de saúde: cuidados de saúde, prevenção da doença e promoção da saúde, e 4 níveis de processamento da informação: acesso, compreensão, avaliação e utilização, fundamentais à tomada de decisão. Foram definidos 4 níveis de LS: inadequada, problemática, suficiente e excelente.
Com a aplicação do HLS-EU-PT e após análise dos dados observou-se que Portugal, no que diz respeito ao índice de LS geral foi o segundo país com média mais baixa; em relação ao subíndice de LS em cuidados de saúde foi o que apresentou média mais baixa; em relação ao subíndice de LS em prevenção da doença foi o segundo país com média mais baixa e por fim, em relação ao subíndice de LS em promoção da saúde foi o terceiro país com média mais baixa.
Os cuidados paliativos não escolhem idades, são transversais a todo o ciclo vital, mas também a todos os níveis de cuidados a que a população tem acesso, seja a nível dos CSP, CSH e CCI (APCP, 2016; Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, 2019; DGS, 2019).
Os vários autores consultados, em conformidade com o Plano Nacional de Saúde, defendem que a promoção da LS junto das pessoas, comunidades e organizações constitui-se como uma importante oportunidade e desafio em saúde, não sendo os Cuidados Paliativos exceção.
Analisando os Planos Estratégicos para o desenvolvimento dos Cuidados Paliativos, elaborados de forma a que estejam reunidas condições para a implementação e operacionalização da Rede Nacional de Cuidados Paliativos, tanto o que foi elaborado para o biénio 2017-2018 como o mais recente, para 2019-2020, podemos constatar nas linhas estratégicas gerais e eixos de intervenção prioritários a crescente preocupação com a LS (Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, 2019 e Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, 2017).
Embora não existam estudos direcionados para a população-alvo de cuidados em CP que avaliem o seu nível de LS, existindo apenas para a população portuguesa em geral, pretendemos analisar algumas variáveis sóciodemográficas, que possam interferir neste nível.
2. Métodos
O presente estudo enquadra-se no paradigma das metodologias quantitativas, do tipo não experimental, transversal e numa lógica de análise descritivo-correlacional.
2.1 Participantes
A população do estudo foi constituída por familiares (preferencialmente o Familiar de Referência) de doentes internados em Unidades de Cuidados Paliativos da região centro do país que aceitaram participar voluntariamente no estudo. A opção por este grupo populacional prendeu-se com o facto de serem estes familiares os que mais se relacionam com o doente e desse modo, deterem um maior conhecimento das problemáticas resultantes do processo de transição que atravessam para além de serem também foco de cuidados por parte dos profissionais da equipa multidisciplinar, onde o enfermeiro assume posição de destaque.
Optou-se por uma amostra não probabilística, acidental e por conveniência, tendo-se obtido 96 questionários provenientes das três Unidades de Cuidados Paliativos que aceitaram participar no estudo: 33 questionários UCP Salreu (Centro Hospitalar Baixo-Vouga, E.P.E.), 32 questionários UCP Seia (ULS Guarda) e 31 questionários UCP Tondela (Centro Hospitalar Tondela-Viseu, E.P.E.).
Como critérios de seleção para a composição da amostra teve-se em consideração os familiares com idade mínima de 16 anos, saber ler e escrever, sem défices cognitivos e que aceitaram participar no estudo, após conhecimento e assinatura do consentimento informado, fazendo-o a partir do 3º dia de internamento do doente.
A amostra foi constituída em 67,7% por participantes do sexo feminino e em 32.3% do sexo masculino. O tratamento estatístico do estudo pôs em evidência que relativamente à idade, obtivemos como mínima os 20 anos e a máxima de 79 anos (média de 49.44 anos ±14.9).
Em face da amplitude de variação encontrada, 59 anos, agrupámos os dados em duas classes (adultos ≤64 anos e idosos≥ 65 anos), sendo que a maior parte da amostra apresenta uma idade igual ou inferior a 64 anos (82,3%). Quanto ao sexo, as maiores percentagens encontram-se nas mulheres, tanto para as que possuem idade igual ou superior a 65 anos (15,4%), como idade igual ou inferior a 64 anos (84,6%). Porém, a diferença encontrada entre o sexo e a idade dos participantes não é estatisticamente significativa (X2=0.746 e p=0.388).
A relação de filho/a é a mais comum entre o familiar e doente (41,7%), seguida de outros familiares (31,3%) onde se inserem os netos (as), sobrinhos (as), sogros (as), irmãos (ãs) e por fim, de esposa (o) correspondendo uma percentagem de 27,1%. O estatuto de filha é a que sobressai com maior percentagem (44,6%). A diferença encontrada entre o sexo e o grau de parentesco dos participantes não é estatisticamente significativa (X2=0.888 e p=0.642).
