Introdução
A Doença Falciforme (DF) é um conjunto de patologias hematológicas crônicas, hereditárias, que tem em comum a presença da hemoglobina S (HbS) nas hemácias e apresenta impacto significativo na vida das pessoas e suas famílias (Zago & Pinto, 2007; Vilela et al., 2012).
A HbS é uma variante da hemoglobina normal - a hemoglobina “A” (HbA) - originada de uma mutação genética que afeta uma das bases nitrogenadas do ácido desoxirribonucleico (DNA) (Braga et al., 2016). A HbS, quando desoxigenada e em alta concentração, assume a forma de foice, responsabilizando-se pelo fenômeno vaso-oclusivo e hemólise. Ambos os mecanismos fisiopatológicos colaboram para um aumento do processo inflamatório vascular e ativação da coagulação. Os eventos vaso-oclusivos causam dor aguda e crônica - principal característica clínica da doença. Afeta também qualquer orgão, mormente ossos, baço, fígado, cérebro, pulmões, rins e articulações (Zago & Pinto, 2007).
Estudos destacam a DF como a alteração genética mais comum no mundo, sendo mais predominante na população negra (Cançado & Jesus, 2007). Dados do Ministério da Saúde estimam o nascimento de 3500 bebés com a patologia a cada ano, evidenciando a relevância epidemiológica da doença no país (Cançado & Jesus, 2007). Em Alagoas, de acordo com dados colhidos no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) (Santos et al., 2018), ocorre o nascimento de uma criança com a DF para cada 343 crianças nascidas vivas. Estes dados se assemelham à literatura nacional, constatando que a doença se configura como uma condição crônica que exige cuidados continuados e prolongados.
Diante destas evidências, a DF é reconhecida como um problema de saúde pública no país, onde o diagnóstico precoce e a imediata inclusão da pessoa doente num programa de atenção integral é fundamental para diminuir a morbimortalidade da DF (Brasil, 2015; Vilela et al., 2012).
Em face de tais indicadores e da pressão do movimento negro sobre o poder público (Werneck, 2016), foram instituídas políticas, tais como: o Programa Nacional de Triagem Neonatal - PNTN (Brasil, 2001) e a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme - PNAIPDF (Brasil, 2005).
As políticas e os programas foram apoiados na Hemorrede e destinados a difundir informações e atendimento adequado às pessoas com DF. Essas iniciativas influenciaram a Qualidade de Vida (QV) e o aumento da longevidade, em especial das pessoas acometidas pela forma mais severa da doença (Cançado & Jesus, 2007).
O conjunto de ações e propostas tem vindo a modificar significativamente a expectativa de vida das pessoas acometidas por esse problema, alterando o perfil de sobrevivência, que resultou na redução de 40% da mortalidade precoce. O fato foi associado ao diagnóstico por meio da triagem neonatal, à prevenção com vacinas e antibioticoterapia profilática, bem como à introdução da hidroxiureia (Ferreira, Cordeiro, Cajuhy, & Silva, 2013).
Esse novo perfil das pessoas com DF exige cuidados continuamente, uma vez que, pela doença crónica, incapacidade e sofrimento, convivem com estado de vulnerabilidade constante. Além disso, os portadores de anemia falciforme, na sua maioria, estão inseridos nas camadas sociais com baixo rendimento económico e escolaridade, entre outros problemas sociais, fatores que levam a deduzir que os componentes das vulnerabilidades individual (informação), social (recursos materiais) e programática (políticas, programas e acesso aos serviços de saúde) coexistem com as manifestações clínicas inerentes à doença. Além disso, a prevenção, o tratamento e a reabilitação parecem ainda ser incipientes e ainda negligenciados pelos órgãos governamentais (Ferreira, et al., 2013; Kikuchi, 2007).
Dessa forma, compreende-se vulnerabilidade como a possibilidade do indivíduo adoecer de acordo com a sua situação, a qual pode estar relacionado com as próprias características do indivíduo, as relações sociais construídas durante a sua vida ou no âmbito programático (Ayres, 2009).