No respeita ao estado civil, constatamos que a maioria dos familiares de referência vive com companheiro(a) (64,6%) e os restantes 34,5% não possui nenhuma relação de co-habitabilidade. Entre o género, os valores percentuais são semelhantes aos obtidos para a totalidade da amostra. A diferença encontrada entre estas variáveis não é estatisticamente significativa (X2=0.000 e p=0.992).
A análise da composição do agregado familiar denota que, os casais com filhos predominam na amostra (56,3%), seguido dos casais sem filhos (20,8%). Com igualdade percentual (11,5%) surgem as famílias monoparentais e as famílias com apenas um elemento. Destacamos o facto de o sexo feminino preencher a totalidade das famílias monoparentais (16,9%), com diferenças percentuais estatisticamente significativas (X2=10.908, p=0.011).
Analisada a co-habitação do familiar de referência com o doente, os dados revelaram que a maioria não habita na mesma casa do doente (53,1%). Contudo, o sexo feminino com 50,8%, referindo habitar na mesma casa contraria essa tendência. As diferenças encontradas entre o sexo e o facto de residir na mesma casa do doente não são estatisticamente significativas (X2=1.226, p= 0.268).
O estatuto de cuidador principal do doente, verifica-se na maioria, porque apenas 26,2% não desempenham este papel, sendo que 62,5% assumem-se como tal. Os inquiridos do sexo feminino são os que maioritariamente se assumem como cuidador (73,8%). Em sentido oposto, verificamos que a maior parte dos familiares de referência do sexo masculino não são cuidadores (61,3%), sendo ainda de destacar que no sexo masculino, os que se assumem como cuidadores (38,7%) são os que habitam na mesma casa do doente, sendo as diferenças percentuais estatisticamente significativas (X2=11.056, p=0.001), revelando os valores residuais que as mesmas se situam no sexo masculino em que não se assumem como cuidadores principais e no sexo feminino que são os cuidadores principais do doente.
Nas habilitações académicas dos familiares de referência, predomina o ensino básico (49%), seguido do ensino superior (26%) e com menos um ponto percentual o ensino secundário. Entre o género, os valores percentuais são semelhantes aos obtidos para a totalidade da amostra à exceção do ensino secundário, para o sexo feminino, que ocupa a segunda posição (27.7%). A diferença encontrada entre o sexo e as habilitações académicas não são estatisticamente significativas (X2=3.866 e p=0.145).
O estado laboral do familiar de referência, denota que a maioria da amostra se encontra ativa com 61,5%. Entre o género, os valores percentuais são semelhantes aos obtidos para a totalidade da amostra. A diferença encontrada entre o sexo e o estado laboral não é estatisticamente significativa (X2=3.135 e p=0.077).
Quanto ao ser profissional ou estudante na área da saúde, variável sociodemográfica interessante de analisar, verificou-se que os dados obtidos colocaram em evidência que mais de dois terços dos inquiridos não tinha contacto com a área da saúde (87,5%). Dos restantes 12,5% dos familiares com este atributo, registamos valores percentuais semelhantes em ambos os sexos. Contudo, as diferenças percentuais apresentadas não apresentaram valores estatisticamente significativos (X2=0.551, p=0.516).
Analisamos ainda a experiência anterior em Cuidados Paliativos vivenciada pelo familiar de referência e registamos que apenas 9,4% da amostra vivenciou esta experiência, não existindo diferenças entre o género (12,9% no sexo masculino vs 7,7% no feminino). As diferenças percentuais apresentadas não são estatisticamente significativas (X2=0.671, p=0.464).
Por fim, surge a residência do familiar de referência. Registamos que a maioria dos inquiridos reside em meio urbano (54,2%). Analisando os resultados em função do sexo, observamos que, no sexo masculino as percentagens obtidas vão de encontro com a globalidade dos dados, mas ao invés, no sexo feminino, a maioria dos familiares reside em meio rural (50,8%) seguido dos que residem em meio urbano (49,2%). A diferença encontrada entre o sexo e a residência não é estatisticamente significativa (X2=1.975 e p=0.160).
O tempo de cuidador nos 60 familiares de referência que se assumem como cuidadores principais (62,5%), denotam um tempo mínimo de cuidados oscila entre 1 mês e o máximo de 300 meses, correspondendo a uma média de 19.1 meses (± 42.21 dp), recaindo o mínimo e o máximo no sexo feminino com 48 inquiridos (73.8%). Nestes, o tempo médio foi de 19.62 meses (± 45.88 dp). Já em relação ao sexo masculino, constituído por 12 elementos (38,7%), o tempo de cuidador oscila entre os 2 e os 84 meses, com uma média de 17 meses (± 23.53 dp). A maioria dos familiares inquiridos desempenham a função de cuidadores principais nos primeiros 6 meses (38.3%), seguido do período de 7 a 12 meses (33.3%) e por fim, 28.3% num período de 12 até 300 meses. Verifica-se pois a supremacia do sexo feminino nesta função em todos os períodos, sendo que a diferença encontrada entre o sexo e o tempo de Cuidador não é estatisticamente significativa (X2=0.488 e p=0.780).
2.2 Instrumentos de recolha de dados
A colheita de dados foi sustentada pelos seguintes questionários:
Questionário de dados Sociodemográficos: Questionário had hoc, elaborado para o efeito permitindo colher dados relativos à idade, sexo, parentesco, estado civil, composição do agregado familiar, residência na mesma casa do doente, assumir ou não o papel de cuidador principal do doente, escolaridade, estado laboral, profissional ou estudante da área da saúde, experiência anterior de internamento em CP e local de residência.
Questionário HLS-EU-PT, para a avaliação do nível de Literacia em Saúde, versão adaptada para a população portuguesa do questionário HLS - EU - PT (European Health Literacy Survey Portugal), desenvolvido em Portugal em 2014 pela Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, tendo a coordenação geral por parte da Universidade de Maastricht. Este instrumento mede o nível de LS por autopercepção é composto por 47 questões, que integram os 3 principais domínios de saúde: cuidados de saúde (16 questões: do item 1 ao 16), prevenção da doença (15 questões: do item 17 ao 31) e promoção da saúde (16 questões: do item 32 ao 47), bem como 4 níveis de processamento da informação: acesso, compreensão, avaliação e utilização, essenciais à tomada de decisão. Através de uma escala de 4 valores que vai do muito fácil ao muito difícil, pretende-se que o inquirido indique o grau de dificuldade que sente na realização de tarefas relevantes na gestão da sua saúde. O ponto 5: “Não sei”, corresponde a uma não resposta, assumindo nos somatórios como um missing value. Foram definidos 4 níveis de LS: inadequada, problemática, suficiente e excelente. Para chegar a estes níveis, no tratamento estatístico, utilizou-se um conjunto de fórmulas que possibilitaram o cálculo dos scores: o questionário inicial de 47 itens foi convertido em 188 pontos e, de modo a garantir o cálculo correto dos 4 níveis de LS e assegurar a comparação entre eles, estes foram uniformizados numa escala métrica variável entre 0-50, na qual o 0 é o mínimo possível de LS e o 50 o máximo possível de LS, pela fórmula anteriormente exposta.
Para os 4 níveis foram identificados os seguintes pontos de corte: scores iguais ou inferiores a 25 pontos = literacia em saúde inadequada; scores entre 25,01 e 33 pontos = Literacia em saúde problemática; scores entre 33.01 e 42 = literacia em saúde suficiente e scores entre 42.01 e 50 = literacia em saúde excelente, de acordo com a mesma fonte.
De forma a testar a fidelidade do instrumento, foi aplicado o coeficiente alpha de Cronbach às diversas dimensões que constituem o questionário HLS-EU-PT , obtendo um valor de 0.932.
I = [(X - 1)/3]*50
Em que:
I - Índice específico calculado;
X - Média das questões respondidas para cada indivíduo
1 - Valor mínimo possível da média (conduz a um valor mínimo do índice igual a 0)
3 - Intervalo da média
50 - Valor máximo escolhido para a escala
2.3 Análise estatística
Os dados obtidos através do instrumento de colheita de dados foram objeto de tratamento estatístico e processados através do programa informático Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 25 para Windows, recorrendo-se a técnicas de estatística descritiva e de análise inferencial. Na análise estatística descritiva recorreu-se a frequências, medidas de tendência central, medidas de dispersão ou variabilidade e, ainda, medidas de forma e medidas de associação como a correlação de Pearson.
Na estatística Inferencial, foram aplicados testes paramétricos, como o Teste T de Student, e testes não paramétricos, como o Teste U Mann-Whitney e Teste Kruskal - Wallis, bem como regressões lineares simples e múltiplas. Foi também aplicado o teste do Qui-quadrado (X2), utilizado nas variáveis de natureza nominal para estudo de proporções. Na análise estatística e inferencial consideraram-se os seguintes valores de significância: p < 0.05* - diferença estatística significativa; p < 0.01** - diferença estatística bastante significativa; p< 0.001** - diferença estatística altamente significativa e p ≥ 0.05 n.s. - diferença estatística não significativa. Para a apresentação dos dados recorreu-se a tabelas e gráficos.