A vulnerabilidade programática refere-se a esforços com vistas à promoção de programas nacionais, regionais ou locais de prevenção e cuidado relativos à doença. Ela está associada a recursos sociais necessários, efetivos e democráticos, para que as pessoas, de fato, tenham condições de prevenir doenças ou suas complicações. Remete-se também ao grau de relevância dada ao problema no âmbito da gestão, do planejamento, da monitorização e da avaliação das ações para controle (Ayres, 2009).
Como tecnologia avaliativa de políticas públicas em saúde, Bellato, Araújo e Castro (2008) apresentam o Itinerário Terapêutico (IT), em virtude da possibilidade de apreender discursos e práticas que emitem diferentes sentidos por meio dos quais se questiona os princípios da integralidade e resolutividade na atenção à saúde.
O tema IT é discutido no Brasil desde a década de 80. Os estudos de Pinheiro, Gerhardt, Ruiz e Silva Junior (2016, p. 13) ressaltam o seu uso “[...] como constructo teórico-metodológico em investigações sobre doenças, sofrimentos, aflições e perturbações de pessoas em situações concretas de doença”.
A necessidade de maiores contribuições para o tema justificou desenvolver este estudo que se pautou na seguinte pergunta de investigação: Na perspectiva de pessoas adultas com DF, quais e como ocorrem as ações previstas na PNAIDF?
Desse modo, a presente investigação teve como objetivo compreender a atenção à saúde dispensada aos adultos com DF, por meio da reconstrução de itinerários terapêuticos.
1. Métodos
Este estudo é derivado de uma pesquisa mais ampla, ainda em curso, que tem como objetivo norteador: analisar a integralidade do cuidado a indivíduos portadores de DF atendidos no estado de Alagoas, sob a perspectiva do trabalho em rede na atenção à saúde. Os dados aqui apresentados foram publicados (Vilela et al., 2019), em versão mais resumida, nas atas do 8º Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa - CIAIQ2019.
A utilização da pesquisa qualitativa tem sido muito valorizada, pois é notório que este tipo de estudo busca compreender e interpretar a lógica interna dos participantes, os quais se pretende estudar, fornecendo-lhes o conhecimento de sua verdade, além de despertar a compreensão, descrição e a análise da realidade por meio da dinâmica das relações sociais (Taquette & Minayo, 2016). Para o presente estudo foi realizada uma pesquisa do tipo qualitativa descritiva exploratória com abordagem qualitativa em grupo de pessoas com DF vinculadas aos Centros de Referência (CRs) do estado de Alagoas, Brasil. Os CRs do Estado possuem um cadastro total de, aproximadamente, 526 pessoas com DF, entre crianças, adolescentes e adultos. Estes centros são responsáveis pelo acompanhamento e tratamento da doença.
1.1 Participantes
Para a pesquisa, foram entrevistadas sete pessoas adultas, sendo duas do sexo masculino, com idades de 30 e 32 anos, e cinco do sexo feminino, com idades variando de 20 a 40 anos. Os entrevistados apresentaram em comum um histórico clínico e laboratorial de DF do tipo grave (SS - anemia falciforme). A escolha dos participantes foi intencional procurando a representatividade e considerando que a extensão do objeto e a complexidade do estudo devem orientar o tamanho da amostra na pesquisa qualitativa (Minayo, 2015).
1.2 Produção dos dados
Para levantamento e identificação dos itinerários terapêuticos das pessoas com DF foram realizadas entrevistas utilizando-se um roteiro semiestruturado, com foco nos significados de se tratar de pessoa com DF e nos caminhos utilizados para lidar com os agravos em saúde e/ou doenças. Para tanto, partiu-se da seguinte solicitação: Conte-me a história de sua vida considerando a doença falciforme, desde a história que lhe contaram de quando você era criança, até os dias de hoje.
Todas as entrevistas foram efetuadas nos CRs onde o sujeito realizava seu acompanhamento, por escolha do próprio participante, num único encontro. As narrativas foram gravadas em meio digital, com a anuência do entrevistado. Assim, cada entrevista caracterizou um texto, e o conjunto desses textos constituiu o corpus de análise desta pesquisa, representando a voz das pessoas com DF.