2.4 Procedimentos
Para a realização do estudo e cumprimento dos procedimentos ético-legais, foram solicitadas as devidas autorizações, tanto para a utilização do questionário, como para a aplicação do instrumento de colheita de dados junto das instituições, após parecer positivo da Comissão de ética da Escola Superior de Saúde de Viseu. Todo o procedimento foi concretizado após o consentimento informado com assinatura do formulário pelos participantes no estudo, que decorreu entre 23 de outubro de 2018 e 30 de junho de 2019.
3. Resultados
As estatísticas relacionadas com o nível de Literacia em saúde do familiar do doente internado numa Unidade de Cuidados Paliativos, mostram que, de um modo geral, os participantes apresentaram um índice de Literacia mínimo de 7.09 e máximo de 50, correspondendo uma média de 28.62 ± 8.65 dp.
Os valores dos Cuidados de Saúde (HC-HL), os valores variam entre o mínimo de 6.25 e máximo de 50, com uma média de 28.39 ±9.14 dp. Para a LS de Prevenção da Doença (DP-HL), o mínimo encontrado foi de 0 e o máximo de 50, sendo a média de 31.06 e desvio padrão de ±9.59. Na dimensão LS de Promoção da Saúde (HP-HL), os valores oscilam entre 2.08 e máximo de 50, correspondendo uma média de 26.57 ±10.69 dp.
Face aos resultados obtido, podemos afirmar que os familiares apresentam um índice de LS mais elevado na Prevenção da Doença (DP-HL) e um menor índice na Promoção da Saúde (HP-HL). Porém, em todas as dimensões, os valores mínimos encontram-se no patamar de LS inadequada (LS≤25), com um índice baixo. Por outro lado, as médias encontram-se no patamar da LS problemática.
Nas figuras seguintes (1 a 4), é possível verificar, através da sua análise, que os níveis de LS da amostra estão mais distribuídos pelas classes Inadequado e Problemático, com maior incidência no primeiro. Tal fato demonstra que a LS é um tema atual e deve fazer parte das prioridades na saúde, uma vez que ainda existe um longo caminho a percorrer a nível do empoderamento das pessoas, nomeadamente dos familiares de referência do doente internado em UCP.
Nas tabelas 1, 2 e 3 são apresentados dados relativos à estatística inferencial em função das variáveis sociodemográficas e as diferentes dimensões da LS em Saúde: LS de Cuidados de Saúde (HC-HL), LS de Prevenção da Doença (DP-HL), LS de Promoção da Saúde (HP-HL) e Literacia em Saúde Geral, respetivamente. É possível verificar que, de uma forma geral:
Existem diferenças estatisticamente significativas entre o género do Familiar de referência e o nível de LS, sendo que o sexo feminino apresenta ordenações médias mais baixos, logo um nível de LS mais baixo que o sexo masculino;
A idade do familiar de referência do doente internado em UCP condiciona o nível de LS, sendo a faixa etária a partir dos 65 anos a que apresenta um nível mais baixo de Literacia em Saúde;
Existem diferenças estatísticas significativas entre o grau de parentesco do familiar de referência e o nível de LS Geral e LS de Promoção da Saúde, com ordenações médias mais altas, ou seja, nível de LS mais alto na categoria Filho/a;
O estado civil do Familiar de Referência também se relaciona com o nível de LS do mesmo, sendo que, os que não apresentam companheiro/a detêm um nível mais elevado de LS;
Existe relação entre a composição do agregado familiar e a LS Geral, com níveis de LS mais baixos nos casais sem filhos;
Co-habitar com o doente influencia o nível de LS Geral e LS de Promoção da Saúde, pelo que, quem vive com o doente tem menor nível de LS;
Existem diferenças estatísticas significativas entre o assumir-se como cuidador principal do doente e um pior nível de LS geral e nível de LS de Promoção da Saúde;
Existe relação entre a escolaridade do Familiar de referência e todas as dimensões da LS. Quanto maior a escolaridade, maior o nível de LS;
Deter uma atividade profissional, interferiu positivamente no nível de LS nas diferentes dimensões e LS Geral;
Existe relação entre os familiares de referência com profissões na área da saúde e um maior nível de LS;
A residência do familiar de referência interfere no nível de LS Geral e no nível de LS de Promoção da Saúde, sendo que, os que residem em meio rural apresentam menor nível de LS.