1.3 Análise dos dados
Após a transcrição das entrevistas gravadas em áudio, o material foi submetido à análise de conteúdo, na modalidade temática. Para isso, inicialmente, procurou-se reconhecer os significados emergentes nos relatos. Em seguida, foram identificados os conteúdos frequentes e a seleção de excertos de falas das entrevistadas que os exemplificassem. Os principais significados foram agrupados em duas categorias: 1) Os itinerários na busca ao acesso ao cuidado nas redes de saúde; e 2) Os itinerários e o vínculo usuário-equipe no cuidado à pessoa com DF. A discussão dos resultados ora apresentada foi feita com base na análise conjunta do material empírico coletado na pesquisa, tendo como eixo norteador a PNAIPDF (Brasil, 2005).
O estudo teve o respaldo ético vinculado à pesquisa geradora dos dados com aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da UFAL, sob CAAE nº 60437416.2.0000.5013. Com o intuito de preservar o anonimato dos participantes, os seus nomes foram substituídos por nomes de línguas faladas pelos negros de origem bantu. Os centros de referência foram denominados de CR1 e CR2.
2. Resultados e discussão
Nesta pesquisa utilizou-se a reconstituição do IT das pessoas com DF por considerar que as experiências dos usuários na busca por atendimento a suas necessidades podem espelhar o funcionamento da rede de atenção à saúde na perspectiva do cuidado integral.
Tendo-se como ponto de partida as diretrizes da PNAIPDF (Brasil, 2005) e a concepção defendida por Mattos (2009), de que pensar a integralidade, na prática, requer o esforço de profissionais e equipes em traduzir e responder às necessidades de saúde dos que procuram os serviços de saúde, o que é possível por intermédio do encontro e da escuta atenta entre usuário-profissional, foram identificadas duas categorias de análise: 1) Os itinerários na busca ao acesso ao cuidado nas redes de saúde; e 2) Os itinerários e o vínculo usuário-equipe no cuidado à pessoa com DF.
2.1 Os itinerários na busca ao acesso ao cuidado nas redes de saúde
Tendo a integralidade do cuidado como objetivo, o acesso consiste na perspectiva do atendimento oportuno e qualificado das necessidades de saúde do usuário. Nesse sentido, a reconstituição do IT trouxe elementos atribuídos às necessidades do cotidiano e, também, os processos e os caminhos trilhados para conseguir utilizar efetivamente os serviços e as tecnologias de que precisa.
Observou-se que todos os participantes relataram algum tipo de dificuldade de acesso, seja no momento do diagnóstico, seja no tratamento da doença e/ou das complicações. As narrativas de Bemba, Tonga e Ajaua demonstram as experiências de busca por cuidado no Sistema Único de Saúde (SUS), em Alagoas.
Sobre o acesso ao diagnóstico precoce, assim relataram:
Eu tinha 3 anos e 9 meses (ao diagnóstico). Porque até então dizia que era hepatite, que era outros tipos de doença, mas a gente não sabia realmente o que era. Aí, foi através desse médico que foi descoberto. Primeiro não foi descoberto, feito logo a eletroforese pelo exame de sangue normal, porque eu tava em crise muito forte e eu não conseguia mais andar, aí ele fez o exame e quando fez o exame diagnosticou uma anemia, só que não soube de imediato a anemia que era (Bemba).
A garantia de acesso, de boa qualidade de atenção, de atenção integral à saúde, de cuidados preventivos e esquemas de tratamento, postulada na PNAIPDF, tem efeito positivo de ação de saúde pública sobre direitos humanos. O atendimento integral, proposto na PNAIPDF, prevê que os três níveis de atenção devem ser articulados entre si. Todos os entrevistados nasceram antes da PNTN (Brasil, 2001), o que não exime a responsabilidade da promoção da assistência aos indivíduos com diagnóstico tardio pelos programas estaduais.