Para estudarmos a relação entre a Literacia em Saúde (nas suas várias vertentes) e as variáveis independentes, efetuámos análises de regressões múltiplas. O método de estimação usada foi o de stepwise. Para determinar a relação entre as diferentes dimensões da LS e as variáveis independentes, realizou-se inicialmente o teste de correlação de Pearson. De referir que a variável sexo foi recodificada e transformada em Dummy_1, dizendo respeito ao sexo Masculino.
Por fim, foi gerado um output gráfico da regressão Linear Múltipla Multivariada final, na Figura 5, com os coeficientes estandardizados para a diferentes dimensões da LS e Variáveis Independentes, sendo possível constatar que:
São duas as variáveis preditoras do nível de Literacia em Saúde em todas as suas dimensões: a idade e o sexo. Verifica-se que idade (que detém um maior poder preditivo em praticamente todas as dimensões), estabelece uma relação inversa com o nível de LS pelo que quanto menor for a idade do familiar de referência maior o seu nível de LS. Por outro Lado, o sexo, apresenta uma relação direta com o nível de LS, sendo que: familiares de referência do Sexo masculino apresentam um nível de LS mais elevado;
4. Discussão
Dos 96 familiares de referência de doentes internados em UCP´s que constituíram a amostra, foi possível perceber que relativamente às variáveis sociodemográficas, influenciam todas as dimensões no nível de Literacia em Saúde. Constatou-se também que o estado civil do Familiar de Referência sem companheiro/a, escolaridade no ensino básico e não deter uma atividade profissional, influenciam negativamente o seu nível de Literacia. Estes dados são corroborados por Pedro et al (2016) que concluiu no seu estudo, que à medida que o nível de escolaridade aumenta, os níveis de LS tendem a ser superiores e níveis mais baixos de LS foram associados aos desempregados e reformados.
Verificou-se também a existência de relação entre os familiares de referência com profissões na área da saúde e um maior nível de LS. A residência do familiar de referência interferiu no nível de LS Geral e no nível de LS de Promoção da Saúde, sendo que, os que residiam em meio rural apresentaram menor nível de LS.
Verificou-se também que as variáveis sociodemográficas, grau de parentesco Esposo/a, Co-habitar com o doente e assumir-se como cuidador principal do doente, têm influência nas dimensões LS Geral e LS de Promoção da Saúde.
A composição do agregado familiar condicionou a LS Geral, com níveis de LS mais baixos nos casais sem filhos. Contudo ainda não existem estudos que reforcem estes resultados.
Por fim, o género do familiar de referência do doente internado em UCP deteve um efeito preditivo no seu nível de LS em todas as dimensões, em que o sexo feminino foi o que apresentou menor nível de LS. Estes dados diferem dos resultados de Pedro et al (2016) na medida em que no seu estudo, o sexo masculino apresentou níveis de LS ligeiramente inferiores ao do sexo feminino.
Verificou-se também que a idade do familiar de referência do doente internado em UCP detinha um maior poder preditivo no nível de LS em todas as suas dimensões. Este resultado vai de encontro com o estudo de Pedro et al (2016) e Pedro (2018) sugerindo a existência de grupos vulneráveis como sendo os mais velhos, reformados, desempregados e com menos escolaridade.
Conclusões
O presente estudo possibilitou de uma forma objetiva entender a capacidade de os familiares de referência dos doentes internados em CP acederem, compreenderem, analisarem e utilizarem a informação de saúde nos domínios da utilização dos cuidados de saúde, da promoção da saúde e da prevenção da doença.
Entendemos ser necessário ter em conta que um nível inadequado ou problemático de LS não é exclusivamente um problema individual, mas também sistémico, com várias implicações para o sistema de saúde. Estruturar meios que permitam ao cidadão tornar-se efetivamente parceiro no processo de cuidados de saúde é essencial.
A preocupação com a Literacia em Saúde é algo atual, contudo encontramos apenas um estudo realizado em 2014 por Pedro et al, 2016 mais abrangente para a população portuguesa e não propriamente para os familiares de referência do doente internado em CP
Sugerimos a necessidade de se dar mais apoio ao familiar de referência do doente em CP de modo a poderem sentir-se verdadeiros parceiros e mediadores nos cuidados, assumindo um papel ativo nos cuidados que são prestados ao doente. As questões sociodemográficas bem como as relacionadas com o nível de LS devem ser tidas em conta quando se planeiam os CP diferenciados ao doente e sua família por parte das equipas, com particular relevo da equipa de Enfermagem, a qual deve estar empenhada na melhoria contínua e no empoderamento do nosso alvo de cuidados, assumindo uma atitude proactiva de autocapacitação, exigindo formação ao longo da sua vida profissional.