No conjunto das narrativas produzidas neste estudo, foi possível identificar que, embora prevista na IV diretriz da PNAIPDF, a garantia do acesso aos medicamentos e tratamentos essenciais, o modo de operação da regulação desse acesso ocorre de forma não governamental (Cecílio et al., 2014), ou seja, não formal, em alguns IT: Bemba recorreu à justiça para garantir o acesso à prótese; para Tonga, a compra da hidroxiureia, com a ajuda de amigos e da família, foi a solução encontrada para garantir a continuidade do tratamento.
[...] eu vejo que a falta da Hidroxureia tá prejudicando muito a qualidade de vida desses pacientes. Eu, pessoalmente, eu tô tentando comprar. Então, eu chego realmente, pedindo socorro à minha família, até mesmo aos meus amigos pra juntar. Tô comprando de uma, às vezes compro de dois pra não parar a medicação. E a minha medicação já tá quase no fim, então tô fracionando: tomando dia sim, dia não, pra não ficar sem tomar de vez, até conseguir comprar a próxima caixa. (Tonga)
As dificuldades de acesso à média complexidade - consultas especializadas e exames - colocam-se como um dos grandes desafios das pessoas com DF, com vários pontos de estrangulamento dos serviços de saúde, como demonstram as seguintes conversas:
[…] a gente não tem acessibilidade à ortopedia, principalmente especialista. A demora maior é ortopedia, que a gente sofre muito, corre muito e sempre leva um não, não, não, porque assim, nem todo ortopedista quer pegar o nosso caso, por ser um caso mais específico. […] Eu desenvolvi uma necrose de fêmur, acho que mais ou menos há dois anos que eu tô em tratamento. Já tô encaminhada pra cirurgia,mas eu tenho muita dificuldade em fazer cirurgia por conta da prótese que é adulta, então meu quadril não tem uma formação como de um idoso, que já é muito maior, então tinha que ser uma prótese infantil. Foi isso que eles alegaram. E pra eu receber essa prótese infantil, eu tenho que pegar uma autorização jurídica, pra que eu pudesse receber essa prótese. (Bemba).
O maior problema da minha vida... acredito que, por ter a doença e a saúde do Estado não ter recursos pra suprir as necessidades. Então é um problema. (Ajua)
França (2015), estudando o acesso da pessoa com DF ao Hemocentro da Bahia, concluiu que há necessidade de descentralização do serviço de hematologia no Estado, bem como, maior aproximação do serviço com os outros níveis de atenção à saúde, com o objetivo de garantia de equidade no acesso ao serviço e integralidade no tratamento desta população.
Silva, Bellato e Araújo (2013) sinalizam que esse tipo de vivência mostra a fragmentação da assistência prestada pela maioria dos serviços e profissionais do SUS, e coloca a cargo da família suprir as lacunas deixadas por suas práticas no atendimento às necessidades intensas e mutáveis que apresentam.
O documento aqui estudado (PNAIPDF) expressa compromisso não só com a sobrevivência, mas também com a qualidade de vida das pessoas com DF, vendo-as como um todo e em relação com seu ambiente, pais e família. Porém, a proteção e o cumprimento desses direitos dependem, diretamente, do acesso à saúde.
2.2 Os itinerários e o vínculo usuário-equipe no cuidado à pessoa com DF
Para Franco, Bueno e Merhy (1999), a criação de vínculos requer o estabelecimento de uma relação contínua no tempo, com escuta atenta às necessidades de saúde dos usuários e envolvimento e responsabilização dos profissionais de saúde na tentativa de solucionar os problemas que lhes são apresentados.
A seguir, a reconstituição do IT de Kioko, Ajaua e Tonga aponta essas experiências com as diversas instâncias do cuidado.
Sobre a atenção básica em saúde:
Eu não sinto necessidade do PSF, né. Porque quando eu tô precisando, o médico que eu confio mesmo, quando eu preciso é a doutora do CR1 (Kioko).
Segundo a PNAIPDF, o acolhimento das pessoas com DF deve ocorrer, inicialmente, pelos CRs, com posterior referência à ABS, a fim de que esta coordene o cuidado necessário (Brasil, 2005, 2015). Nas reconstruções do IT, evidencia-se a pouca participação da atenção básica na produção do cuidado e a baixa articulação entre esses serviços.
Observa-se que não há, em nenhuma das narrativas dos participantes, indícios de que o cuidado é compartilhado entre as diversas instâncias do sistema de saúde. Todavia, é evidente a vinculação dos participantes com os CRs:
[…] tudo que acontece, a gente vai muito pro CR2, então eu frequento mais o CR2 do que o posto de saúde. Geralmente só pra marcar alguns exames, quando não está marcando no CR2. […] O CR2, eu acho o hospital muito bom, porque lá a gente tem psicólogo, fisio, médicos, enfermeiros, enfermeira chefe, assistente social, recepcionista... Tudo que um hospital tem. Mas ele só funciona pelo dia. Então, eu acho que se fosse 24 horas seria melhor e amenizaria o sofrimento de muitos pacientes com anemia falciforme (Ajaua).
O episódio de dor aguda e crônica é a complicação mais comum e causa de maior necessidade de cuidados em saúde na DF. Esta ocorrência aumenta com a idade e, no adulto, impede, significativamente, sua funcionalidade (Sil, Cohen, & Dampier, 2016). Assim, a pessoa adulta com DF é uma assídua utilizadora de ações de média densidade tecnológica, estando o cuidado muitas vezes concentrado nos centros especializados (CR). Isto promove uma forte vinculação com esses centros. Este apoio fornecido pelo CR foi relatado por Ataíde e Ricas (2017) como forma eficiente de enfrentamento às complicações da doença. Historicamente, os hemocentros e as universidades são os centros de referência para atenção em DF.
Esta fragilização do vínculo com as demais instâncias de atenção à saúde, que não seja o CR, é reforçada por dois elementos: a insuficiente capacitação dos profissionais de saúde para conduzir a crise dolorosa e a acanhada comunicação entre o usuário e a equipe de saúde, como narraram Tonga e Bemba:
[...] mas eu vejo que o atendimento, em relação ao SUS, falta muito dessa paciência, de saber o que realmente acontece numa crise dolorosa, o que realmente o paciente tá sentindo àquela hora. Não é pela minha cara que vai dizer. É qual meu nível de dor. Claro que, às vezes, eu chego acabada, chego chorando. Às vezes até já eu vi uns amigos meus chegando aos gritos. Isso realmente acontece, porque realmente a coisa é insuportável ao extremo. Mas não é uma aparência física que vai dizer se eu estou com muita dor (Tonga).
Não só olhando do meu ponto de vista, mas de alguns pacientes que reclamam muito. Que eles [profissionais da emergência] fossem mais compreensivos, porque tem paciente que fala que o médico diz: faça tal coisa e diz: não, você vai precisar disso e pronto. Tá, eu entendo que eles têm o conhecimento do estudo e tal, mas tem paciente que realmente tá sentindo a dor, então eles conhecem mais a dor que eles tão sentindo. Entendeu? Então, o negócio é: não, esse remédio aqui é fraquinho, mas vai passar. Tipo, tem uns que não vai, então... é mais compreensão (Bemba).
A revisão publicada por Brandow e DeBaun (2018) destaca que a experiência da dor na DF é complexa e subjetiva. Na doença, herdada geneticamente, a dor se desenvolve ao longo da vida do indivíduo e a sua avaliação e o controle devem ocorrer no contexto do modelo biopsicossocial. Assim, esta dor que começa no primeiro ano de vida requer cuidado interdisciplinar e humanizado. Shook et al. (2016) chamaram a atenção para a importância de uma equipe multiprofissional treinada e de uma assistência adequada, tanto na atenção básica como na especializada, sendo esta a garantia de êxito no tratamento da DF.
Assim, pode-se inferir que a comunicação entre as equipes de saúde, nos seus diversos níveis, bem como entre usuário e equipe, é um elemento estruturante das redes de atenção à saúde. Parte-se do pressuposto de que, numa rede coordenada, capaz de garantir o acesso e a continuidade do cuidado, é preciso considerar as interações entre os diferentes atores envolvidos no processo de cuidar. Nesse sentido, a comunicação se impõe como eixo estruturante da atenção integral, como afirmam Lima e Rivera (2009):
A construção da integralidade passa pela instituição de estruturas e mecanismos reguladores dos fluxos de usuários entre os serviços, mas passa fundamentalmente pela mudança nos modos de interação entre profissionais e usuários e entre as equipes de profissionais e gestores. Como essa interação se dá, fundamentalmente, por meio da linguagem, isso exige novos processos de comunicação. (p. 333)
O Estado tem sido desafiado para a reconstrução de modelos de atenção à saúde capazes de detectar necessidades de médio e longo prazo dos indivíduos, garantindo o desenvolvimento da nação com maior igualdade e justiça (Cohn, 1995). As diretrizes e as ações implementadas pelo Estado são as políticas sociais e, entre elas, cabe destacar as políticas de saúde, por meio de programas e oferta de serviços para atender grupos da população. A PNAIPDF teve origem fora do sistema de saúde, a partir da atuação do movimento negro organizado com pouca participação das instâncias de gestão do SUS nesse processo. Este facto pode estar a influenciaro desdobramento heterogêneo dessa política entre os diversos Estados do país, com forte dependência, entre outros fatores, da vontade dos gestores, da governabilidade e da pressão dos grupos de interesse (Brasil, 2015; Máximo, 2009, Werneck, 2016).
Observa-se que, no estado de Alagoas, ainda não ocorreu o reconhecimento da DF como uma patologia com merecida agenda específica (Almeida et al., 2018), necessitando de atuação mais consistente e capaz de responder adequadamente às necessidades expressas no estudo. A vulnerabilidade programática exibida nas trajetórias dessas pessoas para resolver suas necessidades de saúde apresenta uma estreita relação com o racismo institucional, e coloca em evidência as implicações do sistema de saúde em seus itinerários.
Assim, a análise sobre o IT deste grupo de pessoas com DF caracterizou-se como um estudo com potencial de elaborar medidas por parte do poder público, visando o posicionamento deste frente à problemática da DF em Alagoas e contribuindo para a superação da invisibilidade da doença.
Conclusões
O presente estudo trouxe elementos para entender o lugar ocupado pelas práticas dos serviços e dos profissionais no modo como as pessoas adultas com DF buscam pelo cuidado, demonstrando a necessidade de maior articulação entre as diversas instâncias do cuidado, bem como repensar as atitudes e a forma de interação com as pessoas com DF, lidando com os obstáculos em busca da construção de encontros verdadeiros. Como fatores vulnerabilizadores dessa desarmonia, pode-se identificar: a insuficiente capacitação dos profissionais de saúde para conduzir as urgências da DF e a insuficiente comunicação entre o usuário e a equipe de saúde.
Os caminhos e as estratégias adotados pelas pessoas adultas com DF, na experiência de busca por cuidados, forneceram subsídios para inferir que, em Alagoas, as diretrizes estabelecidas pela PNAIPDF ainda não são plenamente atendidas, mesmo após treze anos de sua instituição. Ou seja, Alagoas tem uma frágil rede de saúde, proporcionando importante vulnerabilidade programática a esse grupo de pessoas. Sendo assim, é premente que o Estado viabilize a efetivação dos direitos inerentes às pessoas com DF, de forma a assegurar a dignidade humana, equidade e igualdade.
O estudo teve como limitação a inclusão apenas de participantes adultos com DF. Assim senso, torna-se necessário replicar a pesquisa com cuidadores, profissionais de saúde e gestores. Sugere-se, ainda, que sejam realizados novos estudos envolvendo outros domínios de vulnerabilidade.
Por fim, conclui-se que a reconstituição do IT é uma tecnologia potente para conhecer e avaliar as práticas relacionadas à integralidade em saúde, e pode trazer subsídios para a organização do cuidado no que se refere ao manejo da pessoa com DF.